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textos

16 anos

menino de 16 anos, namorando menina de 14, relacionamento super complicado, brigas com pai dela, maior drama, e eu ouvindo aquilo tudo, e ele me pede um conselho, “alex, o que eu faço? me diz!” e eu, deus que me perdoe, mas, sinceramente, a única coisa que conseguir dizer foi, “não tenha 16 anos. ter 16 anos é uma merda“.

* * *
hoje faço 38. recomendo.

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entropia

sou ateu porque preciso

confesso: acredito viver no melhor universo possível.

não suportaria existir em um universo regido por uma força divina misteriosa e caprichosa.

não suportaria saber que minha alma viverá eternamente, em eterno prazer ou eterno sofrimento, baseado no que fiz ou deixei de fazer nesses poucos anos terrenos, de acordo critérios inescrutáveis definidos por um ser para o qual sou menos que uma ameba.

se existe deus, então todos os esforços da humanidade para se entender e se auto-gerir, toda a ciência e toda a filosofia, de nada valem. se existe deus, então não existe ética ou moralidade: somente adequação ou não às regras impostas por essa divindade.

se existe deus e temos o livre-arbítrio, então o arbítrio de livre não tem nada, é uma dádiva da qual só desfrutamos porque nos foi concedida e pode ser tirada tão facilmente quanto.

se existe deus, então a vida não tem nenhum sentido. quem tem sentido é deus e o nosso sentido provém dele. não somos mais do que suas cobaias, manipuladas daqui pra lá, correndo como hamsters em rodinhas, ignorantes de seus verdadeiros propósitos. ao seu bel-prazer, somos mortas, escravizadas, santificadas, até mesmo afogadas em massa, quando falha o experimento.

se deus não existe e o universo é aleatório e sem sentido, a humanidade está livre para criar, através de suas ações e de seus pensamentos, de suas obras e de suas vontades, dia a dia, século a século, o seu próprio sentido.

por outro lado, se deus existe, o universo já tem sentido, um único sentido, o sentido que vem de deus, o sentido que está dado, e só cabe a nós descobrir esse sentido e viver de acordo com ele.

se deus existe, não há criação de sentido possível. não temos como ressignificar o mundo, a humanidade, o cosmos. não temos como dar sentido nem a um botão de rosa.

para mim, esse sim é um universo no qual não valeria a pena nem sair da cama.

* * *

talvez deus realmente exista. talvez sejamos todas somente marionetes em seu projeto cósmico.

mas, ainda assim, prefiro inverter a aposta de pascal. se não tenho a liberdade de dar sentido à minha vida, melhor então a ilusão da liberdade do que nada.

* * *

sou ateu não por ter concluído, após cuidadosa análise das evidências empíricas, que não existe base factual para sustentar a existência de deus.

sou ateu porque eu só poderia existir e funcionar como ser humano em um universo sem deus.

sou ateu porque preciso.

a gente não acredita no que quer, a gente acredita no que pode.

* * *

algumas pessoas às vezes me perguntam:

“então, você está vivo para quê?”

“para nada,” eu respondo. “para absolutamente nada. só estou vivo. não basta?”

a pessoa insiste:

“qual é o sentido da sua vida, então?”

“nenhum”, eu respondo. “absolutamente nenhum. só estou vivo. não basta?”

algumas vezes, a pessoa desafia:

“então, por que não se mata?”

além de ser uma pergunta agressiva e mal-educada, confesso que nunca entendi bem essa provocação. é como se eu estivesse gostosamente me balançando em uma rede e alguém perguntasse:

“se você sabe que vai ter que levantar daí inevitavelmente, por que não se levanta agora?”

mas a resposta me parece simples e auto-evidente:

“eu não me levanto agora porque agora estou muito bem aqui me balançando na rede.”

então, não me mato agora porque agora estou muito bem aqui vivo, comendo pipoca e me masturbando, indo à praia e lendo freud, essas coisas que uma pessoa faz quando está viva. não me mato porque quero ler o próximo romance do lobo antunes e ver o próximo filme do almodovar. não me mato porque tenho pelo menos umas quatro peças de teatro e uns cinco romances na cabeça que ainda quero escrever.

mesmo em um universo aleatório e sem deus, por que essas prosaicas razões não deveriam ser suficientes para uma pessoa não se matar?

quando chegar a hora de levantar, eu levanto. quando chegar a hora de morrer, eu morro.

até lá, aproveito.

* * *

uma amiga me perguntou:

“como alguém, um ser humano, consegue suportar a ideia de que, a qualquer sopro malfadado do destino, pode morrer e simplesmente sumir? nunca mais sentir, amar, sorrir, brigar, pensar, existir? … para a minha pobre consciência simplesmente e inadmissível deixar de existir.”

mas… se tudo acaba, se até mesmo o sol vai acabar, por que seria justamente eu a não acabar nunca? por que eu seria tão importante assim? aliás, por que a questão da minha existência seria minimamente importante? por que eu deixar de existir é mais ou menos dramático do que um coelho deixar de existir?

passei a existir no momento no tempo que convencionamos chamar de 1974 mas, antes disso, eu não-existi por um período literalmente infinito. e não foi ruim. não doeu. não foi desagradável.

muito em breve, voltarei a não-existir por um período infinito de tempo. se não era ruim antes, por que seria ruim depois? por que ter medo de voltar a um estado que já experimentei e que não foi ruim?

na verdade, considerando o tempo que passamos existindo e o tempo que passamos não-existindo, nosso estado natural é a não-existência.

existir seria apenas um breve soluço, um glitch, um bug, dentro de uma perfeita, plena e eterna condição de não-existir.

somos todos seres inexistentes que, por um acaso, existem.

mas não por muito tempo.

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o lado cômico do edifício master

Aprendi muito sobre natureza humana durante o documentário Edifício Master.

Os entrevistados contaram coisas sérias e profundas, expuseram suas vidas frente às câmeras. E a platéia riu.

Quando não eram gargalhadas, era aquele silêncio de tsc tsc, aquele silêncio de coitadinha, aquele silêncio de que moça iludida. A empatia (sic?) do público oscilava entre escárnio e pena, sem meios-termos.

Edificio MasterFace ao estranho e ao novo, face às idiossincrasias de pessoas comuns, seus erros de gramática, suas ilusões e seus medos, o público ria de se descabelar, como se diante de um novo personagem do Casseta & Planeta: primeiro o Massaranduba, depois o Seu Creysson, agora a moça agorafóbica, com problemas mentais aparentemente sérios, que fala de modo muito estranho, nunca olha pra câmera e faz poemas em inglês aliás perfeito. A platéia parecia uma claque, de tanto que ria: ficaram faltando só os aplausos quando o personagem entra em cena e, claro, um bordão. Mais um novo personagem pro imaginário popular, tão engraçado quanto o Capitão Gay ou o Professor Raimundo.

A medida que a moça falava, entretanto, o riso foi se abafando, como se baixasse a convicção incômoda de que ih não, ela é de verdade, agora que lembrei, não posso rir, não tem graça. Uma das pessoas que estava comigo até comentou que só se sentiu mal mesmo de ter rido dessa moça. Mas riu. E não riu sozinha.

O humor se baseia em surpresa, inversão de expectativas e, principalmente, crueldade. Um dos axiomas do humor é que, pro público gargalhar, alguém tem que se estar dando mal. Não existe gargalhada do bem.

A grande diferença é que essa moça não é um quadro da Praça É Nossa. Ela é real, e não estava contando algo pra fazer rir, estava falando do seu namorado, de seus poemas, de Nova Orleans, de sua vida e do seu futuro.

Os artistas se expõem, por dever de ofício, ao escárnio público. Ou à glória pública. Ou ao mais absoluto descaso público. O artista é aquele pobre coitado da quermesse, que coloca sua cara no buraco e se expõe às tortas dos visitantes atiram. E quem lhe acertar bem no nariz, ainda ganha um ursinho. O artista que surtar quando seu trabalho for ridicularizado deveria ter estudado odontologia, como seu avô queria.

O artista sabe o quanto está se expondo.

Os entrevistados do Edifício Master sabiam?

Acho que não. Falaram com uma simplicidade e uma sinceridade que não dedicamos nem aos nossos psicanalistas. Falaram de coisas sérias e profundas e, com certeza, nunca lhes ocorreu que aquelas coisas sérias e profundas, ditas com seriedade e profundidade, seriam ouvidas com algo que não fosse seriedade e profundidade. Falaram sério e esperaram ser levados a sério. Será que ouviram as gargalhadas?

O diretor Eduardo Coutinho disse ter feito o possível, durante a edição, para minimizar o patético, pra não expor ao ridículo aquelas pessoas que, com ingenuidade até, haviam se aberto tanto pra ele. Eu acredito. O filme, hora alguma, estimula o patético ou enfatiza o risível. Mas, mesmo assim, no lugar dele, eu teria ficado desesperado.

Eu teria levantado no meio da sessão, parado tudo, mandado acender as luzes. E ficaria gritando, pregando no deserto, desesperado, dizendo não, gente, não é assim, não é isso que eu quis mostrar, isso não tem graça, essa velhinha é uma pessoa maravilhosa, o que ela falou é sério, muito sério, vocês não vêem?

Iriam rir dele também.

(Originalmente publicado em 2002.)

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a nódoa da escravidão

Um dia, enquanto passeava com o Oliver aqui pelo meu bairrinho universitário classe média em Nova Orleans, uma soccer mom enfiava cuidadosamente seus quatro filhinhos, todos brancos e roliços, em seu jipão utilitário de luxo, também branco e roliço. Era uma senhora baixinha e gorducha, bochechas rosadas e orelhas de abano, carregando mochilas e merendeiras, parecendo dotada daquela infinita paciência que só uma mãe de quatro meninos pode ter. E, em seu para-choque traseiro, discretamente, estava o adesivo:

The South Will Rise Again (“O Sul se Erguerá de Novo”)

Como não se sentir ameaçado? Não conheço o contexto dessas palavras. Por tudo que sei, é um inocente desejo de revitalizar a economia local. Mas, ainda assim, nenhuma racionalização poderia apagar o meu calafrio ao ler aquela frase; nenhuma explicação lógica faria aquele adesivo soar menos sinistro. De certo modo, era como se o ressurgimento do Sul fosse indistinguível e indissociável do reescravizamento de toda uma raça.

E pensei: o Brasil foi tão ou mais escravista do que o Sul dos Estados Unidos, e resistiu por muito mais tempo até libertar seus escravos. Ainda mais doloroso pra mim, dos nove únicos deputados que tiveram a cara-de-pau e a temeridade de votar contra a Lei Áurea em pleno maio de 1888, já na véspera do século XX e na contra-mão de todos os ventos filosóficos do XIX, oito eram do Rio de Janeiro. Legítimos representantes eleitos do meu estado.

Entretanto, não ficamos nem o Rio e nem o Brasil maculados por essa nódoa. Um adesivo “O Brasil Crescerá” despertaria calafrios? Claro que não. Nem o Paraguai tem medo do Brasil. E concluí, aliviado: ainda bem que pelo menos o bom nome do meu país e do meu estado não estão ligados à escravidão.

