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a raiva do betão

era uma vez, digamos, o betão.

betão queria fazer X da sua vida. mas o pai, a mãe, a sociedade, a mídia, o professor, o zé do 502, etc, disseram que betão iria se fuder se fizesse X, não iria ganhar dinheiro, não iria ter vida sexual, etc. aí, moço de bom-senso que sempre foi, betão sacrificou sua vida, recalcou suas vontades, fez tudo exatamente como mandaram e viveu a vida que projetaram pra ele e não a vida que queria viver.

um dia, apareceu o claudio gustavo.

claudio gustavo vivia exatamente a vida que o betão sempre quis viver e, pasmem, claudio gustavo não se fodeu, se sustentava, tinha uma vida sexual e amorosa, etc — nenhum daqueles medos que colocaram na cabeça do betão se realizou.

betão poderia tomar o simples fato da existência do claudio gustavo como um exemplo positivo para mudar sua vida, recuperar o tempo perdido, tentar fazer o que sempre quis.

mas mudar a vida dá um trabalho danado. além disso, betão agora já estava muito investido vivendo a vida que tinham mandado ele viver.

na verdade, aconteceu o contrário: betão tomou o simples fato da existência do claudio gustavo como exemplo negativo.

sem nem entender direito o motivo e de forma totalmente inconsciente, betão desenvolveu verdadeira ojeriza ao claudio gustavo.

agora, quando betão se senta entre outros homens que também viveram as vidas que lhes mandaram viver, exaustos de tanto trabalhar, cheios de dívidas e bebendo muito, a ojeriza geral ao claudio gustavo é tão auto-evidente que não precisa nem mesmo ser articulada ou justificada.

enquanto isso, o claudio gustavo continua lá, vivendo a vida que escolheu, sem nem se dar conta de estar agredindo tanta gente.

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textos

a nova economia colaborativa

não passa um dia sem que eu assista filmes ou escute música com o vlc; escreva com o libreoffice; ou consulte a wikipedia.

os três são parte integrante da minha vida. de modo bem real e concreto, adicionam valor à minha vida. os últimos dois, mais ainda, uso para o meu trabalho e para ganhar dinheiro.

por isso, eu faço doações periódicas para suas equipes criadoras ou mantenedoras.

elas merecem.

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tem gente que diz que lê todos os meus textos, que me cita pras amigas, que usa meus argumentos pra ganhar discussões, que mudei suas vidas, que lhes fiz ver o mundo de novas maneiras. e eu agradeço. e respondo o seguinte.

meus textos são disponibilizados gratuitamente pela internet. e fico feliz de serem úteis e apreciados por qualquer pessoa. ninguém precisa pagar nada para ler meus textos.

mas sou um artista pobrinho, que não tem renda nem emprego, e que sobrevive de vender livros e dar palestras e prestar pequenos serviços editoriais.

então, se meus textos fazem diferença e tiveram impacto na sua vida (e só você pode ser o juiz disso), e se não for fazer falta no leite das crianças, eu te peço para considerar a possibilidade de contribuir.

você pode:

– comprar meus livros:
www.alexcastro.com.br/livros

– ir às minhas palestras:
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– fazer uma doação ou assinatura:
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ou até mesmo, simplesmente, ajudar a divulgar meu trabalho e meus textos.

e eu te agradeço sempre, muito, muito mesmo.

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o baralho viciado

nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens (ênfase em “homens”), ao longo de muitos séculos, e obedece, em larga medida, aos interesses de quem a organizou – interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma “conspiração a portas fechadas”, mas de um longo processo social e político.

no caso do brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do estado de direito.

então, se todas as pessoas brasileiras magicamente deixarem de ser machistas (ou racistas ou etc) mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas e sem racistas continuará intrinsecamente machista e machista, e marcada pela mais profunda desigualdade racial e de gênero.

acredito nos bons sentimentos de todo mundo, mas não deixo de achar incrível que, mesmo ninguém sendo machista ou racista nessa nossa sociedade tão linda, o resultado final é que as pessoas brasileiras do sexo feminino ou de pele mais escura sempre acabam se fudendo.

o baralho que herdamos já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. não basta que os jogadores beneficiados simplesmente não trapaceem – pois, mesmo assim, vão continuar magicamente ganhando todas as partidas.

é necessário trocar de baralho.

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textos

roberto freire

ninguém escreveu sobre sexo e liberdade, amor e alegria, como roberto freire. ele é meu mestre e um dos grandes inspiradores das prisões. abaixo, os trechos que mais me marcaram de suas obras mais libertárias.

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 desem tesão não há solução(1987):

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a felicidade é uma prisão:

“algumas das principais características da alma burguesa no regime capitalista são seus desejos, seus sonhos e suas promessas de felicidade. … em todos os sistemas políticos autoritários sempre se foi buscar a promessa de felicidade como algo a compensar aqueles que, pelas injustiças e violências desses próprios regimes, são obrigados a viver na miséria, na fome, no sofrimento físico e moral. …

em nossa forma de organização política, fica para mim evidente que a felicidade pessoal é produto direto e inevitável da infelicidade social. e mais: parafraseando proudhon, estou seguro de que assim como a propriedade, toda felicidade pessoal é também um roubo. …

existem pessoas cujo desejo de ser feliz as torna insensíveis e indiferentes à infelicidade geral que o acúmulo excessivo de dinheiro nas suas mãos está produzindo. …

o amor tem se demonstrado, através dos séculos e em todos os regimes políticos autoritários, tão impotente quanto incompetente para realizar os sonhos de felicidade da maioria das pessoas. …

esse tipo de prazer [o prazer consumista e possessivo dos poderosos] pode ser realmente considerado felicidade? refiro-me à felicidade fruto da compra pura e simples, da apropriação indébita e da expropriação autorizada e impune, como aquela do ladrão que rouba de ladrão. …

a grande decepção dos amantes que buscam a felicidade (estado de prazer permanente, institucionalizado) através do amor é produzida pela sua incapacidade em aceitar que, como todas as coisas vivas, o amor também tem um começo, um meio e um fim. …

a felicidade [é] algo impossível de se atingir sem a deformação biológica e psicológica do ser humano e, mesmo quando isso é realizado, não se trata de prazer saudável e libertário o que se conseguiu, mas, exatamente, a sua contrafação: o poder autoritário e patológico. logo, definitivamente, a felicidade é uma coisa impossível de ser alcançada. em verdade, acho que ela não existe e nem é, sequer, necessária. penso mesmo que sua ideologia deve ser fortemente combatida tanto como estratégia política ou como delírio religioso e patológico, produzidos ora pela fome e ora pelo desespero, tanto pela miséria quanto pela carência amorosa, mas sempre, em quaisquer situações, manipulados pela paranóia autoritária do poder.

afirmo que o sonho capitalista burguês de felicidade deve ser combatido de forma constante e efetiva, seja no plano político ou no plano psicológico, porque a sua ideologia nasce de pessoas incapacitadas para qualquer tipo de opção livre e que já se submeteram, voluntária ou involuntariamente, a uma vida de incompetência e de impotência orgástica vital. assim, a esperança de vir um dia a ser feliz transforma-se, para eles, numa espécie de droga que os torna dependentes.”

