semana passada, pela primeira vez desde que voltei definitivamente ao rio, estive no museu nacional de belas artes.
poderia passear pela sala de arte brasileira do século xix de pijama. o mnba é como se fosse minha casa.
a história é feita da nossa carne
a escola real de ciências, artes e ofícios foi fundada por d.joão vi em 1816.
com a independência, passou a se chamar academia imperial de belas artes.
em 1826, se transferiu para um prédio projetado pelo francês grandjean de montigny, na atual avenida passos.
na academia, casa de belmiro de almeida e muitos outros dos nossos grandes artistas, se travaram as grandes questões artísticas do século xix.
depois da república, passou a se chamar escola nacional de belas artes.
em 1908, com a construção do prédio atual do museu nacional de belas artes, na avenida rio branco, projeto do espanhol adolfo morales de los rios, a escola se trasferiu para ele.
(o prédio original, de grandjean de montigny, foi demolido em 1938, sobrando apenas seu pórtico, atualmente no jardim botânico.)
quando foi criada a universidade do brasil, a escola nacional de belas artes se incorporou à ela em 1931.
finalmente, em 1937, no mesmo prédio onde já funcionava a escola nacional de belas artes, foi inaugurado o museu nacional de belas artes.
durante os quase quarenta anos centrais do século xx, escola nacional de belas artes e o museu nacional de belas artes funcionaram no mesmo prédio, em frutífera simbiose. o próprio acervo da escola tornou-se o acervo do museu.
em 1965, quando a universidade do brasil passou a se chamar universidade federal do rio de janeiro, a escola também mudou levemente de nome: escola de belas artes.
em 1973, uma das alunas do curso de belas artes ficou grávida. no segundo semestre, já avançada na gravidez, desenhava apoiando a prancheta no barrigão. as aulas eram no subsolo e seu jovem marido, ainda apaixonado e trabalhando também no centro, ficava sempre agachado em plena calçada para poder vê-la através das janelinhas semi-circulares. no fim do ano, se formou aos trancos e barrancos e, em fevereiro do ano seguinte, nasceu seu primeiro filho.
pouco depois, em 1975, a escola de belas artes foi transferida para o campus do fundão.
muitos anos depois, em 2007, o filho do casal que namorava pelas janelas do museu visitou a nova sede da eba-ufrj para prestigiar a defesa de mestrado de sua melhor amiga, sobre arte e tecnologia, já apontando os caminhos por onde a arte brasileira vai fluir em seu terceiro século.
a história da nossa cultura é feita do nosso sangue e da nossa carne. as decisões de dom joão vi, os namoros dos meus pais e a escolha de tema da isabel são três pontos da linha do tempo da mesma instituição.
a história somos todos nós.
acima, minha mãe, em janeiro de 1974, grávida de oito meses de mim, pintada por seu então colega de classe na escola de belas artes, hildrebrando lima, hoje renomado escultor.
belmiro de almeida
belmiro de almeida foi cria da academia imperial de belas artes e é um de nossos maiores pintores. o mnba também é sua casa, e conta em seu acervo com algumas de suas principais obras, como “arrufos” e “a tagarela“.
“arrufos”
a rosa despedaçada no chão, o vaso quebrado na mesa. a plácida indiferença do homem, calmamente apreciando o cigarro que acabou de enrolar, uma mão enluvada, outra nua, pensando: “odeio mulher histérica!”
cada um dos quadros de belmiro de almeida conta uma história com começo, meio e fim. valem por contos visuais.
a nova geração de pintores saudou “arrufos” como se fosse uma revolução. o escritor gonzaga duque, que serviu de modelo para o homem, exclamou que, no rio, ainda não se havia pintado um quadro importante como esse. talvez por isso, causou um pequeno escândalo na sociedade carioca, entre patronos do museu e a aristocracia do império, em uma época quando quadros ainda causavam escândalos.
mesmo se o rio de janeiro fosse a cidade mais sem atrativos do mundo, só “arrufos” já valeria a visita.
“os descobridores”
apesar de encomendado pelo governo para celebrar os 400 anos do descobrimento, o quadro escolhe retratar um instante patético e humano. dois marujos, em terra, e a frota de cabral se afastando no mar. um cai ao chão. o outro observa os navios.
quem são eles? degredados, deixados para trás como punição? marujos fugidos, que não agüentavam mais a vida a bordo? ou será que foram abandonados por engano?
o personagem à esquerda, caído aos pés da árvore, o que ele sente? total derrota, ao ver que está sozinho naquela tela estranha? ou total alívio, ao ver-se livre da rotina naval que o oprimia?
de qualquer modo, estão sós.