Um segundo depois, bateu o estranhamento: mas… por que não? A falta de calafrios não corresponde à falta de crimes. O Sul dos EUA teve, no Norte, um vizinho incômodo que manteve viva a memória de seus crimes. Já em nosso caso, simplesmente varremos nossos crimes para debaixo do tapete.

Não somos mais virtuosos: somos melhores em esconder o corpo.

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diálogo nas escadas

Descendo as escadas do meu prédio, encontro uma senhora sentada nos degraus, fumando.

“Boa noite!”, eu digo.

Empolgada, ela responde automaticamente:

“Boa noite!”

Mas logo depois pensa um pouco e se corrige:

“Boa tarde, na verdade!”

Ao ouvir aquilo, me dou conta que são onze da manhã e falo:

“Na verdade verdadeira, bom dia! Mas tudo bem, domingo é mesmo o dia de esquecer da rotina, dos dias, das horas.”

E ela:

“Hoje é sábado.”

“Então realmente não sei mais porra nenhuma.”

E desci.

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cada coisa na sua hora

Existem fases na vida em que as experiências se acumulam com tanta velocidade e intesidade que é impossível conseguir tempo e paz para escrever sobre elas.

Existe fases na vida onde o tédio é tão absoluto que não há outro modo de tornar a vida tolerável a não ser escrevendo.

Se na primeira fase você se forçar a parar de viver para sentar e escrever, você não terá experiências sobre as quais escrever.

Se na segunda fase você se forçar a tirar o pijama e ir ver o sol brilhar lá fora, você nunca conseguirá escrever sobre as experiências que viveu.

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amor silencioso

Na última parada antes da ponte Rio-Niterói, entra um casal no ônibus.

A menina vem se sentar no mesmo banco que eu. Baixa, branca, bonita. Pintinha nos lábios e flor nas sandálias.

O menino fica em pé ao seu lado. Negro, alto, bonito. Camiseta branca e boné vermelho.

Ambos surdos-mudos, ambos claramente apaixonados. Eles se beijam, se tocam, se gesticulam, totalmente absortos um no outro.

Junto com eles, entra também um mendigo de muletas, absolutamente imundo, incrivelmente fedido, definitivamente bêbado.

Senta-se do outro lado do corredor, em frente à menina, e começa a gritar impropérios sem dono. A zoeira é tanta que não consigo nem mesmo ler. À minha volta, todos estão visivelmente contrariados e incomodados. Rangem os dentes, tapam os narizes.

Enquanto o ônibus atravessa a belíssima baía de Guabanara, o mendigo gritando e os passageiros sofrendo, o casal se beija completamente impermeável ao mundo lá fora. Fechados em uma bolha de silêncio e amor.

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multidão de boa-vontade

hoje, na marquês de abrantes, em frente ao senac.

uma senhora está falando ao telefone e, de repente, seus joelhos fraquejam e ela cai bem devagar. todos a volta correm até ela.

segundo me disseram, era uma funcionária do próprio senac e tinha acabado de ser informada. o menino de camisa branca, andando pela calçada na hora errada no local errado, morto pela explosão da manhã, era seu sobrinho.

fiz menção de ajudar, mas não foi necessário. ela foi lentamente levada de volta ao senac, amparada por uma verdadeira multidão de boa vontade.

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bem-vindo ao rio de janeiro

Estou morando no Flamengo, bairro densamente urbano do Rio de Janeiro. Pela primeira vez na vida, saio do prédio… e estou no mundo. Cinco academias de ginástica e oito casas de suco só no meu quarteirão. Adoro.

Mas ontem, depois da caminhada matinal, tinha um cheiro estranho nas patas do Oliver. Forte, desagradável. Demorei a identificar. Querosene? Faísca? Não saía de jeito nenhum.

Era a creolina que jogam nas calçadas para afastar os moradores de rua.

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ansioso no metrô

Era um homem feio. Casa dos quarenta, muito magro, todo anguloso. Careca de crânio pontiagudo, nariz protuberante, enorme queixo. Usava oclinhos redondos de intelectual descolado. Nas costas, como se fosse um estudante de quinze anos, uma mochila escolar.

Estávamos no metrô. Ele encostava a palma contra a janela do vagão. Dava pulinhos muito pequenos, quase imperceptíveis. Uma vez, chegou a descer e ficar de cócoras e subir de novo, tudo muito rápido. A medida que a estação se aproximava, inseria carinhosamente os dedos naquela borracha entre as portas. Não como se quisesse abri-las antes da hora, mas agradecendo-as previamente por deixá-lo passar em direção à alegria.

Pois não era uma ansiedade de medo, de susto, de estresse. Aquele homem feio e careca, de oclinhos descolados e mochila nas costas, estava indo em direção a um grande amor.

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O escravo que Machado de Assis censurou

Moralidade e Civilização no Teatro Oitocentista Brasileiro

A maior parte da produção dramática do século XIX no Brasil foi esquecida: poucas peças são mencionadas nos manuais de história literária, menos ainda estão em catálogo e, com raras exceções, quase nenhuma é regularmente encenada. Apesar disso, o teatro era o único meio de comunicação de massa da época e sua importância para a cultura nacional é impossível de ser exagerada.

Em meados do XIX, os palcos brasileiros eram dominados por dois gêneros teatrais muitas vezes indistinguíveis. Os dramas românticos preocupavam-se mais com questões de formação da identidade nacional, frequentemente enfocando momentos-chave da história brasileira. Por sua ênfase na união da nação e na superação de conflitos, essas peças raramente abordavam de frente temas polêmicos como a escravidão.

A escola realista, entretanto, seguiu outro paradigma, com montagens mais comedidas, trocando situações violentas e sentimentalismos por uma objetividade descritiva, abandonando o olhar para o passado e tentando produzir um “daguerreótipo moral” da realidade e costumes contemporâneos. Esses autores se confessavam utilitaristas e moralistas: o objetivo de suas peças seria a regeneração da sociedade tendo por base os valores éticos da nascente burguesia urbana, denunciando males como a prostituição, o adultério, o jogo, o casamento por influência, a usura, a agiotagem. Ao invés dos fatídicos e passionais casos de amor entre reis e marginais, artistas e boêmios, as peças agora apresentam namoros pudicos entre jovens bem comportados, levando a casamentos felizes e bem-ajustados.

Ironicamente, apesar da natureza conservadora dessas peças, um dos seus temas principais era a denúncia da escravidão. O foco, entretanto, era sempre uma defesa feroz da sagrada instituição da família burguesa: a escravidão era um problema social não por suas falhas estruturais, mas porque sujeitava os senhores brancos às tentações da fornicação doméstica.

Escravidão e Teatro

Três das peças mais bem-sucedidas do século, ambas sobre escravidão, exemplificam bem o tipo de abordagem que era não apenas aceitável, mas louvada.

História de uma Moça Rica (1861), de Francisco Pinheiro Guimarães, era ambiciosa: não contente em atacar somente um alvo, o moralismo burguês do autor investia contra os casamentos de conveniência, o adultério, a prostituição e, finalmente, sobre as relações sexuais entre patrões e escravas permitidas pela “vergonhosa instituição”. A escrava mulata Bráulia, precursora de tantas mulatas perversas e sensuais, seduz o marido de sua dona, vira-o contra ela, torna sua situação insustentável até que a sinhá foge e, então, amanceba-se com o senhor—posteriormente, a peça nos informa que ela ainda o envenena.

A mensagem de Pinheiro Guimarães é a mesma que Joaquim Manoel de Macedo também tentaria transmitir pouco depois, com As Vítimas-Algozes (1869): escravos dentro de casa, em proximidade com o senhor, sendo seres perversos e sem moral, eram um perigo constante aos brancos.

História de uma Moça Rica foi uma das peças mais bem-sucedidas na época, sendo publicada em livro no mesmo ano e recebendo fartos elogios de escritores como Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo e Quintino Bocaiúva. O impacto aparentemente foi grande: cinquenta anos depois de sua estréia, o memorialista Escragnolle Dória (1869-1948) ainda se recorda de ouvir uma dama da sociedade dizer que nunca mais teve mucamas em casa:

“Mulatas na minha casa? Eu não quero desgraças. Depois que vi a “Moça Rica”, nunca mais me passam da porta da rua. E é de mais.” (221)

O Demônio Familiar (1857) e Mãe (1860) foram ambas escritas por José de Alencar, um dos autores mais canônicos da literatura brasileira. Por isso, essas peças não apenas ditam o tom que o teatro realista vai seguir e enfatizam o fator moralizante dessa escola, como também mostram que mesmo um autor historicamente ligado à escravidão, como Alencar[1], não fugia ao tema. Entretanto, suas críticas não são nunca aos aspectos estruturais, sociais, políticos ou econômicos da escravidão, mas aos operacionais.

Em O Demônio Familiar, temos um moleque, Pedro, escravo de casa, presumivelmente adolescente: ao se intrometer na vida dos moradores de sua família, algumas vezes por malícia, outras por descuido, Pedro causa uma série de confusões e mal-entendidos, somente solucionados ao final da peça. Por fim, para puni-lo por sua irresponsabilidade, o senhor lhe dá a liberdade, para que agora seja imputável por seus próprios atos.

Precursor de História de uma Moça Rica e As Vítimas-Algozes, o grande alvo da crítica moralizante de O Demônio Familiar são os efeitos perniciosos da escravidão doméstica para a família branca. A escravidão, em si, não parece ser um problema: pelo contrário, é a liberdade que é mostrada não apenas como um castigo, mas como algo que se concede, nunca como uma condição inerente do ser humano—pelo menos, não do ser humano negro.

Em Mãe, uma escrava idosa é secretamente a mãe e protetora do seu senhor, Jorge. Para poder ajudar financeiramente o futuro sogro, Jorge hipoteca a escrava e termina vendendo-a, dando origem a uma das frases mais bombásticas e famosas do teatro dessa era:

“Desgraçado! Tu vendeste tua mãe!”

Quando o segredo é revelado, o próprio sogro, apesar das ajudas que Jorge lhe prestara, admite, aparentemente a contragosto, que o casamento não poderia acontecer:

“Sinto muito, porém… O senhor compreende, a minha posição… As considerações sociais…”

Uma vez mais, entretanto, o foco da crítica de Alencar não parece ser a escravidão como instituição, mas a “facilidade operacional” que ela fornece aos adúlteros e fornicadores. (Mendes 40-61)

Liberdade de Expressão e Censura no Brasil Oitocentista

Durante o Segundo Reinado, o Brasil viveu um período de ampla liberdade de expressão. Segundo Alberto Costa e Silva e José Honório Rodrigues, dois dos mais respeitados historiadores brasileiros, de 1848 a 1880, o país viveu

“os anos de mais absoluta e total legalidade de toda a sua história”.