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a tirania da família tradicional:

“todas as atitudes das mães burguesas, as duplas linguagens, são todas justificadas como amor, quando na verdade são castradoras e repressoras. conheço casos de pais que batiam nos filhos dizendo que faziam isso para evitar que os filhos apanhassem da polícia. então a família, como a vejo atualmente, nada mais faz que formar pessoas para um mundo autoritário, onde o poder se apresenta das mais variadas formas dentro das mais diversas instituições. …

a família existe não só para garantir a reprodução da sociedade burguesa através da difusão do autoritarismo, mas também para manter funcionando — e como correia de transmissão e de suporte do capitalismo — a propriedade privada. o papel da família é tão forte neste sentido que seus membros acabam por se julgar proprietários uns dos outros. adquire-se o mesmo medo compulsivo de perder o outro, menos pela necessidade do amor e mais pela ‘tranqüilidade psicológica’ que ser proprietário (ou propriedade) nos dá. …

é que nessas relações de poder instaladas na família é que nascem os sintomas neuróticos. se queremos tratar a pessoa precisamos fazê-la consciente de que isto teve origem naquela luta de poder, no autoritarismo familiar. a pedagogia realizada via autoritarismo ou então a pedagogia feita via chantagem afetiva. esse tipo de atividade familiar gera a doença mental. quando fazemos a terapia não tentamos curar a pessoa daqueles mecanismos repressores da infância que não têm mais jeito, pois ficam marcados indelevelmente em suas vidas. vamos tratar o que a pessoa aprendeu de autoritarismo tipo família burguesa, porque ela vai produzir uma família igualzinha.”

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estamos acostumados a viver de migalhas de amor:

“amor e liberdade são duas necessidades semelhantes e paralelas, uma não vai sem a outra. assim, na sociedade burguesa e capitalista ninguém viverá o amor inteiro e completo, simplesmente porque nela ninguém vive o mínimo de liberdade que permitiria isso. tragicamente, o ser humano se habituou a viver migalhas do amor, porque na sociedade capitalista há uma regra infalível: quem ama não fica rico.”

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essas pessoas doentes que vivem as vidas que lhes mandaram viver:

“eu sou terapeuta e posso dizer que 80% dos meus clientes têm problemas psicológicos por não estarem fazendo o que gostariam de fazer. as pessoas fazem, convencidas pelas suas famílias, o que o meio social prefere; isto de fazer o que é imposto provoca nessas pessoas um grande sofrimento, que muitas vezes estoura fora do trabalho, estoura em sexo, em agressividade, em equilíbrio mental. observando estes casos você vai ver como a forma de vida dessas pessoas é imprópria para elas. numa sociedade como a nossa, com esta família autoritária e cumpridora das normas do estado, as pessoas sensíveis, cujo projeto de vida não está dentro do que espera o meio social, sofrerão muita repressão; e esta é uma repressão muito danosa, pois é castrativa. uma pessoa que não faz o que precisa fazer, tende a adoecer, perde, no mínimo, a identidade e o auto-respeito.”

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essas pessoas loucas que fazem o que querem fazer:

“[a pessoa que faz o que quer fazer] vai enfrentar uma luta duríssima, pela qual a maioria das pessoas é derrotada. porque se por um lado ela faz o que a família e o estado querem, será um castrado. se, por outro lado, vai lutar e fazer o que quer, se sentirá marginal. ela passará por imensos sacrifícios de vida e vai acontecer aquela coisa dolorosa e triste que a gente vê com muitos artistas e intelectuais no país, que é viver à margem e impotente. agora, se a pessoa consegue superar este vínculo psicológico e consegue não desperdiçar muita energia neste vínculo e jogar tudo naquilo que tem de original e único, eu posso afirmar com convicção que ela se torna absolutamente vitoriosa no meio, e o sistema passa a necessitar dela. só que nem todas as pessoas, por comodismo, estão dispostas a esta luta. eu acho que isso não se restringe à profissão. eu também estou falando de liberdade. uma pessoa que não sabe lutar pela sua liberdade de ser ou pela sua forma de amar, jamais vai poder lutar em sua profissão. a primeira coisa que eu recomendo a um jovem é ser marginal. é ser neurótico. nunca a fazer terapia. eu sou um terapeuta que não recomenda a terapia pra ninguém. enlouquecer é muito melhor que sobreviver a qualquer custo. só há dois tipos de loucura: a loucura branca (que é a luta) e a loucura negra (que é a entrega). qualquer um que esteja lutando e querendo as suas coisas passa por louco. mas esta loucura eu acho sadia. eu só faço terapia com a loucura negra. pego as pessoas que estão se entregando e tento trazê-las para a luta de novo. quanto ao louco branco, eu quero mais é que ele faça terapia em mim, que me ensine a lutar desse jeito. … você tem de se empenhar, você tem de lutar muito. é preciso muita coragem para viver só de nossa originalidade. o tesão e a energia para essa luta vêm da ideologia do prazer.”

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sobre os perigos de tornar-se livre:

“falo para a pessoa que sua terapia é perigosa e explico o porquê. porque você vai desenvolver nessa pessoa atitudes revolucionárias, antiburguesas. então ela realmente vai ter de passar por perigos maiores. ela poderá provavelmente ter de romper com laços que são antigos. terá que refazer a vida familiar, rever seu casamento e seu amor para ver se não é repressivo, ver o que há de autoritário nessas relações. tudo isso é feito com dor, não só na gente, mas nas outras pessoas que estão acostumadas ao relacionamento anterior e vão sofrer com as mudanças. então a gente precisa ter muito peito para levar isso adiante. quando chega ao fim é maravilhoso, porque essas pessoas começam a se libertar, a produzir, e fica visível a utilidade da terapia.”

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para terminar, viver é arriscado:

“não busco segurança, eu busco o risco, é arriscando que encontro prazer na vida.”

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de ame e dê vexame (1990):

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declaração do amante anarquista:

“porque eu te amo, tu não precisas de mim. porque tu me amas, eu não preciso de ti. no amor, jamais nos deixamos completar. somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.”

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essas tais pessoas que nos completam:

“em minha inocência e ignorância, eu atribuía a algumas pessoas o poder de liberar, produzir, fazer exercer-se e se comunicar o amor em mim e de mim. esse amor pertencia, pois, exclusivamente a essas pessoas, ficando eu delas dependente para sempre. se, por alguma razão, me deixassem ou não quisessem mais produzi-lo em mim, eu secava de amor e — o que é pior — ficava em seu lugar, na pessoa e no corpo, uma sangrenta ferida, como a de uma amputação, que não cicatrizaria jamais.”

