é um privilégio morar em uma cidade turística, mas talvez não pelas razões que você pensa.
quando escrevi o texto comparando rio e são paulo, muitos paulistas disseram que parte da fama de preguiçoso do rio vinha do fato que eles mesmos, os paulistas, não conseguiam imaginar alguém trabalhando o dia inteiro ao lado de uma bela praia.
já eu levo esse estranhamento um pouco mais além: realmente, não consigo imaginar alguém trabalhando oito horas por dia, fechado em um escritório, por nada desse mundo, em nenhuma cidade! como essas pessoas aguentam?
mas não, as praias não atrapalham o trabalho de ninguém e, pelo contrário, movimentam uma parcela grande da economia da cidade: em 2010, r$ 7 bi e 200 mil pessoas.
transporte turístico lá e cá
cresci na barra da tijuca.
em algum ponto da década de oitenta, a prefeitura criou as jardineiras : um ônibus aberto, de bancos de madeira, que fazia todo o circuito da orla, levando turistas e surfistas. várias vezes, peguei a jardineira pra ir ao trabalho ou para a universidade.
o privilégio é justamente estar vivendo minha vida e fazendo minhas tarefas cotidianas, pensando no trabalho, na reunião, na aula, mas cercado de pessoas muito felizes, que pagaram caro para estar ali em minha volta, animadas, conversando, tirando fotos, vendo a beleza nos menores detalhes, encontrando a maravilhas em paisagens que para mim já eram comuns, constantemente me relembrando a olhar a vida por novos ângulos.
no século seguinte, morei por seis anos em nova orleans, outra cidade linda e decadente, hospitaleira e turística, sexy e carnavalesca. e praticamente sem transporte público. a linha de bondes de carrollton, a mais antiga linha de bonde em funcionamento contínuo do mundo (desde 1833!), é uma entre tantas atrações turísticas da cidade.
o bonde era notoriamente não-confiável e os habitantes quase nunca usavam. eu, por exemplo, morava a meia hora a pé do trabalho: quando queria ir de bonde, só para garantir não atrasar, precisava sair de casa uma hora antes.
mas valia a pena. só para ver, enquanto preparava minhas aulas, tanta gente tão feliz e tão rosada, fotografando os shotguns e as mansões sulistas, apontando para os beads pendurados nos enormes carvalhos .
tanta alegria era contagiante. eu já chegava em sala de aula renovado.
pelo menos eles raramente atropelam alguém
os condutores de bonde, aliás, eram uma espécie a parte.
uma vez, apesar do bonde nem estar cheio, o condutor desistiu de parar nos pontos. simplesmente passava direto e apontava pra trás: “peguem o próximo”.
para um carioca, era experiência comum ver um ônibus passar a toda pelo ponto, enquanto pobres cidadãos quase levantavam voo de tanto abanar os braços. em nova orleans, também: alguns passageiros reviraram os olhos e só. continuamos a viagem e voltei ao meu livro.
então, depois de um tempo, para minha surpresa, sinto o bonde parando.
pela porta da frente, entram duas moças lindas, uma loira e uma negra, com mapas e guias embaixo dos braços, e o condutor prontamente faz uma mesura com seu boné e começa a oferecer dicas turísticas da cidade.
“welcome to new orleans”, ele disse, e eu pensei, cá com os meus botões, que não era à toa que esse carioca desterrado se sentia tão em casa na capital do jazz.
todo dia nublado é uma pequena tragédia
a fotógrafa claudia regina (autora do incrível texto como se sente uma mulher) se mudou para o rio há pouco tempo. em uma de suas visitas anteriores, foi ao cristo em um dia nublado. uma velhinha saiu do elevador, procurou a estátua… e não viu nada:
“imaginei a velhinha juntando dinheiro a vida toda pra visitar o rio de janeiro. que o sonho de sua juventude era ver a estátua do cristo. que aquele era seu último dia e que logo voltaria para düsseldorf, onde morreria sem nunca ter realizado seu maior sonho.
faz poucos meses que vim morar na cidade maravilhosa. em curitiba, quando o dia amanhecia chuvoso, eu só ficava com preguiça de sair da cama. agora, penso sempre que deve haver uma pobre velhinha que gastou todas suas economias para vir pegar chuva no rio.”
(leia o texto completo: morar em uma cidade turística)
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um texto sobre o rio e são paulo: rio e são paulo, duas arrogantes
dois textos sobre nova orleans: geladeiras distópicas na nova orleans pós-katrina e a importância de um restaurante na nova orleans pós-katrina