Não havia cárcere político, o governo garantia as liberdades individuais e fazia-se abertamente a propaganda da República. (385)

Isabel Lustosa, uma das principais especialistas na história da imprensa no Brasil, autora de Nascimento da Imprensa Brasileira (2003) e Insultos Impressos: A Guerra dos Jornalistas na Independência, 1821-1823 (2000), escreveu em um artigo para o jornal O Estado de São Paulo:

“Talvez não seja exagero dizer que foi durante o Segundo Reinado que a imprensa gozou de maior liberdade no Brasil.”

No site da ANJ (Associação Nacionais dos Jornais), na seção História do Jornal no Brasil, um texto disponível em formato pdf, anônimo e sem data, presumivelmente representa a posição oficial da instituição quanto à história da imprensa no país: “Imprensa Brasileira—Dois Séculos de História”. Ele afirma que, em relação à liberdade de imprensa, o Segundo Reinado é incomparável tanto com a situação dos países vizinhos quanto com a própria Era Republicana, enfatizando que o monarca era muito tolerante com críticas pessoais e até mesmo com pregações pela mudança de regime.

Finalmente, José Murilo de Carvalho, talvez um dos maiores especialistas vivos na História do Segundo Reinado, afirma, em sua recente biografia homônima de Dom Pedro II:

“‘A imprensa se combate com a imprensa.’ … Durante a Guerra do Paraguai, o jornal Ba-ta-clan, publicado em francês no Rio de Janeiro por Charles Berry, ridicularizava os chefes militares brasileiros. D. Pedro impediu que fosse fechado, e protestava sempre que alguma violência era exercida contra jornais. … A imprensa nunca foi tão livre no Brasil quanto em seu reinado. … A defesa intransigente da liberdade de expressão tinha alto custo para d. Pedro. Ele, Isabel e o conde d’Eu eram vítimas constantes de ataques de jornais… Diplomatas europeus e outros observadores estranhavam a liberdade dos jornais brasileiros. Schreiner, ministro da Áustria, afirmou que o imperador era atacado pessoalmente na imprensa de modo que “causaria ao autor de tais artigos, em toda a Europa, e até mesmo na Inglaterra, onde se tolera uma dose bastante forte de liberdade, um processo de alta traição”. O ministro da França, Amelot, também registrou em 1887 que havia no Brasil uma liberdade ilimitada de imprensa e ‘parlamentarismo exagerado'”. (Carvalho 84-86)

Naturalmente, não seria difícil de argumentar que o Brasil gozava de tamanhas liberdades justamente por ser uma sociedade tão autoritária, desigual e injusta. Assim como o Brasil nunca necessitou de leis de segregação racial pois a desigualdade econômica já mantinha os negros convenientemente afastados da elite branca, taxas altíssimas de analfabetismo ao longo de todo o século XIX garantiam que era somente a própria elite que escrevia para si mesma. Não seria daí que partiria o perigo: a grande preocupação nacional era uma revolta negra que nos transformasse no Haiti, não qualquer coisa que pudesse ser escrita em um editorial.

Para fins de comparação: em 1871, a Prússia tinha analfabetismo de 15% na população acima de dez anos; no ano seguinte, o Brasil registrava 82% na população acima de 5 anos. (Ferraro 2004)

Censura e Inoperância Artística

Em larga medida, só se censura aquilo que se teme. A liberdade de expressão do bobo da corte é inversamente proporcional ao seu poder: somente tudo fala quem nada pode. Os cafeicultores paulistas eram tão extremamente ciosos de suas prerrogativas quanto qualquer elite: se Castro Alves pôde “cantar os escravos” em plena caverna dos leões é porque jamais ocorreu a ninguém que suas poesias tivessem o poder de influenciar a realidade política e econômica do país.

Já no século XIX, especialmente com a noção burguesa de uma arte engajada e moral cujo objetivo seria didático e prescritivo, alguns autores protestam contra tamanha “inoperância social”: nas palavras de Alberto Pimenta, eles exigem que

“a arte seja sujeita às sanções normais aplicadas a todo o delito verbal, vendo nessa igualdade perante a lei a justificação da sua importância social e a manifestação da sua liberdade.” (9)

Eça de Queirós, por exemplo, em 1871, protestava contra a publicação nos jornais de uma poesia repleta de termos do mais baixo calão que

“nenhum jornal publicaria … em prosa” mas “como se consente então a sua publicação em verso?” (9)

(Machado de Assis teria concordado: em 1878, em uma resenha bastante dura de O Primo Basílio, ele criticava justamente “a obscenidade sistemática do realismo”.)

Ainda sobre a inoperância da arte, Pimenta cita também o autor alemão Alfred Döblin, escrevendo em 1929:

“‘A arte é sagrada’ praticamente não significa outra coisa do que: o artista é um idiota, deixem-no falar à vontade. … ‘A arte é livre’, quer dizer, é totalmente inofensiva, os senhores e as senhoras artistas podem escrever e pintar o que lhes apetecer… A arte, porém, não é sagrada e é lícito proibir obras de arte. É uma ofensa à arte dizer deste modo que ela é sagrada, e torná-la inoperante.” (10)

Impacto Social e Alcance do Teatro Oitocentista

Nossa elite imperial aparentemente não temia a literatura, a poesia ou a imprensa—mas temia os palcos. Mesmo em uma época de surpreendente liberdade de expressão como Segundo Reinado, onde a imprensa e a literatura eram livres, considerava-se necessário controlar e censurar o teatro, único meio de comunicação de massa.

Para leitores do Brasil atual, onde um espetáculo estrangeiro como o Cirque de Soleil consegue milhões em patrocínio público e, ainda assim, cobra entradas maiores que um salário mínimo mensal[2], talvez seja importante enfatizar o impacto social do teatro oitocentista. Por volta de 1860, quando os ingressos mais baratos dos teatros custavam cerca de mil-réis, um mestre-de-obras ganhava cerca de 3.500 réis por dia, um carroceiro, 1.220 réis, um feitor de escravos, 1.500 réis, um carpinteiro, 500 réis. Ou seja, mesmo um trabalhador bastante humilde poderia comprar uma entrada de teatro com somente dois dias de trabalho. (Martins de Sousa 128 n.68)

As plateias dos teatros da Corte eram frequentemente palco (trocadilho intencional) de revoltas, motins, violências e agitações: do ponto de vista do governo, era necessário controlar esse caráter imediato, coletivo e emocional do público. (34) Além disso, a missão do teatro, como vimos, era também moralizante e civilizadora: fazia-se necessário educar essa turba mal-comportada que lotava as galerias dos teatros.

Por fim, o teatro tinha alcance muito maior do que a literatura. Por exemplo, no ano de 1874, a adaptação teatral do romance O Guarani, de José de Alencar, teve 42 apresentações quase sempre lotadas no Teatro Lírico Fluminense. André Rebouças, engenheiro sempre preciso com números, descreveu a capacidade deste teatro em 1870 como sendo de cinco mil pessoas. (287) João Roberto Faria, um dos maiores especialistas em teatro oitocentista brasileiro, cita mil. (1987, 149) Henrique Marinho, também historiador do teatro, menciona 838 lugares e 123 camarotes de capacidades diversas, e conta que, em outra ocasião, tocou ali uma orquestra de trinta pianos e quatrocentos músicos. (70-71) Além disso, sabemos que a peça O Guarani tinha impressionantes 250 atores em cena. Ou seja, de acordo com todas as fontes, era um teatro monumental.

Enquanto isso, a primeira tiragem de O Guarani, em 1857, custeada pelo autor e alta para a época, foi de mil exemplares—dos quais 300 truncados, como o próprio revela em Como e Porque Sou Romancista. Em vida do autor, haveria apenas outras cinco. Em outras palavras, todos os leitores da primeira edição caberiam, com folga, em qualquer uma única apresentação teatral de O Guarani.

Andando pelas ruas do Rio de Janeiro, seria muito mais fácil encontrar espectadores do que leitores de O Guarani: para nós, no século XXI, ele pode até ser um romance de José de Alencar mas, para o carioca médio e consumidor de cultura da época, O Guarani era, antes de tudo, uma peça e uma ópera. Mesmo se levarmos em conta que cada edição poderia ser lida por mais de uma pessoa, ou lida em voz alta para a família, ainda assim o alcance social do teatro era muito mais amplo que o da literatura impressa. Daí a necessidade de controlá-lo.

O Conservatório Dramático Brasileiro e a Censura Teatral

Em um primeiro momento, a tarefa de censurar o teatro cabia à polícia, cujo grande critério era (ou deveria ser) a segurança, proibindo cenas fortes que pudessem ocasionar perturbações, histeria ou violência na plateia. Entretanto, um aviso de 1841 também dava a polícia o poder de censurar peças por ofenderem

“a moral, a religião, a decência pública.”

Em 1843, essas últimas atribuições são (teoricamente) transferidas para o recém-criado Conservatório Dramático Brasileiro, cuja função era realizar a censura prévia das peças que se encenariam no Teatro São Pedro e, depois, em todos os teatros públicos da Corte. (Martins de Sousa 145) Em teoria, a polícia deveria deixar a censura moral e literária nas mãos do Conservatório, mas as duas instituições acabavam entrando em frequentes conflitos.

No caso mais célebre, a polícia proibiu a apresentação da peça As Asas de Um Anjo, de José de Alencar, depois de ela já ter sido não apenas aprovada pelo Conservatório como encenada três vezes no Teatro Ginásio Dramático. Nesses casos de conflito, o vencedor era sempre o mesmo: afinal, a polícia era a polícia, mas o que era o Conservatório?

Por um lado, o Conservatório era uma instituição privada, fundada por alguns dos mais famosos intelectuais e artistas do país, nos moldes do Conservatoire, de Paris, e do Real Conservatório Dramático, de Lisboa, com o objetivo de incentivar a arte teatral, estimular os autores nacionais, fundar uma escola dramática, criar um jornal, etc etc.

Por outro lado, ao receber do governo a atribuição de censurar as peças da Corte, acabou funcionando na prática como um órgão repressivo do Estado—mas duplamente impotente, por não ter nem fundos nem poder punitivo. A atividade censora gerava despesas que o pequeno subsídio governamental não cobria e a instituição, que nunca teve sede fixa mas se reunia alternadamente nas casas dos membros, mantinha-se pelas taxas que cobrava destes mesmos abnegados—que pagavam pelo privilégio de serem censores teatrais. E quando a polícia os desdizia, ou uma companhia teatral os ignorava, simplesmente não havia nada que pudessem fazer.