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os obstáculos ao amor livre são externos, não internos:

“o ciúme, sentimento natural nas relações amorosas, transformou-se em instrumento do poder a partir do momento em que o homem passou a se sentir proprietário da terra, do que ela produz, dos animais e, depois, dos outros homens. …

a dificuldade para a realização plena do amor entre as pessoas não é um problema do amor em si, mas do ambiente social, dos preconceitos, do moralismo laico ou religioso, do autoritarismo, da luta de classes, dos interesses econômicos e políticos. …

quando o amor acaba por ele mesmo, quando existe incompatibilidade entre as personalidades dos amantes, suas reações à perda não chegam nunca ao desespero trágico dos desfechos produzidos de fora para dentro, do social para o pessoal, do desamor geral contra o amor possível. …

numa sociedade autoritária como a nossa, sermos o que somos, deixarmos o nosso amor ser o que ele é sem dúvida alguma é a coisa mais difícil de se realizar. por outro lado, é a mais emocionante também porque, uma vez vencida a barreira neurótica de origem política, passamos a nadar a favor da correnteza da vida e do amor.”

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nossos instintos são contrários à educação repressora e possessiva que recebemos:

“parece ser muito difícil e arriscado para os jovens conciliar seus impulsos e desejos libertários com a realidade dos resíduos da formação burguesa em si mesmos e nos parceiros. esses resíduos, estimulado pelo ambiente social, opõem-se radicalmente aos impulsos e desejos libertários, parecendo aos jovens impulsos e desejos também naturais quando, na verdade, não passam de deformações de caráter incutidas pela educação autoritária e capitalista que receberam e que estimula neles o desejo de poder e só lhes dá segurança na apropriação, na dominação, tanto no plano material quanto no afetivo. … a gravidade e a seriedade do amor burguês apenas escondem o objetivo de transformá-lo em instrumento de poder.”

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o verdadeiro amor não é egoísta:

“quando se ama, não se está pensando em segurança, duração, controle, posse, pois isso corresponde à forma com que o autoritarismo capitalista familiar ou de estado se expressa no plano pessoal e afetivo. se sou um libertário, desejo que tanto eu quanto o meu parceiro vivamos o amor em liberdade, na emoção, no espaço e no tempo.”

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saber respeitar a liberdade da outra pessoa:

“para mim essa é a maior descoberta: quando o parceiro desiste de nos seguir nessa viagem, por medo dos riscos ou porque descobriu melhores companheiros para viajar, aprendi a aceitar, embora de início a contragosto, o seu direito a essa liberdade (como a desejo igualmente para mim).”

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a dor da perda é parte da vida:

“a dor pela perda de alguém que se ama … é um tipo de dor perfeitamente suportável e superável, porque é apenas dor de perda, coisa a que temos de nos habituar estando sujeitos permanente e impotentemente ao jogo limpo, porque natural, entre a vida e a morte. porém, quando se sabe que o jogo não foi limpo, mesmo aquele entre a vida e a morte (perda de alguém que se ama por acidente ou crime), é algo quase insuportável e, às vezes, insuperável.”

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não é vergonha amar de forma diferente:

“descobri … não ser vergonha nem humilhação alguma não viver de forma machista, não querer morrer de amor e nem precisar enlouquecer e matar meu objeto de amor de tanto ciúme. finalmente, me sentia capaz de sofrer toda a dor possível no amor sem envolver a morte nisso. estava, assim, podendo sentir a dor do ciúme sem precisar perder a razão nem destruir a mim e aos outros. enfim, eu já estava preparado para me defender dos riscos de aprisionar o amor, e não dos riscos do próprio amor. …

agora, felizmente, acredito estar podendo sentir meu ciúme à vontade, sem tirar a liberdade de ninguém, porque desejo ter essa liberdade de gozar e de sofrer o meu amor como bem entender ou precisar. o mais difícil, e é só isso que me faz falta aprender antes que seja tarde demais, é guardar só para mim a dor do ciúme e não utilizá-la como instrumento para ferir e chantagear quem, no exercício pleno de sua liberdade, preferiu, ao meu, outro tipo de amor.”

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essas pessoas de bem, de caráter, coerentes…

“fritz perls tem uma frase de que gosto muito: “deus me livre das pessoas de caráter.” é que as pessoas de caráter são únicas, não mudam, não evoluem, têm obsessão pela coerência. e a vida não é assim. na vida você tem de aparentar muita incoerência para poder viver todos os seus lados. eu me sinto uma incoerência só, hoje em dia. e assim vivo muitas experiências, amo de mil maneiras mil pessoas, e sigo o que a natureza me impõe.”

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queremos a liberdade de poder experimentar todas as formas de amor:

“a natureza nos deu toda uma gama de possibilidades de exercer o amor que vai da genitalidade à espiritualidade. é muito bom poder viver toda essa gama de possibilidades amorosas com toda a gama de possibilidades de pessoas que vamos encontrando por aí…”

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amor livre e responsabilidade:

“cada um tem o direito de usar o seu corpo da maneira que lhe der mais prazer e poder atender assim a seus impulsos naturais. importa é que todos os atos humanos sejam de inteira responsabilidade de quem os pratica.”

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medo, vergonha e sacrifício:

“o anarquista somático não se sacrifica por nada e por ninguém, simplesmente porque nada ou ninguém precisa disso. todo sacrifício é feito com segunda intenção, é um pacto de mediocridade, algo que se cobra com juros bem altos. logo, a ideologia do sacrifício é fruto do autoritarismo. …

não há nada mais incômodo, desagradável e perturbador para uma sociedade autoritária, e sob a ideologia do sacrifício, do que um homem alegre. a alegria é uma agressão e ofende porque provoca inveja e rompe pactos de mediocridade. o homem saudável é revolucionário e alegre. a beleza pode ser, ao mesmo tempo, raiz e fruto do prazer. só o prazer nos dá (com o contraponto da dor) o sabor da vida. …

“[o] pacto de mediocridade: não serei sincero com você; em paga, não seja sincero comigo, assim encobriremos nossas verdades e o fracasso da relação não será atribuído a ninguém. enfim, um jogo medíocre, doente, neurótico, nivelando as pessoas por baixo e boicotando a dinâmica e a liberdade no amor. …

o medo é o contrário do orgasmo. sem vexame não há tesão. sem tesão não há solução.”

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para terminar:

“ser livre é muito mais difícil do que alcançar o prazer sexual.”

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obrigado, roberto. por essas palavras.

obrigado, vanessa, amiga e amante querida, por ter me apresentado a roberto freire, entre beijos e orgasmos, em 2002.