* * *
atualmente, “os descobridores” está no segundo andar do palácio do itamaraty, no rio de janeiro. em 2004, eu estava fazendo um serviço ali perto e decidi aproveitar para conhecê-lo pessoalmente, pois só tínhamos nos visto em livros.
cheguei no palácio às cinco horas e já estavam fechando. o guarda, solícito, me informou os horários das visitas diárias e e eu disse que não, que era um estudante de arte e que precisava dar só uma olhadinha em um quadro que tinha sido informado que estava ali. aliás, minha informação tinha mais de 50 anos. nesse meio tempo, o quadro poderia ter pego fogo, sido riscado por um adolescente louco ou ter mudado de residência quinze vezes.
comecei a descrever o quadro: ele é grande, quase três metros de altura por dois de largura, são dois marujos da época do descobrimento no alto de um morro, vendo a frota do cabral ir embora e—
ah, disse o guarda, o senhor quer ver o quadro do belmiro?
fazíamos parte de uma irmandade. ele não só soube na hora de que quadro eu estava falando, como ainda se referiu ao pintor com uma intimidade de velho conhecido: ah, o quadro do belmiro?
sim, claro, o quadro do belmiro.
ele me conduziu pelos belíssimos corredores e salas e antesalas do palácio, já às escuras, e me levou até o quadro. acendeu as luzes e ficamos lá, os dois, uns quinze minutos, embasbacados, apreciando o drama daqueles dois marujos.
infelizmente, o quadro não está em bom estado, apesar de ter passado por uma restauração somente dois anos antes. as cores apagaram, o navio no canto superior esquerdo sumiu totalmente. quem não conhecesse o quadro por outras reproduções, acharia que estavam fitando o mar vazio.
não vale a visita — a não ser para conhecer o sebastião, o guarda amigo do belmiro.
“a tagarela”
já visitei alguns dos melhores museus de arte do mundo. sei que seria uma temeridade classificar qualquer quadro como o melhor de todos os tempos. mas, de uma forma bem singela e pessoal, “a tagarela” é o meu quadro preferido.
quase todo ano vou visitá-la. arrasto um banquinho, ou sento no chão, e ficamos nos olhando. sei que está louca pra me contar uma fofoca quentíssima, mas não consegue se decidir. por enquanto, ainda não falou nada.
não importa. ela me fascina e me domina. penso nela freqüentemente. adoro o seu olhar, o seu sorriso, suas mãos apertadas, até a vassoura com a qual ela estava varrendo até um segundo atrás – até parar e decidir que, simplesmente, precisava me contar alguma coisa.
estou esperando.
“mulher em círculos”
por fim, belmiro vai para paris, onde morre em 1935.
dentre os nossos pintores, ele é tido como o que melhor absorveu as tendências da vanguarda moderna, como o cubismo e o futurismo.
apesar de esnobado pelos modernistas de 22, justamente por ter seu nome muito associado à escola nacional de belas artes (que então representava o velho contra o qual os modernistas se rebelavam), seu “mulher em círculos”, de 1921, um ano antes da semana de arte moderna, é considerado mais avançado esteticamente do que qualquer quadro brasileiro da década.
até 2004, fazia parte da coleção particular de josé paulo moreira da fonseca. hoje, não sei mais onde está. nunca nos encontramos.
(confesso: existe um certo charme, digamos aurático, em saber que esses quadros, apesar de tão importantes, tão falados, tão reproduzidos, são ainda assim simples objetos que moram fisicamente em um único lugar.)
* * *
já fui ao museu nacional de belas artes. já dei meu oi à tagarela. ela já deu sua benção oficial ao meu retorno. já posso me considerar oficialmente de volta ao rio de janeiro.
* * *
para saber mais sobre belmiro de almeida: “pintura: belmiro de almeida“, por daniela viana leal.
8 respostas em “belmiro de almeida e o museu nacional de belas artes”
nao sei e nao consegui descobrir…
Alguém sabe informar se ele teve filhos?
[…] mais sobre belmiro aqui: belmiro de almeida e o museu nacional de belas artes […]
deu xabu no link do texto sobre o belmiro. ei-lo:
http://www.entreculturas.com.br/2010/08/pintura-belmiro-de-almeida/
Fantástico. essa relação com a pintura é fascinante. a mim fascinou. juro que vou dar um pulo lá e, com certeza, sentir tudo de uma maneira diferente graças a esta leitura. obrigada.
Olhando daqui, a tagarela me passa a impressão de ter sido interrompida em seus afazeres para posar. daí esse simpático sorriso de quem espalha tagarelices espontâneas e não sabe como não ser natural, embora se esforce no instantâneo do artista! mas isto é vendo daqui. talvez lá ela tb me confidencie outra história =)
oi tê. esse a tagarela eu tb nao achei, entao escaneei eu mesmo de um livro que tinha aqui em casa. quando vc vier me visitar, te mostro. :)
Já disse outra vez: a sua mãe é a cara da Eva Longoria. Obrigado por publicar essas reproduções. Eu estava procurando A tagarela e não achei, vou copiar e guardar.
Excelente texto, obrigado! Também sou visitante mais ou menos regular do MNBA e é ótimo saber mais sobre aqueles quadros…
[]s,
Pierre