Sobrecarregado pela atividade censora que lhe consumia todas as forças, o Conservatório nunca pode se dedicar às suas atividades mais, digamos, sublimes e literárias e manteve-se sempre nesse vazio meio-termo: nem público nem privado, um órgão repressivo sem poder repressor, um censor moral sem moral alguma, uma “simples repartição decorativa”, na expressão de Galante de Sousa. (1960, I, 320) Por fim, quando se auto-dissolveu em 1864, em resposta a sua já total irrelevância, o Conservatório recebeu o seguinte obituário de um de seus mais antigos membros, o escritor e dramaturgo Joaquim Manuel de Macedo:

“O Conservatório Dramático Brasileiro não pôde fazer pelas letras e pela arte dramática o que por certo estaria na mente e no empenho do seu principal fundador. O trabalho foi estéril; a dedicação perdida; os resultados nulos. Não tinha sido uma instituição prematura; nasceu, porém, e foi deixada incompleta: nunca mostrou ser o que seu titulo dizia; nunca passou de uma simples auxiliar da censura policial dos teatros, ou antes das obras dramáticas.” (346)

O Zelo Censor de Machado de Assis

De acordo com seus estatutos, o Conservatório poderia censurar peças por ataques à autoridade constituída, por desrespeito à religião e por ofensa à moral pública, sendo que essa última, naturalmente, pode significar qualquer coisa. Vale a pena ressaltar que, mesmo se fossem censuradas e impedidas de chegar aos palcos, as peças poderiam ser livremente publicadas, seja na imprensa ou em forma de livro, o que aliás acontecia rotineiramente.

Para alguns censores mais zelosos, entretanto, as atribuições legais da censura teatral eram muito limitadas. Machado de Assis, por exemplo, defendia que o Conservatório também tivesse o poder de vetar peças por baixa qualidade literária e por mau uso da língua portuguesa. Segundo ele, não bastava uma censura moral sem uma equivalente censura estética, literária e intelectual. Em 1860, aos vinte e um anos, ainda não membro do Conservatório mas já crítico teatral de O Espelho, ele escrevia o seguinte nesse mesmo periódico:

“Julgar do valor literário de uma composição é exercer uma função civilizadora, ao mesmo tempo que praticar um direito de espírito: é tomar um caráter menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberação… Com o direito de reprovar e proibir por incapacidade intelectual, … o Conservatório … deixa de ser uma sacristia de igreja para ser um tribunal de censura. E sabem o que seria então esse tribunal? Uma muralha de inteligências às irrupções intempestivas que o capricho quisesse fazer no mundo da arte, às bacanais indecentes e parvas que ofendessem à dignidade do tablado.” (216-221)

Não foi somente um desabafo intempestivo e ocasional de escritor frustrado, mas sim a fé-de-ofício de um censor zeloso em potencial. Pouco antes, em 1857, adolescente ainda, Machado tivera seu primeiro contato com o Conservatório, ao submeter e ter aprovada sua peça A Ópera das Janelas—que não chegou até nós. (Nunes da Silva 2006 191)

Meros cinco anos mais tarde, em 1862, o colunista de O Espelho já era admitido como membro e, em seu primeiro ano de atividade como censor, ao aprovar a sua revelia o drama Clermont, ou a Mulher do Artista, eis suas palavras:

“Sinto deveras ter de dar o meu assenso a esta composição por que entendo que contribuo para a perversão do gosto público e para a supressão daquelas regras que devem presidir o teatro de um país de modo a torná-lo uma força de civilização. Mas como ela não peca contra os preceitos da nossa lei, não embaraçarei a exibição cênica de Clermont ou a Mulher do Artista, lavrando-lhe todavia condenação literária e obrigando pelas custas autor e tradutor.” (264-265)

E não eram essas as únicas críticas do jovem literato:

“O caderno em que está escrita a comédia Os Nossos Íntimos parece haver saído de uma taverna, tal é o seu aspecto imundo e pouco compatível com a decência do Conservatório Dramático.” (270)

Certamente não é justo exigir que um rapazola de vinte anos, brasileiro sem viagens, oitocentista, pobre e autodidata, se eleve sobre a cultura média do seu tempo e lugar, mas a verdade é que o problema da censura em si, como limitação da liberdade de pensamento, não parecia preocupar a Machado de Assis. (Pontes 30-31)

O Conservatório funcionou de 1843 a 1864, em sua primeira fase, e de 1871 a 1897, em segunda fase—quando os censores passaram a ser finalmente pagos, ao invés de pagar para censurar. (Martins de Souza 208)

Na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, podem ser encontrados dezesseis pareceres emitidos entre 1862 e 1864 pelo jovem censor Machado de Assis, e na Biblioteca Pública do Estado do Maranhão, outros dezenove, de 1886 e 1887. Além disso, o parecer de Machado sobre a peça Os Lazaristas (que gerou intensa polêmica) foi reproduzido na imprensa em 1875. (61-68, 93-94) Todos esses pareceres estão publicados, alguns pela primeira vez, no volume Do Teatro, organizado por João Roberto Faria em 2008.

Não temos como saber se Machado produziu apenas esses pareceres ou se apenas esses sobreviveram ao tempo. Sabemos, entretanto, que em pelo menos uma ocasião ele proibiu a montagem de uma peça especificamente por discordar de sua abordagem da questão escrava.

Cesar de Lacerda e Os Mistérios Sociais

A comédia portuguesa Os Mistérios Sociais, de autoria do dramaturgo e ator Augusto Cesar de Lacerda, havia sido publicada em Lisboa em 1858. Apesar de ter nascido e morrido (1829-1903) nessa cidade, mudou-se para o Brasil em 1863, onde foi recebido com entusiasmo, viveu por muitos anos e fez bem-sucedida carreira nos palcos, escrevendo, publicando e encenando diversas produções. Entre 1863 e 1869, esteve no Rio Grande do Sul e lá escreveu a drama de costumes gaúcho O Monarca das Coxilhas (1867). (Baumgarten 186-187) Segundo o escritor português Fialho de Almeida, era um

“péssimo literato, inculto e mal-preparado, mas um sagacíssimo carpinteiro de teatro.” (Santos Silva 54-55)

Na época, chamava-se pejorativamente de “carpinteiro do palco” aqueles autores que, além de se importarem sobretudo com o sucesso de público, eram antes atores e homens de teatro do que literatos per se—ou seja, exatamente o caso de César de Lacerda. (98)

Edson Santos Silva, em um estudo sobre a presença portuguesa nos palcos paulistas nas décadas de 1860 e 1870, afirma que Lacerda foi uma de suas figuras mais importantes, tanto quanto dramaturgo, ator ou diretor. Além disso, de acordo com o mesmo estudo, Lacerda também teria sido um dos principais autores do gênero conhecido em Portugal como “drama da atualidade” ou “comédias realistas”. (193) Em uma época onde a maioria das peças tinha poucas apresentações, sua obra A Probidade teve oitenta apresentações no Rio e dez em São Paulo—e acrescenta Santos Silva: “para desespero da crítica”. (229)

A peça Os Mistérios Sociais conta a história de Frederico de Lucena, jovem e rico, que aparece subitamente em um ambiente aristocrático, faz amizade com todos, flerta com as mulheres e propõe negócios aos homens. Logo no começo, uma baronesa, trinta anos, rica e bonita, lamenta a falta de homens pra casar, pois

“qualquer homem que possa ser considerado um bom casamento procura achar sempre mulheres em circunstâncias idênticas.” (21)

Já fica patente que, para a baronesa, os cônjuges em um casamento não precisam necessariamente estar em situações iguais. Frederico, depois de se fazer de rico por toda a peça e de conquistar o coração da baronesa, finalmente lhe confessa não apenas que é pobre, mas uma vergonha muito maior, ex-escravo:

Frederico: Além de ser pouco mais de pobre, sou também plebeu. Tenho parentes, … até operários. Sou filho d’uma escrava, … e não tenho pai. Vivo só no mundo. Quer ser minha companhia, ir comigo para o Novo México gozar não as comodidades d’uma capital, mas sim a vida poética dos sertões?

Baronesa (com fogo) Quero tudo isso!

Frederico (tomando-lhe a mão) Por amor?

Baronesa (a meia voz, mas com fogo) Por amor! ” (126-7)

Mais adiante, naturalmente, ele confessa ser de fato muito rico.

“Então enganou-me?”,

pergunta a baronesa. E Frederico responde:

“não queria um negócio, queria amor!”

E, ao lado, comenta seu amigo médico:

“Se todos fizessem esses experimentos, não haveria tantos casais desgraçados!” (128)

Contando, então, a história de sua vida, Frederico confessa que sim, possui escravos, mas pinta um quadro rosado da escravidão:

“Não [tenho escravos], minha senhora. Há em minha casa alguns homens e mulheres, que me servem, a quem o mundo chama meus escravos; porém tenho a felicidade de eles mesmos se chamarem….—meus amigos! … Não se pode pintar com verdade uma cena da escravatura e muito menos nas circunstâncias daquela. Os escravos de uma propriedade rural, depois de alguns anos, são todos parentes e amigos íntimos. Quando chegam a ser vendidos e comprados para diferentes pessoas, é um quadro de lástima, de miséria, de desgraça…” (136-7)

O médico, contando como chorou ao ver um leilão de escravos, afirma:

“depois de já não poder chorar, pus-me a rir de ver como os homens desse século gritam por aí por liberdade individual.” (137)

Todo o estratagema de Frederico tivera como objetivo constranger o Visconde, seu pai natural, não a reconhecê-lo, pois Frederico enriqueceu e já não precisa mais disso, mas a dar parte de sua fortuna para sustentar a família que abandonara na América, sua velha mãe e muitos irmãos, que passavam fome. Como pudemos ver, a peça nunca questiona a validade ou moralidade da escravidão, somente a perfídia do visconde em vender sua amante e seu filho bastardo como escravos. Pelo que é mostrado, a escravatura não é estruturalmente má, pois, com um senhor bondoso como Frederico, escravos e senhores tornam-se amigos e se congregam em uma grande família.

Os Primeiros Censores de Os Mistérios Sociais

Aos nossos olhos do século XXI, o enredo da peça parece essencialmente inócuo. Não é uma impressão tão anacrônica assim, pois é compartilhada por seu primeiro censor brasileiro, Francisco Joaquim Bithencourt da Silva, em 1859:

“moralizadora e honesta, nada contém a presente comédia que impeça sua apresentação.” (Parecer manuscrito, 15/05/1859)

O segundo censor, entretanto, Antonio José Vitorino de Barros, censurou a peça nos mais duros termos, ressaltando todo o seu enorme potencial subversivo e iluminando os limites da tolerância da elite literária brasileira quanto à representação da escravatura nos palcos.