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arte

do balé ao funk, entre nazistas e aiatolás

faz cem anos da primeira apresentação do balé sagração da primavera em paris. com música de stravinski e coreografia de nijinski. um dos eventos que inauguram o século vinte nas artes. houve brigas na platéia. testemunhas dizem que nem se conseguia ouvir a música. talvez o ponto alto da história do balé, em uma época na qual balé ainda conseguia causar escândalo.

nos nossos dias, balé virou sinônimo de balé clássico. palavra odiosa essa. clássico. clássico nada mais é que um outro nome para algo morto e estático, que não cresce e que não muda, que imita um passado longínquo sem conseguir nem alcançá-lo, nem criar algo diferente. uma diversão segura e refinada para burgueses bem-alimentados aumentarem seu capital cultural — ao mesmo tempo em que apoiam a decisão da polícia militar de proibir os bailes funk nas comunidades pacificadas.

no ocidente de hoje, beethoven pode até ter virado música de elevador, mas suas obras ainda são proibidas no irã. claramente, os aiatolás vêem uma força transgressora em beethoven que já não enxergamos.

talvez apenas entendam mais de arte do que nós.

nijinski

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essa noite, vou assistir sagração da primavera no teatro municipal. tentando ter em mente todo o seu potencial escandaloso. tentando vê-lo pelos olhos de quem formou sua consciência artística no século xix. tentando vê-lo como meus amigos hoje veem o funk.

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um dos mais brilhantes livros de história que já li: “a sagração da primavera: a grande guerra e o nascimento da era moderna“, do historiador canadense modris eksteins.

começando com a primeira apresentação de sagração da primavera em 1913, passando pelo trauma da primeira guerra mundial, e culminando na ascensão do nazismo, eksteins traça a criação da nossa consciência artística moderna.

para eksteins, o nazismo é antes de mais nada um movimento artístico. e tudo começa com a sagração da primavera e nijinski dançando ao som de stravinski.

a genialidade da obra está na maneira como eksteins faz essa ponte.

recomendo.

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encontros

“as prisões”: bibliografia

abaixo, a lista de todas as obras citadas durante a palestra “as prisões”. boas leituras.

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introdução

a frase sobre o objetivo da prática budista ser virar sua vida de cabeça para baixo está em “not for happiness: a guide to the so-called preliminary practices” (2012), de dzongsar jamyang khyentse. esse livro é bastante avançado. para quem está começando a se interessar em budismo, recomendo, do mesmo autor, “o que faz você ser budista”, publicado no brasil pela pensamento em 2008.

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verdade

a frase “penso, logo existo” está no “discurso do método” (1637), de rené descartes, um livro essencial, importantíssimo e muito acessível. (baixe e leia em português.)

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dinheiro

o seu tempo “livre” é livre mesmo ou é só o tempo que seu empregador te dá para você poder trabalhar mais?

o ensaio “tempo livre” (“free time”, publicado postumamente pela primeira vez em 1977), do filósofo alemão theodor adorno, pode ser encontrado no livro “indústria cultural e sociedade”, publicado pela paz e terra em 2009. (leia em português ou em inglês.)

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o tempo, como entendemos hoje, não existe desde sempre e também é uma criação humana: para controlar nossos lanches e idas ao banheiro.

o ensaio “tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial” (“time, work-discipline, and industrial capitalism”, 1967), do historiador britânico e. p. thompson, pode ser encontrado no livro “costumes em comum”, publicado pela cia das letras em 1998. (um fichamento em português ou leia em inglês.)

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quanto menos tempo você tem, mais dinheiro vai gastar. não é coincidência.

o artigo “o seu estilo de vida já foi projetado” (“your lifestyle has already been designed” 2010), de david cain(em português & em inglês.)

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privilégio

o privilégio está em ser visto. em existir. em não ser invisível. umllivro que mudou minha vida e meu modo de ver.

“homens invisiveis, relatos de humilhação social”, de fernando braga da costa, publicado pela editora globo em 2004.

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toda a obra de górki consegue a façanha de expor o horror da dominação econômica e da pobreza, com enorme vigor e gigantesca empatia, nunca romanceando nem bestializando os pobres.

sua obra-prima é “a trilogia autobiográfica”, lançada pela cosac naify em 2007. a peça “ralé” (1901) também é excepcional.

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um primeiríssimo passo para quem quer sair da sua bolha de privilégio e saber mais como a pobreza no brasil.

“a ralé brasileira: quem é e como vive”, de jessé souza, publicado pela editora da ufmg em 2009.

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também recomendo os contos de turgeniev sobre os servos da rússia. acho que nunca foi lançado no brasil. tem uma edição portuguesa com o título “cadernos de um caçador”, da relógio d’água. talvez a tradução mais fácil de encontrar seja da penguin, com o título “sketches from a hunter’s album”.

um dos grandes autores de todos os tempos, em seu primeiro livro. ainda cheio de falhas mas cheio de vigor e empatia. eu prefiro o livro falhado e vigoroso da juventude de um grande autor às suas obras mais técnicas, mais frias, mais perfeitinhas da maturidade.

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sexismo

“problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” (1990), de judith butler, publicado no brasil em 2010 pela civilização brasileira.

pode ser um pouco árido, para quem não está acostumado à leitura acadêmica, mas vale a pena.

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o ainda invicto e indispensável “o segundo sexo” (1949), de simone de beauvoir. (baixe em português.)

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“as virtudes de medo”, de gavin de becker, publicado pela rocco em 1999. para quem quiser, tenho o pdf da edição em inglês.

um dos livros mais importantes da minha vida. com certeza, o livro que mais presenteei: já pra mais de doze vezes. esse livro salva vidas.

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racismo

“the racial contract” (1997), de charles w. mills. (sobre o livro.)

um livro que pensa o racismo de formas realmente radicais e originais. importantíssimo.

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“racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica” (2003), de edward telles, publicado pela relume-dumará.

para entender os números do racismo no brasil, sem precisar depender da evidência anedótica do seu amigo negro que adooooora ser chamado de “tição”.

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monogamia

livros “sem tesão não há solução” (1987) e “ame e dê vexame” (1990), ambos de roberto freire(baixe em português: “ame” & “tesão“) 

dois livros poderosos, importantes, humanos, belíssimos. das coisas mais lindas que já se escreveu no brasil.

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religião

“o futuro de uma ilusão” (1927), de sigmund freud, publicado pela l&pm. (baixe em português.)

freud-o-psicanalista já foi superado faz tempo. freud-o-cientista social, de totem e tabu, moisés e monoteísmo, o futuro de uma ilusão & o mal-estar da civilização, sempre será um prazer de ler, em todas as épocas. aqui, ele dispara suas armas mais pesadas contra a religião.

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“o existencialismo é um humanismo” (1946), de jean-paul sartre. (baixe em português.)

um dos textos mais belos, mais humanos, mais abertos que já li. incrível imaginar um texto desses sendo escrito em 1946, em um país recém-liberado, em um continente que acabara de enfrentar a pior guerra de todos os tempos. na verdade, quem sabe, esse texto só poderia ser escrito nesse contexto.