“Pergunto agora: casar uma fidalga de sangue azul com um homem que nasceu escravo, tendo ela consciência dessa condição, sendo ele opulento e ela arruinada pelo jogo, não é premeditar e executar o envilecimento da condição livre só porque é nobre? … Arvorar um liberto em Monte Cristo sem assinalar os meios razoáveis com que em menos de dez anos adquiriu hábitos de conde, variada instrução, fortuna fabulosa, não é criar um mito, uma alegoria, um símbolo que mostra a facílima possibilidade com que do nada se passa ao tudo? … Oferecer em espetáculo a desonra … nos salões da grandeza e da abastança, contrastando-a com a honra, rodeada de seguranças nos pardieiros da miséria, só porque é miséria, não é fulminar sátiras contra a educação da alta sociedade e cantar epopéias ao embrutecimento, que não tem cabedal para polir-se nem mesmo para educar-se? … Querer estabelecer uma colônia modelo composta dos mais depravados … de todas as cidades e vilas do continente europeu … não será o requinte do socialismo? Não será irrogar censura à classe dos operários laboriosos e empregadores, que se emancipam das necessidades, ganhando com honra e louvável esforço o pão cotidiano? Não será isso uma irrisão? Uma grave ofensa ao bom-senso? … É tudo mistificação, um culto à utopia. … Mas enquanto penso que a literatura contemporânea é mantida por uma legião de iconoclastas, e que o Sr. Lacerda, nos seus Mistérios Sociais também alçou o alvião para no seu país construir destruições, também brandiu o cutelo pra decepar as primazias impostas às superioridades estabelecidas, [e por isso] não poderei dar meu voto para que seu drama seja representado em nossos teatros.” (grifos meus; parecer manuscrito, 16/06/1859)

Reparem como simplesmente retratar pobres honrados e ricos fúteis já é visto como subversão, pra não falar da “facílima possibilidade” de ascensão social. O censor então dá alguns conselhos bem-intencionados ao autor:

“resista às tentações do demônio das destruições, evite malbaratar o talento com a condenação de males imaginários ou exagerados, reserve a maior parte dele para entoar cânticos à virtude, que não é só o apanágio das classes ínfimas da sociedade, mas também o de outras, que, por serem elevadas, nem sempre estragaram e perderam a consciência do justo e do honesto.” (idem)

E, por fim, o censor decreta suas condições para permitir a montagem:

“[S]em o desaparecimento da condição servil de Frederico de Lucena, protagonista da peça, o que a fará mudar de fundo e de forma, não pode ela subir a cena. … É infelicidade nossa haver escravos em nosso país, mas uma vez que os há, e fora mesmo impolítico e ruinoso abrir mão deles nem substituí-los por braços livres de tão difícil aquisição, é além de inconveniente perigosa a representação de um drama cujo herói nasceu escravo. Não é por timidez que o digo, é para prevenir os excessos a que obriga a conquista da liberdade, a possibilidade de cenas de insurreições que têm ensangüentado algumas províncias do Império e a freqüência de processos e execuções de assassinos de seus senhores.” (idem)

Ou seja, o censor reconhece que a conquista da liberdade exige alguns excessos, excessos esses que devem ser prevenidos a todo custo. Sua posição política é representativa da opinião pública da elite escravista imperial: apesar de ser contra a escravidão, essa infelicidade!, ele não faz nada para acabar com ela, pois isso seria impolítico, ruinoso e inconveniente. Podemos assim compreender melhor o curioso fenômeno de o Brasil ter sido o último país ocidental a abolir a escravidão, ao mesmo tempo em que ninguém a defendia abertamente[3] e todos a lamentavam profundamente.

Edson Santos Silva, estudando as peças portuguesas encenadas em São Paulo no final do XIX, concorda em larga medida com os pontos levantados pelo segundo censor: aponta o maniqueísmo da peça, onde aristocratas são sempre maus e operários, bons. O dinheiro, inclusive, torna-se vil quando na mão dos ricos, mas útil na mão dos pobres, que o utilizam de forma filantrópica e fraterna. E conclui:

“o que se viu em cena foi a apoteose do trabalho honrado, da nobreza da alma e da inocência e, ato contínuo, elogio da generosidade, da honra e da solidariedade do mundo operário.”

Não apenas essa, mas as outras peças de Lacerda contavam com diversos personagens operários, serralheiros, trabalhadores, constantemente fazendo uma

“apoteose do trabalho como única ferramenta de ascensão social”. (195-7)

Machado de Assis e Os Mistérios Sociais

Três anos depois dos pareceres acima, em 1862, a peça Os Mistérios Sociais ainda estava tentando ser encenada e, dessa vez, o censor foi Machado de Assis. As peças eram constantemente submetidas ao Conservatório, censuradas, modificadas e então resubmetidas. Teoricamente, depois de vetada, uma peça só poderia ser enviada para nova censura se sofresse as mudanças pedidas pelos censores—o que gerava uma multiplicação de versões.

Ou seja, não temos como saber se a versão avaliada por Machado em julho de 1862 era igual à versão finalmente encenada no mês seguinte, ou à versão original publicada em Lisboa em 1858 ou às versões submetidas ao Conservatório em 1859.

O jovem censor já conhecia a obra do dramaturgo: em 1859, mesmo ano da primeira censura citada acima, Machado escrevera um artigo sobre a obra de Cesar de Lacerda para O Espelho, demonstrando familiaridade com pelo menos três de suas peças:

“O elemento democrático é uma proeminência em algumas das composições de Cesar de Lacerda. … paralelo frisante entre a aristocracia e a classe ínfima, entre o salão e a oficina, … entre a luva e o martelo. Toda a vantagem fica ao mundo das pobrezas honestas. … alcançou da plateia os aplausos significativos de um duplo instinto moral e social.” (197)

De qualquer modo, a opinião de Machado sobre a nova peça do autor que ele já anteriormente elogiara foi a seguinte:

“A teoria filosófica não reconhece diferença entre dois indivíduos que como aqueles [Frederico e a Baronesa] tinham as virtudes no mesmo nível; mas nas condições de uma sociedade como a nossa, este modo de terminar a peça deve ser alterado. Dois expedientes se apresentam para remover a dificuldade: o primeiro, é não efetuar o casamento; mas neste caso haveria uma grande alteração no papel da baronesa, supressão de cenas inteiras, e até a figura da baronesa se tornaria inútil no correr da ação. Julgo que o segundo expediente é melhor e mais fácil: o visconde, pai de Lucena, teria vendido no México sua amante e seu filho, pessoas livres; este traço tornaria o ato do visconde mais repulsivo; Lucena dar-se-ia sempre como legalmente escravo. Este expediente é simples. Na penúltima cena e penúltima página, Lucena depois de suas palavras: “Ainda não acabou”; diria: “Uma carta de minha mãe dava-me parte de que éramos, perante a lei, livres, e que entre a prostituição e a escravidão ela resolveu guardar silêncio e seguir a escravidão cujos ferros lhe deitara meu pai.” … Feitas estas correções julgo que a peça pode subir à cena”(273-275)

As peças eram sempre analisadas por, no mínimo, dois censores, mas não conseguimos encontrar os outros pareceres dessa avaliação, de julho de 1862. No mês seguinte, a 13 de agosto, a peça estreava no Ateneu Dramático. Em anúncio publicado nos jornais na mesma semana, a companhia teatral afirmava ter feito as modificações necessárias para a aprovação. (Galante de Sousa, 1956, 89)

Também era razoavelmente comum que as companhias, para evitar o confronto direto, adotassem o seguinte estratagema: em caso de censura, faziam as modificações necessárias até conseguir a aprovação e, então, malandramente encenavam a versão original como se nada tivesse acontecido, sem levar ao palco propriamente dito nenhuma das alterações pedidas. (Galante de Sousa, 1960, I, 320)

O estudo de Edson Santos Silva, que registra cuidadosamente todas as peças portuguesas encenadas em São Paulo entre 1864 e 1898 e cita César de Lacerda como um de seus atores, dramaturgos e diretores mais encenados, não lista nenhuma produção de Os Mistérios Sociais.

Chegando ao Brasil em janeiro de 1863, poucos meses depois da estreia de Os Mistérios Sociais e com tantas outras peças em seu múltiplo repertório, Lacerda pode bem ter achado melhor evitar os imprevisíveis incômodos políticos de casar, no palco, em pleno império escravista, uma baronesa a um ex-escravo.

Outro Casal Interracial Censurado

Em sua tese de doutorado sobre o Conservatório, Luciane Nunes da Silva dedica toda uma seção a Antonio José Vitorino de Barros, o segundo e entusiasmado censor citado acima, aquele que considerou Os Mistérios Sociais “o requinte do socialismo”. Ele foi um dos censores mais ativos, prolixos, intolerantes e conservadores do Conservatório. Escritor medíocre de poucas obras, sua atividade censora com certeza era uma das mais importantes validações do seu status social de homem de letras.

Para fins de nosso artigo, é interessante citar sua censura a Dr Fabiano (tradução da francesa Le Docteur Noir, de Anicet Bourgeois), uma peça onde um médico negro se sacrifica para salvar a vida de sua esposa, uma filha de marquês—branca, naturalmente. No final da história, a certidão de casamento de ambos acaba tornando-se um poderoso símbolo de liberdade. Para Vitorino de Barros, entretanto, escrevendo em 1859, era somente um símbolo da profanação das “leis da natureza”, uma heresia em relação às regras das sociedades civilizadas:

“O enredo … desde a cena inicial até a última palavra do desenlace ofende o decoro e os costumes de nossa terra atulhada de negros. .. Não há pois motivos para uma cruzada em favor dos negros nem razão para que belezas de cor branca se apaixonem por eles a ponto de sacrificar o sentimento do pudor, os deveres de família, a obediência filial, o respeito à sociedade que é implacável. … Tão descomunal é o fato de relações privadas da mulher branca com o homem de cor preta, que quando se dá tal acontecimento, elas, cônscias do escândalo, são as primeiras que se esforçam em ocultá-lo. Apenas algumas desgraçadas gastas pela crápula e urgidas pela miséria, que a desventura, fazem alarde dessas relações, mas também por isso a moral pública as julga ainda em vida cadáveres putrefatos insepultos para inspirarem um asco e horror e darem farto cevo à fome depravada dos vampiros. … Não vá alguém averbar-me de “negrófago”. … Quero o bem dos negros, como o de todos os indivíduos de outras cores; desejo-os felizes, mas o que não quero é o caos, a anarquia, a desmantelação dos costumes. Mostrar que o casamento de um negro com uma branca, seja de que hierarquia for, é um escândalo, principalmente na sociedade brasileira, não é perseguir o negro, ofendê-lo, nem condená-lo ao celibato. Há belezas de todas as cores; casem os pretos com os pretos; é isto muito mais conforme as leis da natureza e sobretudo com as consuetudinárias que regem os povos cultos. … Só o furor da seita de que se acham tomados os modernos iconoclastas, sacerdotes do extravagante realismo, é que poderia engendrar semelhante prostituição de tudo quanto na sociedade tem sido respeitado pelo perpassar do século. … Quanto a mim, o drama em questão deve ser condenado à perpétua reprovação. (Citado em Nunes da Silva 2006 173-185)

Não cabe uma análise mais detalhada das fascinantes opiniões de Antônio José Vitorino de Barros. O discurso conservador apocalíptico que alerta para o fim do mundo caso negros casem com brancos, ou homens casem com homens, não é novidade nem no século XIX nem no XXI—e só é moderadamente divertido quando visto de muito longe.

Talvez o mais surpreendente seja se dar conta que, entre as razões de Machado de Assis para censurar a baronesa e o ex-escravo de Os Mistérios Sociais e as de Vitorino de Barros para censurar o médico negro e a filha do marquês de Dr Fabiano, a única diferença é o estilo mais elegante e discreto do Bruxo do Cosme Velho.

A Miscigenação Excluída dos Palcos

Algumas das peças mais bem-sucedidas do século XIX no Brasil tiveram a escravidão como tema: História de uma Moça Rica, O Demônio Familiar e Mãe. Por outro lado, como vimos, algumas peças eram censuradas justamente por apresentarem representações inaceitáveis da escravidão: Os Mistérios Sociais e Dr Fabiano.

Além disso, mesmo quando não abertamente censuradas, peças que ousassem problematizar o incômodo flertavam com o ostracismo. Duas das melhores peças brasileiras do século XIX, em pleno momento de formação de nossa identidade nacional, tiveram a temeridade de abordar não apenas os paradoxos da escravatura mas também os desafios da miscigenação. As senhorinhas da boa sociedade carioca, que tanto aplaudiram o final de O Demônio Familiar quando o moleque Pedro é alforriado como punição, não aplaudiram nenhuma dessas duas peças—ao mesmo tempo tão provincianas mas também tão avançadas em relação ao que se fazia na Corte.

Em Calabar, drama romântico escrito pelo baiano Agrário de Menezes em 1856, a traição do personagem-título e seu bandeamento para o lado holandês teria se dado por sua condição de mulato, que o impediria de ser aceito pelos portugueses. Ao lançar perguntas sobre a traição, a peça questionaria conceitos como pátria e nacionalidade, amor e liberdade, ensaiando uma

“tentativa de perceber o homem em sua totalidade”. (Cafezeiro 159)

Além de problematizar o racismo da sociedade colonial (e, por extensão, na sociedade contemporânea), a peça também construiria a cor negra como raiz da nacionalidade brasileira:

“o mulato é brasileiro, como o é a índia Argentina, porque eles não podem de forma alguma ser portugueses.” (Prado, 1996, 151)

Para Míriam Mendes, o protagonista mantém uma espécie de dignidade inatingível ao longo de toda a peça, transmitindo a impressão de estar predestinado ao sofrimento e à dor, e de saber

“enfrentar com o ânimo dos fortes o fim por ele mesmo … buscado”,

convertendo-se, assim, no único herói trágico de toda a dramaturgia brasileira do século XIX. Entretanto, apesar de todas essas qualidades, Agrário de Menezes (membro-fundador do Conservatório Dramático Baiano e administrador do principal teatro de Salvador, o São José) enviou sua peça para o Conservatório Dramático Brasileiro e nunca obteve resposta. Acabou imprimindo-a por conta própria em 1858: que se saiba, nunca foi encenada nem ao menos uma vez. (Prado, 1996, 146-152; Azevedo,  x-xiii; Mendes, 60-76)

Sangue Limpo (1861), de Paulo Eiró, é talvez a única peça romântica a abordar diretamente o tema da escravidão. Em resposta a um concurso do Conservatório Dramático Paulista destinado a premiar o melhor drama original sobre algum de nossos

“gloriosos episódios da nossa história”,

Eiró, ao invés de escrever o panegírico patriota que se esperava, decidiu abordar os temas espinhosos da escravatura e da miscigenação, tendo como pano de fundo a proclamação da Independência.

A história é simples: uma mulata, irmã de um sargento negro e livre, se apaixona por um branco rico: tanto o irmão dela quanto o pai dele ficam contra o relacionamento, por ser inconveniente e antinatural. A escravidão entra no deus ex machina na trama, quando um escravo fugido de nome Liberato mata o pai do rapaz, deixando-o livre para casar com a amada, mesmo que contra os desejos do irmão.

De acordo com Miriam Mendes (97-109), além de sua abordagem da miscigenação, a grande novidade da peça é a presença de uma família de negros livres, honrados e dignos, não caricatos, nem bestializados nem idealizados. Para Décio de Almeida Prado, a peça não poderia colocar com mais clareza o problema da raça no Brasil: o modelo oferecido por ela primaria pela ousadia moral e pela modernidade, com uma perspectiva democrática e incrivelmente igualitária para a época. (Prado, 1996, 161-170)

Entretanto, apesar de todas essas qualidades, Sangue Limpo não apenas não ganhou o concurso como foi muito mal recebida em sua primeira e única apresentação: o fracasso fez Paulo Eiró desistir da literatura, mergulhar numa depressão profunda e, segundo alguns, enlouquecer; morreu esquecido no Hospital de Alienados. A peça Sangue Limpo foi publicada em 1863 por seu irmão, a sua revelia, e nunca nem mesmo distribuída: até pelo menos a década de 1940, grande parte da primeira e única edição ainda estava encaixotada na casa da família do autor. (Schmidt)

Talvez não seja coincidência que as peças censuradas eram estrangeiras, ou seja, não fluentes no código do aceitável; as bem-sucedidas e bem-comportadas, da Corte, completamente inseridas no esquema do establishment; as esquecidas e ousadas, das províncias—ao mesmo tempo, desatualizadas das correntes estilísticas modernas (como o realismo burguês moralizante recém-chegado de Paris), mas também mais livres para ousar pensar o que não se pensava na capital.

Esboço de Conclusão e Um Convite

Do ponto de vista da história cultural, onde é mais importante compreender o processo de formação do pensamento do que avaliar esteticamente as produções artísticas, onde a crítica ideológica tem prioridade sobre a estética, o Conservatório Dramático Brasileiro se apresenta como ponto ótimo de análise. (Lopes 2010)

Como vimos, no Brasil oitocentista, o teatro era o único meio de comunicação de massa capaz de atingir tanto as classes altas quanto baixas, de construir uma ideia unificada supraclassista de nação, de moralizar e civilizar as turbas populares. Por isso, em uma sociedade com livre expressão tão surpreendentemente ampla quanto o Segundo Reinado, a censura teatral era uma das únicas exceções. Mesmo uma peça de mediano sucesso podia ter um impacto cultural maior do que um livro de grande vendagem.

E o Conservatório Dramático Brasileiro, ao se erigir guardião dos palcos, coloca-se em posição privilegiada para determinar, afinal, o que é ser brasileiro? Quem somos nós enquanto povo? O que é a cultura brasileira? O que nos distingue e nos define?

Mais ainda, o Conservatório tinha uma importante função tautológica: por um lado, só a elite letrada podia fazer parte do Conservatório e, por outro, ser aceito no Conservatório (e em outras organizações governamentais, como o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil) era um dos marcadores mais oficiais e concretos do pertencimento a essa elite. Ou seja, o indivíduo era membro do Conservatório por fazer parte da elite intelectual e fazia parte da elite intelectual por ser membro do Conservatório.

Apenas por existir, o Conservatório já decidia quem era elite intelectual e quem não era. Uma vez lá dentro, essa mesma elite decidia quais temas, assuntos, autores poderiam ser encenados nos palcos da cidade. Por isso, também, os pareceres do Conservatório acabam se tornando um laboratório e uma vitrine para entendermos novas facetas de autores canônicos. Estavam quase todos lá: de Martins Pena a Machado de Assis, de Gonçalves de Magalhães a Joaquim Manoel de Macedo.

Vale a pena repetir: se hoje a memória da peça O Guarani se perdeu completamente mas o livro ainda vive em reedições baratas lidas em todas as escolas, no final do século XIX provavelmente era mais difícil encontrar um dos poucos leitores do romance do que algum dos muitos espectadores da peça—com a memória ainda fresca dos monumentais efeitos especiais, dos 250 figurantes em cena e da enchente do Rio Paquequer em pleno palco!

Para nós, no século XXI, não é fácil conceber o impacto do teatro nessa sociedade: nomes canônicos e consagrados, como João Caetano e Vasques, verdadeiros ídolos das multidões, já não nos dizem nada, porque nunca os vimos atuar; peças canônicas e consagradas, assistidas por centenas de milhares de pessoas, já não nos dizem nada, pois caíram no esquecimento.

Hoje, muitas vezes, tentamos entender toda uma época estudando um poeta obscuro que só veio a ser lido e apreciado décadas mais tarde, e negligenciamos as peças que mobilizavam o país, geravam debates, fundavam estéticas, estabeleciam narrativas, moldavam sensibilidades—que criavam, no palco, dia a dia, nossa própria ideia do que significava ser brasileiro.

Sob esse aspecto, poucas instituições brasileiras do século XIX foram tão canônicas como o Conservatório—tanto pelas peças que censurou quanto aprovou, tanto pelas mudanças que propôs quanto pela autocensura que condicionou. Mesmo com toda a sua debilidade institucional, com suas rixas com a polícia, com sua crônica falta de dinheiro, com sua obsessão por uma respeitabilidade quimérica que sempre lhe escapava, até nisso o Conservatório nos definia e nos caracterizava: forte ou fraco, solvente ou quebrado, respeitado ou ludibriado, todas as peças, todos os dramaturgos, todas as companhias tinham que passar pelo Conservatório; aceitando suas regras ou ludibriando-as, ainda assim, estavam sempre em diálogo.

Nos palcos brasileiros, com o apoio institucional do Conservatório, surgiram alguns dos nossos arquétipos culturais mais característicos. Para as personagens femininas, ainda mais sendo a prostituição talvez o tema principal do teatro realista, não havia meio-termo: ou eram deusas do lar, pudicas e puras, ou eram decaídas e perversas, sem chance de redenção.

As personagens negras também aprenderam, nos nossos palcos, onde era o seu lugar: aparecerem o fiel preto véio (Gonzaga, Mãe), o negrinho peralta (O Demônio Familiar), a mulata sensual e insidiosa (História de uma Moça Rica), etc. Quando algum personagem ameaçava transbordar sua função ou acinzentar seu branco-e-preto (como a família de negros livres em Sangue Limpo ou os casamentos interraciais em Os Mistérios Sociais e Dr Fabiano), as consequências eram censura, represália e esquecimento.

Em As Asas de Um Anjo, José de Alencar contou a história mais antiga do mundo (a prostituta decaída) mas ousou regenerar sua personagem no último ato e dar-lhe um casamento feliz: apesar de aprovada pelo Conservatório, a peça causou enorme polêmica na imprensa e foi proibida pela polícia depois da terceira apresentação. Para a moral da época, uma vez prostituta sempre prostituta: que mensagem o teatro estaria passando para as moças de família se sugerisse ser possível lavar a nódoa do meretrício com um casamento? (A moral da nossa época, infelizmente, não parece muito diferente: somos mais tolerantes com peças e com filmes, mas não com as escolhas de vida das próprias prostitutas de carne e osso.)

Por tudo isso, para o historiador das mentalidades, o Conservatório Dramático Brasileiro configura-se um ponto ótimo para o estudo da sociedade brasileira do século XIX: suas prioridades e seus preconceitos, o que a fazia rir e o que a fazia chorar, o que permitia e o que proibia encenar, o que aclamava e o que ignorava. Durante muito tempo, o assunto foi praticamente ignorado e, somente nos últimos anos, começaram a aparecer alguns trabalhos de mais fôlego voltados exclusivamente ao Conservatório. [4] O que restou do arquivo do Conservatório está na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, esperando pelos próximos pesquisadores dispostos a explorá-lo. O convite está aberto.