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“porque não sou cristão” (1927), de bertrand russell. (baixe em português.)

boas razões.

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“da natureza”, de lucrécio. (em português de portugal antigo ou em inglês.)

esse texto revolucionário, escrito na roma antiga, manteve o epicurismo vivo e, ao ser redescoberto no final da idade média, praticamente inaugurou o renascimento. é fascinante ler um texto tão antigo e, ao mesmo tempo, tão próximo, tão moderno. sua defesa da descrença em um poder sobrenatural é linda, belíssima.

em 2012, stephen greenblatt venceu o pulitzer com um livro sobre o impacto da redescoberta de lucrécio: “a virada, o nascimento do mundo moderno”, publicado no brasil pela cia das letras.

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todos os fragmentos de epicuro. epicuro não é quem você pensa que ele é.

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minha definição de ideologia vem de althusser, em “aparelhos ideológicos de estado” (baixe em português):

a ideologia é a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência, gerando assim uma representação distorcida da realidade. ou seja, o conjunto de ideias, saberes, preconceitos, etc, que permite que as pessoas se relacionem com e façam sentido da realidade: são as lentes através das quais percebem o mundo.

também gosto da definição de barbara fields:

“a ideologia é melhor compreendida como um vocabulário descrito da vida cotidiana, necessário para que as pessoas possam conferir um sentido básico à realidade social, vivida e criada por elas a cada dia. é a linguagem da consciência que possibilita a relação específica entre pessoas. É a interpretação em pensamento das relações sociais através da qual elas constantemente produzem e reproduzem o seu ser coletivo em todas as suas mais diversas formas: família, clã, tribo, nação, classe, partido, empreendimento, igreja, exército, associação, etc. deste modo, as ideologias não são ilusões, mas sim reais, tão reais quanto as relações sociais pelas quais elas se mantém.”

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patriotismo

o patriotismo é a ilusão construída de que um amazonense tem mais em comum com um gaúcho do que um uruguaio e que, em caso de conflito, vale a pena vestir um uniforminho e morrer para defender essa construção abstrata.

o pensador que melhor explica como fomos convencidos disso é benedict anderson, em “comunidades imaginadas, reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo”, publicado pela cia das letras, em 2008, em excelente tradução da ótima denise bottman.

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respeito

o diálogo de thoreau com emerson está em “desobediência civil” (1849), de thoreau. também recomendo “walden” (1854), do mesmo autor. thoreau é um dos grandes inspiradores das prisões. (baixe “desobediência” & “walden“, em português.)

 

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os outros

a frase “o inferno são os outros” é da peça “entre quatro paredes” (1944), de sartre, às vezes também encenada no brasil com o título original “huis clos”. (baixe em português.)

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livro “teoria da classe ociosa” (“theory of the leisure class”, 1899), do economista norte-americano thorstein veblen. (leia em inglês, em português ou outra versão em português.)

sobre as dinâmicas sociais que fazem com que nos importemos tanto com a opinião dos outros. um livro imbatível e hilário. em inglês, existem diversas edições e está em domínio público na internet. em português, pode ser encontrado na coleção “os pensadores”, figurinha fácil em qualquer biblioteca.

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felicidade

sobre a obrigação de ser feliz, recomendo (com muitas ressalvas) “perpetual euphoria: on the duty to be happy”, do filósofo francês pascal bruckner, publicado em inglês no ano de 2011 pela universidade de princeton.

bruckner é bastante conservador e comete alguns horrores de vez em quando, mas vale a pena. do mesmo bruckner, também recomendo, com as mesmas ressalvas, “the tears of the white man: compassion as contempt” (1986) e “the tyranny of guilt” (2010).

* * *

a frase de tchecov sobre o homem e o martelo está na história “gooseberries”. ela já deve ter sido traduzida para o português, mas não consegui localizar. (leia uma tradução inglesa.)

tchecov é meu autor de ficção preferido e recomendo todos os seus contos, em especial as traduções para o português feitas por bóris chnaidermann e publicadas recentemente pela editora 34.

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narcissimo

sobre como lidar com pais e mães narcissistas, o site que salva vidas é daughters of narcissistic mothers“.

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o narcissismo é o assunto principal do pensador vivo que atualmente mais respeito, a pessoa que se assina “the last psychiatrist“.

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sobre a epidemia de narcissismo na nossa sociedade, recomendo “the narcissism epidemic: living in the age of entitlement” (2009), de jean m. twenge e w. keith campbell.

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sobre empatia, recomendo o discurso de formatura “this is water”, dado por david foster wallace em kenyon college em, 2005. (leia em inglês ou em português.)

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de modo geral, recomendo a obra de henry miller, especialmente a trilogia “trópico de câncer” (1934), “primavera negra” (1936) & “trópico de capricórnio” (1939). em vários momentos, os livros são terrivelmente sexistas e conservadores, mas tenham paciência com o velho henry: os tempos eram outros.

também indispensável é a coleção de poemas de walt whitman, “folhas de relva”.

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tem um mundo de recomendações de leitura aí para vocês. espero que seja útil.

para saber mais quando serão minhas próximas palestras, é só conferir sempre essa página: alexcastro.com.br/palestras

 

 

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textos

o único dedo que aponto é para mim mesmo

quando critico o narcissismo e proponho exercícios de empatia, não é porque me considero um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado e agora está pontificando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.

pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma pessoa rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa.

o único dedo que aponto é para o meu próprio reflexo no espelho. sempre.

meus textos são, antes de tudo, para mim mesmo. uma desesperada tentativa de finalmente me tornar a pessoa que quero ser.

entretanto, se a carapuça que escrevi para mim também servir em você, melhor ainda. quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?

não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso.

sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.

mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre.

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textos

Uma pessoa boa

A distração que me faz esquecer não é o que me justifica: é o que me condena.

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raça textos

a ambição dos escravos

O que é pior: a ambição dos escravos ou a falta de ambição dos escravos?

Palavras da Condessa de Merlin, uma nobre escravocrata cubana, escritas em 1841.

Reparem como ela passa de condenar a preguiça e falta de ambição dos negros (e por isso devem ser escravizados) para logo em seguida condená-los pela suposta ambição que demonstrariam assim que libertos (e por isso devem continuar escravizados).