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Alex Castro é doutorando do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, na Louisiana.

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Agradecimentos ao Stone Center for Latin American Studies e à School of Liberal Arts da Universidade de Tulane, por duas bolsas de viagem que permitiram a pesquisa original para esse artigo, em 2006 e 2009, respectivamente; a Alexandre Nodari, pela indicação do artigo do Pimenta; a Mariana Amorim, pela ajuda com os manuscritos da Biblioteca Nacional; ao professor João Roberto Faria, pelos emails respondidos com tanto carinho.

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Notas

[1] Sobre o engajamento de Alencar na causa escravista, ver: Cartas a Favor da Escravidão. São Paulo: Hedra, 2008.

[2] Algumas referências: “Lei Rouanet”, in Revista Raiz, SP, nº6, s/d, disponível em <http://revistaraiz.uol.com.br>, acessada em 16 de outubro de 2010; “Comissão de educação deve votar procultura depois das eleições.” in Jornal da Câmara, Brasília, 17-23 de setembro de 2010, pp.8-9, disponível em <http://www.youblisher.com/p/52450-Jornal-da-Camara-Edicao-Semanal-17-a-23-de-setembro-de-2010>, acessado em 16 de outubro de 2010.

[3] Uma das poucas exceções eram as cartas anônimas que Alencar escrevia ao Imperador através da imprensa. Ver nota 1

[4] Entre eles, podemos destacar: “Censura Teatral na Corte: O Conservatório Dramático Brasileiro (1843-1864)”, de Mariana de Oliveira Amorim, monografia de graduação na UFRJ em 2008; “O Conservatório Dramático Como Projeto Civilizatório: A Retórica da Cena e do Censor no Teatro Imperial“, de Múcio Medeiros, tese de mestrado na Uni-Rio em 2010; “O Conservatório Dramático Brasileiro e os Ideais de Arte, Moralidade e Civilidade no Século XIX“, de Luciane Nunes da Silva, tese de doutorado na UFF em 2006—todos disponíveis na internet.

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Pareceres Manuscritos do Conservatório Dramático Brasileiro

(Disponíveis na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro)

Francisco Joaquim Bithencourt da Silva, Parecer sobre a peça Os Mistérios Sociais, 15/05/1859

Antonio José Vitorino de Barros, Parecer sobre a peça Os Mistérios Sociais, 16/06/1859

Bibliografia

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* * *

Artigo originalmente publicado na revista Afro-Hispanic Review, vol.29, número 2, outono de 2010. A versão acima, extendida, tem 9 mil palavras e é substancialmente maior que a versão publicada na revista – 6 mil palavras. Portanto, se você ler aqui e não lá, tem que citar o site e não a revista, pois pode estar citando um trecho que existe no site mas não na revista.

Para citar:

Castro, Alex. “O escravo que Machado de Assis censurou & outros pareceres do Conservatório Dramático Brasileiro”. in Alex Castro. 8 de agosto de 2011. Acessado em <data em que você leu>. Disponível em <https://alexcastro.com.br/machado>.

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textos

poema aos escritores retos

nunca conheci escritor confessadamente ruim.
todos os meus conhecidos têm sido brilhantes em tudo.

e eu, tantas vezes preguiçoso, tantas vezes mal articulado,
eu tantas vezes irrespondivelmente solitário,
indesculpavelmente arrogante,
eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para puxar sacos,

eu, que tenho sido invisível aos resenhistas de suplemento,
eu, que tenho sentido os olhares superiores dos publicados,
eu, que tenho feito vergonhas literárias, conjugado sem concordar,
eu, que, quando a hora do debate surgiu, me tenho afastado
para fora da possibilidade da porrada;
eu, que tenho sofrido a angústia dos pequenos contos ridículos,
eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo literário.

todo escritor que eu conheço e que fala comigo
nunca teve um conto ruim, nunca sofreu de crônica apressada,
nunca foi senão shakespeare – todos eles shakespeares – na vida…
quem me dera ouvir de alguém a voz humana
que confessasse não uma perseguição editorial, mas um fracasso próprio;
que contasse, não uma rejeição injusta, mas uma merecida!
não, são todos o Ideal, se os leio e de si falam.
quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez escreveu mal?
Ó, são todos machados os meus irmãos,

arre, estou farto de gênios da literatura!
onde é que há escritores medíocres no mundo?

então só eu sou imaturo e despreparado nesta terra?
poderão os editores não os terem publicado,
podem ter sido rejeitados – mas por serem ruins nunca!
e eu, que tenho sido ignorado por justo merecimento,
como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
eu, que tenho sido ruim, literalmente ruim,
ruim, no sentido mesquinho e infame da ruindade literária.

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textos

amor ilimitado

Estou hospedado na casa de uma leitora no Flamengo. Ela se sente em dívida comigo, pois meus textos a ajudaram muito em uma situação específica da sua vida. Eu já repeti diversas vezes que ela não me deve nada mas agradeço a hospitalidade.

* * *

Barry White morreu em 2003, aos 58 anos, por falta de um doador de rim.

Se todas as pessoas que foram concebidas ao som de “You’re the First, the Last, My Everything” desaparecessem de repente, as ruas ficariam mais desertas do que durante o Arrebatamento. Sou de 1974; minha geração seria extinta.

E ninguém foi capaz de dar um rim pra esse homem.

* * *

Não espero nada de ninguém mas sou grato por tudo que recebo. Obrigado, Sônia.

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textos

avisos

no metrô de são paulo, as cabines das bilheterias avisam que são blindadas. sabe como é, pra você não correr o risco de tentar metralhá-las e desperdiçar suas balas.

* * *

em nova iorque, na década de oitenta, havia adesivos de carro que diziam: “no radio, thanks“. obrigado por não arrombar o meu carro pra roubar o rádio que eu nem tenho.

* * *

a raposa sabe que sua única chance de pegar um coelho é surpreendendo-lhe. então, vai se aproximando matreira e silenciosa. se o coelho percebe, faz um gesto com a orelha e a raposa imediatamente vai embora. assim, ninguém perde tempo e energia em uma perseguição inútil.

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aptidão para a felicidade

alto da lapa, são paulo, nove da noite. estou voltando do trabalho, cansado, passo em uma americanas express pra comprar pasta de dente. no meio da compra, entra na loja uma moça baixa, peituda, de cabelos encaracolados. o menino do caixa, alto, moreno, pára de registrar minha pasta de dente e vai abraçá-la. menina, finalmente você chegou, minha companhia da madrugada, que SAUDADE! os peitos da moça sacudiam-se para todos os lados com o entusiasmo do abraço. há muito tempo eu não via alegria tão genuína. quem é feliz no turno da madrugada de uma americanas express é porque tem uma autêntica aptidão para a felicidade.

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textos

deixa eu falar

uma peixaria na lapa, terça à noite, mesas na calçada. o moço repetia em altos brados: “deixa eu falar, deixa eu falar”. e falava. a moça à sua frente, loira, mais alta, mais paciente, nunca abria a boca. mesmo assim, daqui a pouco, ele bradava de novo: “deixa eu falar, deixa eu falar.” e falava mais. ela só sorria.

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a vendedora de rosas e o vendedor de suflair

um dia frio de inverno em frente à estação vila madalena. o vendedor de suflair (dois reais cada) oferece um chocolate para a vendedora de rosas (cinco reais cada). ela recusa, com carinho. diz que iria ficar com sede. aí teria que tomar alguma coisa. aí teria que ir no banheiro. e que se começasse a gastar dinheiro bebendo já não valeria mais a pena ficar ali. ele pergunta quantas flores ela vende por dia. vinte, ela diz, em um dia bom. e quanto você paga pelas rosas? um buquê sai por vinte reais e tem mais ou menos vinte rosas. então é um real por rosa? mais ou menos. tem sempre umas murchas. depois, tenho que separar uma por uma e enrolar no plástico, sabe? sei. ela está toda encolhidinha de frio, com um cachecol azul, e ele não resiste, oferece de novo. não quer mesmo um suflair? e então ela aceita. ou espero que tenha aceitado. minha carona chegou e abracei minha linda amiga flávia.

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entropia

o porta-retratos sem retratos

dormi recentemente na casa de uma moça formada em letras. havia um porta-retratos vazio na estante.

em algum momento, presumo, a moça abriu o porta-retratos e retirou dali seja a foto antiga (amigo estremecido? ex-namorado?) ou foto genérica que veio da loja.

então, com o porta-retratos aberto em sua frente, ela poderia ter simplesmente já colocado uma nova foto (amiga recente? sobrinho recém-nascido?) ou guardado o porta-retratos em uma gaveta à espera de momentos recordáveis.

ao invés disso, ela fechou o porta-retratos sem retratos e o colocou, montado, de pé, em lugar de destaque em sua estante. para todo mundo ver o nada. como se fosse o próprio vazio aquele ente querido cuja imagem ela quer preservar, acarinhar, rever.

* * *

um dos livros mais importantes da minha vida é o mumonkan ou, em português, a porta sem porta.

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rio de janeiro textos

a continuidade das mudanças

passo meus dias andando pelo rio, olhando e absorvendo tudo, sedento e feliz, identificando com atenção cirúrgica cada coisinha que mudou, cada marca que sofreu redesign, cada linha de ônibus com novo número.

é um alívio delicioso, sabe?

se nada tivesse mudado, teria sido apavorante e assustador. como se a cidade não tivesse existência longe da minha ó-tão-luminosa presença.

se tudo tivesse mudado, teria sido assustador e apavorante. como se a cidade tivesse somente me esperado virar de costas para se refazer sem mim.

então, nada pode ser mais acolhedor do que pequenas mudanças dentro de uma enorme continuidade. o novo metrô de ipanema, a futura ponte do fundão, a ausência do moinho marilu. o rio se faz meu até nas mudanças que realizou na minha ausência.

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rio de janeiro

gelosias e grades

A arquitetura mourisca de Alhambra e a arquitetura norte-americana da Barra da Tijuca têm mais em comum do que se pode imaginar: as gelosias proibidas de ontem são as grades disseminadas de hoje.

* * *

Um dos primeiros editais do Intendente Geral da (recém-criada) Polícia do Rio de Janeiro foi proibir as rótulas e gelosias nos sobrados da cidade (11 de junho de 1809). Para Joaquim Manoel de Macedo, escrevendo suas “Memórias da Rua do Ouvidor” em 1878, gelosias e rótulas eram costume “quase bárbaro, de raiz mourisca”, e ele lamenta que muitas casas tenham “resistido à reforma decretada pela civilização”.

gelosia

Herança da arquitetura árabe que se popularizou na Península Ibérica, gelosias e rótulas eram painéis formados por treliças de madeira para vedar vãos de janelas, muitas vezes convertendo-se em verdadeiras gaiolas, fechadas de madeira por todos os lados, cujo objetivo confesso era aprisionar ou proteger (depende de quem conta) as mulheres da casa. Além de permitirem a passagem de ar fresco, também possibilitavam que as pobres mulheres encarceradas (mas honradas) observassem a rua sem serem observadas pelos de fora.