“Suponhamos que os ingleses consigam obter, sem transtornos e sem desordens, a emancipação dos escravos de nossas colônias. Seu primeiro sentimento, sua primeira necessidade, qual será? Não fazer nada. O trabalho lhes é insuportável e só se consegue obrigá-los a trabalhar a força. Um negro indolente e selvagem, desprovido de todo desejo de progresso, de ambição, de dever, preferirá substituir sua vida vagabunda e sensual pelos rigores de um trabalho voluntário e de um sustento adquirido com o suor de sua testa? Mas suponhamos que, por um milagre, a educação moral dos escravos libertados se desenvolvesse de repente e os trouxesse a amar o trabalho. [Adoro esse “trouxesse”: a Condessa de Merlin nunca trabalhou um dia sequer em sua vida.] Caso se convertessem em trabalhadores, os negros não demorariam em se ver atormentados pelo desejo de ser proprietários; pela rivalidade, pela ambição, pela inveja contra os brancos e suas prorrogativas. Sob um regime político constitucional, em um país governado por leis equitativas, não exigiriam participar destas mesmas instituições? E vocês lhes concederiam os seus mesmo direitos e os seus mesmos privilégios? Fariam deles os seus juizes, os seus generais, os seus ministros? Dariam-lhes suas filhas em matrimônio? Não é isso que queremos, exclamarão os amigos dos negros: que sejam livres, mas que se limitem a trabalhar a terra e a conduzir a cana como bestas de carga. Não consentirão: se hoje ocupam-se dessas atividades e consideram-se felizes em seu estado imperfeito de homens selvagens, no dia em que se acenda para eles a luz da inteligência perceberão que são homens como vocês, e o campo de batalha ficará com o mais forte. Reflitam: quando estalar o primeiro sinal de combate, não haverá piedade possível entre duas raças incompatíveis.”

O discurso da Condessa tem o grande mérito de desmascarar a hipocrisia dos abolicionistas, esses brancos bondosos que queriam a liberdade dos negros mas que sinceramente não podiam nem conceber um juiz negro ou, pior, muito pior, um genro.

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zen

zazen

assim que assumo a posição de meia-lótus, cruzo as pernas e pouso as mãos em frente ao umbigo, é nessa hora que meu nariz coça.

primeiro, vem a negação, imediatamente seguida pela revolta. caralho, não acredito que meu nariz escolheu coçar justo agora. putaqueopariu.

quanto mais tento esvaziar a mente, mais a coceira aumenta. em breve, a coceira está do tamanho do mundo. a coceira é maior do que eu, do que a vida, do que kafka, do que o sol, do que a vacuidade, dp que a morte.

a coceira é o universo. ali. na ponta do meu nariz.

mas não posso me mexer.

aí, vem a barganha.

que besteira!, penso. ninguém vai me ver. estão todos sentados, voltados pra parede, concentrados na prática. e, afinal, o que tem de mais coçar o nariz? o nariz não está coçando mesmo? não sou livre? não estou no templo praticando zen por vontade própria? não posso me levantar e ir embora a qualquer momento? por que não poderia coçar o nariz?

mas não. vai fazer barulho. o cotovelo vai estalar. o tecido da minha roupa vai farfalhar. naquele silêncio absoluto, esses sons seriam quase ensurdecedores.

então, a coceira some.

como tudo no universo, como nossas vidas, como as árvores, como o próprio sol, a coceira também passa.

porque se eu sinto coceira e não preciso coçar, então eu posso sentir fome e não preciso comer. posso sentir cansaço e não preciso sentar. posso sentir ira e não preciso gritar. posso sentir desprezo e não preciso humilhar.

porque a fome, o cansaço, a ira, o desprezo também passam.

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textos

fogo na palha

a agressividade na comunicação é contagiosa. ela se espalha de uma pessoa para a outra como fogo na palha. quase sempre, não temos como controlar a agressividade da outra pessoa. mas podemos sempre não devolvê-la e nem passá-la adiante. uma caneca de cada vez.

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arte

a holandesa que pintava sorrisos

"the jolly troper" (1629) de judith leyster

sobre o quadro acima, “jolly troper” (1629), e os sorrisos na pintura:

This last painting — this plump, gregarious man — it struck me. It looks like a bad Photoshop job. It looks like a botched anachronism. The man’s tunic, hat and vessel look early modern, but his face looks like a caricature from the 20th century. I half-expected him to be some 1940s character actor, a face grafted onto a 1620s body.I think it has to do with his smile. You don’t see smiles like that in portraits. … But I’m not used to seeing smiling subjects set in the past to be, truly, envoys from and creations of the past. Without ever planning it, smiles became little historical wayfinding aids: A big, happy, drunk dude like this, his face like a stylized photograph, has to be post-1900. (fonte)

* * *

sobre a vida e os quadros de judith leyster:

* * *

depois de casar e ter filhos, a pintora de pessoas felizes não pintou mais.

como tantas outras mulheres talentosas ao longo da história, judith não tinha (na expressão de virginia woolf) “um teto só para si”.

* * *

um beijo em você, judith.

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textos

Declaração de princípios de Alex Castro

Sou pró-feminista, de esquerda, apoiador do politicamente correto.

Vivo uma relação não-monogâmica. Já participei da comunidade bdsm.

Sou contra a pena de morte. Sou contra a redução da maioridade penal. Apoio a justiça restaurativa.

Não considero que a vida seja sagrada: apóio o direito ao suicídio e à eutanásia.

Sou a favor de direitos iguais para as pessoas homossexuais, inclusive e especialmente casamento e todos os direitos correlatos, como herança, dividir plano de saúde, etc.

Acho que a pessoa comum não deve ter direito a portar armas.

Sou a favor de cotas raciais e sociais nas escolas, universidades, funcionalismo público. E não, isso não resolve, mas é um primeiro passo.

Sou contra a criminalização de opiniões racistas ou homofóbicas, por achar que a lei não tem direito de legislar opiniões, apesar de concordar com Judith Butler que linguagem violenta é violência.

Sou a favor da descriminalização da maconha e de outras substâncias ilícitas de uso recreativo.

Sou a favor do direito irrestrito ao aborto.

Minha mais urgente prioridade política seria colocar uma creche em cada esquina: só quando as mulheres não forem mais reféns da maternidade, elas poderão de fato ocupar o espaço público, e isso mudaria tudo.

Não sou nem nunca fui filiado a nenhum partido político. Para o legislativo municipal, estadual e federal, sempre voto na legenda do PSOL. Votei no Ciro no primeiro turno e no Haddad no segundo. Estou decepcionadíssimo com Lula e com Ciro.

Não acho que foi golpe, mas foi canalhice e fico feliz da bancada do PSOL ter votado contra.

Sou agnóstico, religioso e zen-budista, afiliado à Ordem dos Pacificadores Zen, ordenado Irmão Iquiú em Eininji — Templo do Cuidado Amoroso Eterno, em Copacabana.

* * *

Essas são minhas posições. Elas não estão abertas a debate e podem mudar sem aviso prévio.

Se você discorda delas, saiba que eu respeito sua opinião e não quero te convencer de nada, mas não vou debatê-las com você.

Se você é radicalmente contra minhas posições, talvez não devesse estar me lendo.

De resto, sente-se, fique à vontade, leia os textos.

Abração.

(Atualizado: 11abr2019)

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textos

Mini-manual pessoal para uso não-sexista da língua

Em meus textos, para chamar atenção para o sexismo de nossa língua, estou invertendo a norma e usando o feminino como gênero neutro.

Não porque troquei um sexismo por outro, mas porque o gênero da palavra “pessoa” é feminino.

Trocar:

“Meus alunos não calam a boca.”

Por:

“Minhas alunas não calam a boca.”

Só mantém o sexismo da língua. Pior: sugere que são apenas as minhas alunas mulheres que não calam a boca.

Por isso, hoje, eu digo:

“Minhas pessoas alunas não calam a boca.”

Essa tem sido, pra mim, a maneira não-sexista de escrever.

* * *

Para me referir a seres humanos de modo geral, uso o feminino, idealmente antecedido de “pessoa”.

Por exemplo, o texto “Carta aberta às pessoas privilegiadas” normalmente teria se chamado “Carta aberta aOs privilegiadOs”, se referindo a todas as pessoas privilegiadas do mundo de ambos os sexos.

Se eu mudasse simplesmente para “Carta aberta Às privilegiadAs”, o texto poderia passar a impressão errada, graças ao treino sexista que impusemos aos nossos ouvidos, de falar somente para as mulheres privilegiadas e não aos homens.

Portanto, para evitar essa distorção e manter o significado genérico, o título final ficou “Carta aberta às pessoas privilegiadas”.

* * *

A melhor forma de evitar o sexismo é usar a palavra “pessoa” livremente e sem medo de repetições.

* * *

Só uso o masculino para me referir especificamente a homens.

Trecho da mesma “carta aberta” citada acima:

“Escuto muito: homens reclamando da histeria das feminazis, pessoas cis reclamando da agressividade das militantes trans, brancas reclamando do vitimismo do movimento negro, religiosas reclamando da chatice das ateias militantes. … É comum ouvir as pessoas privilegiadas (homens, brancas, cis, ricas, etc) reclamarem que as militantes de causas marginalizadas (movimento negro, lgbt, trans, feministas, indígenas, ateias, etc) são agressivas, defensivas, estressadas, etc.”

* * *

Ocasionalmente, faço referências a mim mesma no feminino (como no texto “e se eu estiver errada?“), não porque me identifico como mulher, mas simplesmente para que esse estranhamento faça a pessoa leitora refletir sobre a arbitrariedade do uso de gêneros na nossa língua.

* * *

Existem várias outras maneiras de inverter o sexismo da língua, como usar a arroba e o X.

Respeito muito todas as pessoas que também estão lutando por menos sexismo na língua e que escolheram usar essas ou outras opções.

Os meus motivos para não adotá-las são os mesmos de Juno, expostos no texto: Deixando o X para trás na linguagem neutra de gênero

Recomendo também esse utilíssimo manual para o uso não sexista da linguagem.

Para dicas práticas, recomendo o artigo: Escrever com X não é linguagem neutra.

* * *

Essa é apenas uma regra que estou seguindo em meus próprios textos. Não estou impondo nem sugerindo a ninguém.

* * *

Talvez a grande contribuição da filosofia durante o último século tenha sido essa:

As palavras importam. a linguagem molda o mundo.

vale a pena brigar por isso. Não é uma luta vã.

* * *

Se você tem interesse em escrever de forma menos sexista, talvez goste de conferir meus melhores textos políticos, listados abaixo:

Pra começar
Uma história de quatro pessoas

Racismo
Senzalas & campos de concentração
O peso da história: a escravidão e as cotas
Imigrantes sim, mas de que cor?
Racismo, miscigenação e casamentos interraciais no brasil

Feminismo
Feminismo para homens, um curso rápido
A fácil paternidade
Cavalheirismo é machismo
O papel dos homens no feminismo
O segredo de beleza dos homens

Privilégio
Carta aberta às pessoas privilegiadas
Ação de graças pelos privilégios recebidos
O assunto não é você
O valor das pessoas e das coisas
Carta aberta às humoristas do brasil

Pra encerrar
O desabafo da moça do crachá
O baralho viciado

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raça

pode um cabelo ser pior?

um dos grandes problemas das sociedades escravistas sempre foi como distinguir as pessoas escravizadas das livres. cada cultura resolveu o problema de um jeito: mudança de nome, tatuagem, marcar a ferro, vestimentas.

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entropia

um café na beira da estrada

nessa época, eu estava me dividindo entre duas mulheres que eu amava (e ainda amo), uma no rio e outra em são paulo, tentando provar para as duas que esse tipo de relacionamento aberto funcionava, que eu podia ser homem pras duas, que eu podia fazer as duas se sentirem amadas e preenchidas. por causa disso, oliver e eu passamos muitas horas insones, ouvindo muitos audiobooks, fazendo a rio-sp de um lado pra outro, nas horas mais sinistras da noite. e, um dia, completamente exausto, parei num bar de caminhoneiros, porque precisava de cafeína, precisava esticar as pernas, precisava sair daquele carro. era alta madrugada, o bar quase vazio, eu com uma cara exausta, carregando um poodle no colo, e o moço do balcão puxou um café pra mim, feito na hora, não um espresso ou um cappucino ou essas novidades estrangeiras, mas um bom e velho e delicioso e 100% brasileiro café coado de beira de estrada. e eu fiquei ali, bebericando o café e olhando o carro de rabo de olho (lema: confie em todos, mas corte o baralho), enquanto o oliver explorava o bar e falava com todo mundo, e senti minhas energias voltando, e senti que a vida era linda e que tudo iria ficar bem. e quando me ofereci pra pagar, o atendente disse, aqui não se cobra por cafezinho, não, moço. e, não saberia dizer porque, talvez fosse a fadiga, talvez saudades de expatriado, mas aquilo me pareceu a coisa mais linda do mundo e ainda é um daqueles momentos especiais que eu carrego comigo, um recorte no tempo pra onde vou nos momentos de depressão, um instante que visito pra me recarregar. não lembro mais se foi na ida ou na volta, se foi perto do rio ou perto de são paulo. vai ver nem aconteceu. vai ver eu dormi e sonhei isso no último segundo de vida enquanto o carro saía da estrada. vai ver o oliver está agora latindo ao lado do carro – o puto com certeza sobreviveu e deve estar feliz na sua nova família. enfim. seis meses depois, ambas terminaram comigo. uma mais tarde voltou, e depois quem terminou fui eu. a outra veio e foi e, depois, foi e veio de novo. são duas mulheres incríveis e sinto falta delas. enquanto isso, a vida foi indo, como ela sempre faz, linda como ela sempre é.