Com o tempo, as gelosias popularizaram-se tanto na cultura e na língua que passaram a designar o próprio ciúmes: “gelosia”, em italiano, “jalousie” em francês e “jealousy” em inglês, entre outras. Uma novela como “El Celoso Extremeño”, de Cervantes, sobre um homem ciumento obcecado em impedir sua mulher de traí-lo a todo custo, é excelente retrato da cultura que popularizou as gelosias. Enquanto isso, no Brasil Colônia, era comum visitantes estrangeiros se queixarem de nunca ver mulheres brancas, eternamente escondidas atrás de suas rótulas e gelosias, saindo apenas para as missas dominicais, e mesmo assim protegidas por véus e mantilhas.

 

Por isso, para os cariocas de 1809, empolgados com o sopro europeizante e modernizador trazido pela corte de D.João VI, gelosias e rótulas eram um símbolo concreto de tudo o que havia de mais retrógrado e bárbaro na cultura ibérica. O decreto de 1809, ao suprimir um elemento arquitetônico que fazia de cada casa uma fortaleza e uma prisão, era uma tentativa estatal de promover o espaço público em detrimento do privado. Macedo, setenta anos depois mas ainda herdeiro dessa mesma tradição, comemora:

“As rótulas e gelosias não eram cadeias confessas, positivas, mas eram pelo aspecto e pelo seu destino grandes gaiolas, onde os pais e maridos zelavam sonegadas à sociedade as filhas e as esposas. A higiene, a arquitetura, o embelezamento da cidade exigiam a destruição das malignas e feias gaiolas. E a Rua do Ouvidor devia ser pronta, como foi, em dar cumprimento ao edital de Paulo Fernandes, porque rótulas e gelosias destinadas a esconder à força o belo sexo deviam ser imediatamente banidas da rua que não tarde tinha de tornar-se por excelência de exposição diária de elegantes e honestíssimas senhoras.”

gelosias 2

Duzentos anos depois, a cidade parece caminhar na direção oposta. Casas e condomínios se cercam de grades, essas modernas gelosias, buscando tornar-se como as antigas fortalezas auto-suficientes.

Teoricamente, um condomínio pode escolher designar suas ruas internas de públicas ou privativas: no segundo caso, abre-se mão de uma série de serviços públicos (entrega de correios, coleta de lixo, transporte coletivo, etc) em troca do direito de só permitir a entrada ou passagem de quem se quer. Caso decida que suas ruas internas são públicas, o condomínio pode desfrutar desses serviços também públicos mas, em contrapartida, não podem negar entrada ou passagem a ninguém. Afinal, a rua é pública.

Entretanto, cada vez mais condomínios tentam malandramente conseguir o melhor dos dois mundos: apesar de suas ruas internas serem públicas, ainda assim colocam uma cancela e seguranças armados na porta. Abaixo, o Condomínio Península, onde mora meu pai.

cancela barra rio de janeiro
(Foto de Arthur Jacob, publicada na Coluna do Ancelmo Góis, O Globo, 11 de dezembro de 2007)

A menos de cinco minutos dali, na Cidade de Deus, no dia 19 de junho de 2006, moradores revoltados bloquearam a Estrada do Gabinal, colocando fogo em pneus, madeiras e até mesmo em um ônibus para protestar mais um inocente morto sumariamente pela polícia, em uma operação que também deixou baleada uma criança de oito anos. Foram violentamente reprimidos (felizmente, sem perda de vidas) e logo aprenderam a lição: os ricos da Barra podem bloquear uma via pública na maior cara-de-pau; eles, não. Eu, que morava na mesma Estrada do Gabinal, tive que dormir em casa de amigos nessa noite.

Os últimos anos viram cada vez mais prédios, praças e espaços públicos de modo geral sendo cercados e gradeados no Rio de Janeiro. O espaço público tendo se tornado cada vez mais assustador, é necessário proteger o espaço privado a todo custo. No final da mesma Rua do Ouvidor historiada por Joaquim Manoel de Macedo, essa rua de sobrados coloniais de gelosias mouriscas e rótulas bárbaras, mais um prédio foi cercado e gradeado, protegido do assustador espaço público.

ifcs_plenaria do Fórum de Lutas Contra o Aumento da Passagem 25 de junho de 2013 ifcs 1940 ifcs 1922 ifcs 1850
Quatro momentos de um prédio: 2013, durante as jornadas de junho; cerca de 1940; 1922, sediando a Exposição Nacional; e cerca de 1850.

O prédio do atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS), no Largo de São Francisco, começou a ser construído em 1811 (dois anos depois do decreto que extinguiu as gelosias), para servir de sede à Academia Real Militar. É considerado como o primeiro prédio no Brasil a ser construído especificamente para uma instituição de ensino. Ao longo dos séculos seguintes, foi o principal centro brasileiro de formação de engenheiros, abrigando, entre outros, a famosa Escola Politécnica e a Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil. Em 1965, com a criação da UFRJ, a Engenharia foi relocada para o Fundão e os cursos mais comunistas e criadores de caso foram colocados ali, para evitar que contaminassem o resto da universidade: História, Filosofia, Ciências Sociais. (fonte)

Finalmente, em 2008, quase 200 anos depois do edital do Intendente de Polícia proibindo gelosias e rótulas, o pêndulo já encontra-se no outro extremo. O prédio do IFCS, público há 200 anos, agora encontra-se protegido por grades: os alunos lá dentro, nossos futuros sociólogos e cientistas políticas, podem olhar a realidade carioca, inclusive os mendigos do Largo de São Francisco, através de confortáveis e seguras grades. Se fossem gelosias, talvez fosse ainda mais prático: os mendigos nem teriam como enxergá-los de volta.

Duas reportagens para o site G1, de Alba Valéria Mendonça e Vivianne Banharo, narram o conturbado processo de gradeamento do IFCS:

Segundo a direção administrativa do IFCS, o projeto de instalação das grades de proteção é da prefeitura da UFRJ. O objetivo, como informou a direção, é garantir a segurança dos alunos – principalmente, dos cursos noturnos – e do patrimônio. Segundo a direção, não há informações sobre alunos assaltados, mas carros que estacionam na frente do prédio já foram arrombados.

Aparentemente, o grande problema seria a grande população de moradores de rua do Largo de São Francisco, que estaria deixando as escadarias do prédio imundas:

Aluna do 7º período de filosofia, Helena Ribeiro, de 37 anos, conta que todos os dias pela manhã o funcionário da limpeza do IFCS é obrigado a lavar a escadaria com desinfetante. Às vezes os moradores de rua ainda estão dormindo na frente do prédio. “Eles sempre deixam muita sujeira por aqui e fica um fedor insuportável.” … “Sinceramente, sou a favor. Isso aqui fica uma imundície. Não resolve o problema maior que é a mendicância. Mas tem dias que é difícil entrar na faculdade. Ficam umas 15 pessoas deitadas por aqui”, disse Gabriel … “As escadarias dos prédios viraram residência da mendicância”, comentou o prefeito, relacionando a presença de moradores de rua com banhos, despejo de lixo e necessidades fisiológicas.

Fui aluno do curso noturno de História do IFCS entre 1996 e 1999. Quando chegava para as aulas, por volta de seis da tarde, os mendigos já estavam se recolhendo. Durante o inverno, quando escurecia cedo, colocavam um agasalho na estátua de José Bonifácio, no centro da praça. Quando acabavam as aulas, às dez da noite, era raro haver mendigos acordados: já dormiam profundamente.

Naturalmente, vários alunos se manifestaram contra as grades:

“Isso aqui é um espaço público e a colocação de grades é uma questão pública. A faculdade em vez de se abrir está se fechando para o povo e não deveria ser essa a nossa filosofia. Não é cercando com grades que vamos resolver o problema do apartheid social que vivemos. As grandes não vão nos impedir de ver o que está aí, do outro lado da calçada”, disse Filipe, afirmando que vai ficar constrangido de ter de atravessar todos os dias um portão com o símbolo da UFRJ, como se quisesse deixar a realidade para trás. … “Vai causar um clima diferente, com mais privacidade. O IFCS vai ficar num clima de campus, não mais tão integrado à cidade. As grades me incomodam mais pelo fato de não sobrar espaço na calçada para as pessoas circularem.”

Se o prédio do Largo de São Francisco fosse ainda Escola de Engenharia, a situação não seria tão irônica. Um centro de excelência criado explicitamente para segregar os cursos mais politicamente subversivos e socialmente incômodos da primeira universidade do nosso país, dirigido por algumas das melhores mentes acadêmicas nos campos de história, política, antropologia, sociologia, filosofia, e a melhor solução que encontrou-se para o excesso de mendigos no centro do Rio de Janeiro foi… construir grades!

Em menos de duzentos anos, o Rio de Janeiro que buscava estimular o espaço público ao proibir gelosias e construir passeios públicos transformou-se no Rio de Janeiro que bloqueia ruas públicas com cancelas e erige grades de metal para proteger prédios públicos da população de rua.

* * *

Termino de escrever um texto como esse e percebo cada vez mais a relação concreta que tenho com minha cidade. Uma discussão por alto sobre espaço público e privado acaba passando pelo condomínio onde mora meu pai ou pela favela da estrada onde moro, e também pela Rua do Ouvidor, por onde tanto andei, que desemboca no prédio onde estudei tantos anos. Essa cidade é minha porque é impossível falar sobre ela e sua história sem também falar de mim e da minha história: sou herdeiro das pedras portuguesas de Copacabana e do bondinho de Santa Teresa, das lagoas da Barra da Tijuca e das cotias do Campo de Santana, assim como também sou herdeiro da porcaria pelo chão e dos engarrafamentos pelas ruas, das chacinas e do caos. O bom e o mau, o lindo e o podre, é tudo meu. Os mesmos antepassados que me legaram a Floresta da Tijuca e o largo do Boticário também deixaram outras tantas bombas pra explodir na minha mão. Como cidadão carioca, aceito tudo.

Daqui a pouco, nos comentários, vai me aparecer um idiota criticando meu pretenso “orgulho pelo Rio” e dizendo que o Rio é uma cidade suja e violenta, e um outro idiota vai responder que não, que o Rio é a cidade mais linda do mundo, mas não estou falando nem de orgulho, nem de vergonha: meu sentimento é muito mais primal e concreto. Certo ou errado, bonito ou feio, esse chão é meu.

O mundo é cheio de problemas: assisto Juno e fico comovido com toda a questão da gravidez infantil, aborto e adoção, mas assisto Tropa de Elite e o filme ME aponta um dedo direto na cara: esse é o problema da minha época, da minha terra, da minha geração. Na loteria da História, foi essa batata quente que me coube. O bônus é meu, o ônus também.