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textos

por quantos mendigos você passou hoje?

em nossa sociedade, existem pessoas que vivem sem privacidade e sem higiene, sem casa e sem comida, que são obrigadas a dormir em bancos de praça e, ainda por cima, os deixam todos emporcalhados.

isso é um problema, ninguém nega.

mas o problema não é o banco emporcalhado e a praça vandalizada! e nem a solução é gradear a praça, expulsar os mendigos e tomar deles até essa camas improvisadas!

se existem pessoas dormindo em bancos de praça, o problema é justamente existirem pessoas dormindo em bancos de praça.

o papel do estado não é ir lá e proteger os pobres bancos de praça desses meliantes porcalhões, mas sim proteger essas pessoas, que são tão cidadãos quanto eu e você, das vicissitudes da vida: descobrir as causas de seus problemas, tentar resolver, oferecer um prato de comida, uma cama limpa, uma chuveirada.

sim. eu já quis ler um livro em uma praça e o banco estava emporcalhado. aconteceu comigo. aconteceu com você.

mas essa pequena inconveniência não é nada comparada à tragédia de existirem pessoas, tão gente quanto eu e você, que não tem outra opção a não ser dormir em bancos de praça.

o fato de existirem pessoas que não compreendem essa diferença também é uma tragédia.

você daria uma esmola para ele?

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rio de janeiro textos

moro onde você passa férias

é um privilégio morar em uma cidade turística, mas talvez não pelas razões que você pensa.

quando escrevi o texto comparando rio e são paulo, muitos paulistas disseram que parte da fama de preguiçoso do rio vinha do fato que eles mesmos, os paulistas, não conseguiam imaginar alguém trabalhando o dia inteiro ao lado de uma bela praia.

economia aquecida.

já eu levo esse estranhamento um pouco mais além: realmente, não consigo imaginar alguém trabalhando oito horas por dia, fechado em um escritório, por nada desse mundo, em nenhuma cidade! como essas pessoas aguentam?

mas não, as praias não atrapalham o trabalho de ninguém e, pelo contrário, movimentam uma parcela grande da economia da cidade: em 2010, r$ 7 bi e 200 mil pessoas.

transporte turístico lá e cá

cresci na barra da tijuca.

em algum ponto da década de oitenta, a prefeitura criou as jardineiras : um ônibus aberto, de bancos de madeira, que fazia todo o circuito da orla, levando turistas e surfistas. várias vezes, peguei a jardineira pra ir ao trabalho ou para a universidade.

o privilégio é justamente estar vivendo minha vida e fazendo minhas tarefas cotidianas, pensando no trabalho, na reunião, na aula, mas cercado de pessoas muito felizes, que pagaram caro para estar ali em minha volta, animadas, conversando, tirando fotos, vendo a beleza nos menores detalhes, encontrando a maravilhas em paisagens que para mim já eram comuns, constantemente me relembrando a olhar a vida por novos ângulos.

jardineira, na orla do rio, cerca de 1985.
jardineira, na orla do rio, cerca de 1985.

no século seguinte, morei por seis anos em nova orleans, outra cidade linda e decadente, hospitaleira e turística, sexy e carnavalesca. e praticamente sem transporte público. a linha de bondes de carrollton, a mais antiga linha de bonde em funcionamento contínuo do mundo (desde 1833!), é uma entre tantas atrações turísticas da cidade.

o bonde era notoriamente não-confiável e os habitantes quase nunca usavam. eu, por exemplo, morava a meia hora a pé do trabalho: quando queria ir de bonde, só para garantir não atrasar, precisava sair de casa uma hora antes.

mas valia a pena. só para ver, enquanto preparava minhas aulas, tanta gente tão feliz e tão rosada, fotografando os shotguns e as mansões sulistas, apontando para os beads pendurados nos enormes carvalhos .

tanta alegria era contagiante. eu já chegava em sala de aula renovado.

pelo menos eles raramente atropelam alguém

os condutores de bonde, aliás, eram uma espécie a parte.

uma vez, apesar do bonde nem estar cheio, o condutor desistiu de parar nos pontos. simplesmente passava direto e apontava pra trás: “peguem o próximo”.

para um carioca, era experiência comum ver um ônibus passar a toda pelo ponto, enquanto pobres cidadãos quase levantavam voo de tanto abanar os braços. em nova orleans, também: alguns passageiros reviraram os olhos e só. continuamos a viagem e voltei ao meu livro.

O bonde de Nova Orleans.

então, depois de um tempo, para minha surpresa, sinto o bonde parando.

pela porta da frente, entram duas moças lindas, uma loira e uma negra, com mapas e guias embaixo dos braços, e o condutor prontamente faz uma mesura com seu boné e começa a oferecer dicas turísticas da cidade.

“welcome to new orleans”, ele disse, e eu pensei, cá com os meus botões, que não era à toa que esse carioca desterrado se sentia tão em casa na capital do jazz.

todo dia nublado é uma pequena tragédia

a fotógrafa claudia regina (autora do incrível texto como se sente uma mulher) se mudou para o rio há pouco tempo. em uma de suas visitas anteriores, foi ao cristo em um dia nublado. uma velhinha saiu do elevador, procurou a estátua… e não viu nada:

“imaginei a velhinha juntando dinheiro a vida toda pra visitar o rio de janeiro. que o sonho de sua juventude era ver a estátua do cristo. que aquele era seu último dia e que logo voltaria para düsseldorf, onde morreria sem nunca ter realizado seu maior sonho.

faz poucos meses que vim morar na cidade maravilhosa. em curitiba, quando o dia amanhecia chuvoso, eu só ficava com preguiça de sair da cama. agora, penso sempre que deve haver uma pobre velhinha que gastou todas suas economias para vir pegar chuva no rio.”

(leia o texto completo: morar em uma cidade turística)

cadê?
cadê?

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um texto sobre o rio e são paulo: rio e são paulo, duas arrogantes

dois textos sobre nova orleans: geladeiras distópicas na nova orleans pós-katrina e a importância de um restaurante na nova orleans pós-katrina

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arte

amor vândalo

amor vândalo.
amor vandâlo.
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textos

nomes datados

nasci no sábado de carnaval de 1974. só na minha sala, havia 8 alexandres. é um dos nomes mais comuns da minha geração. já interroguei todas as mães de alexandres nascidos nessa época e elas negam a existência de algum alexandre famoso causador dessa avalanche. ainda não desisti de encontrá-lo.

faz uns alguns anos, um moço chamado raoni comprou um dos meus livros.

lá pelos idos de 1989, o cantor inglês sting e o cacique raoni correram o mundo, dupla dinâmica ecológica, tentando chamar atenção para o desmatamento da amazônia. dizem que o sarney não aguentava mais eles.

e, agora, hoje, já tem gente chamada raoni votando, transando, comprando meu livro.

fim de semana passado, em brasília, realizei a palestra “as prisões” na casa de um leitor universitário chamado laio.

laio é um nome grego clássico. o velho rei de tebas. pai de édipo, marido de jocasta, morto em uma encruzilhada pelo próprio filho que ele enviara para a morte.

mas também foi um personagem da novela mandala, exibida pela globo em 1988, uma releitura da velha tragédia grega. jocasta era vera fischer, édipo, felipe camargo e laio, o veterano perry salles.

envelheço, envelheço. mas é melhor que a alternativa.