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Cúmplices

Amiga:

“Fico aqui pensando, tudo isso que os espanhois e portugueses fizeram, dobraram a África e cruzaram o Atlântico, mataram e escravizaram, foi por especiarias, né? Pimenta, cravo, canela, noz moscada. Não foi pra se alimentar, não foi pra sobreviver: foi só pra aromatizar. E mesmo aqui no Brasil, fomos a maior economia escravista do mundo não pra plantar mandioca ou batata, mas sim café e açúcar. Você acha que quando as pessoas do passado tomavam um cafezinho, adoçavam com melado, temperavam com uma pitada de canela, que elas se sentiam cúmplices de toda essa miséria humana que tinham causado? Será que tinham noção do verdadeiro custo daquele luxo?”

Eu:

“Não sei. Porque você não faz uma busca na internet no seu iPhone?”

especiarias

 

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Acolher a mentira

Se só pessoas que não mentem sobre si mesmas merecessem ser ouvidas e acolhidas, abraçadas e ajudadas, então, não sobraria ninguém.

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Perseguições

Quando eu era criança, e minha colegas de escola diziam que “a tia Fulana me persegue” eu sempre respondia:

“Porra, a tia Fulana é velha, tem dois filhos, é casada, dá aula em duas escolas, tem conta pra pagar. Você acha mesmo que ela iria perder o tempo te perseguindo?”

Aí eu cresci, virei professor, comecei a frequentar sala de professores e descobri, mais para minha surpresa que para meu horror, que sim, tem muita pessoa professora que persegue criança sim, persegue de verdade, persegue com dolo, e ainda se gaba na sala de professores:

“Hahaha, hoje o Juquinha se fudeu, peguei ele de jeito, ele nunca mais vai se meter comigo, humpft”

Eu dizia: “Fulano, você está se ouvindo? o juquinha nao é seu inimigo, seu adversário, seu nêmesis… ele é a criança de doze anos que você é pago para educar, e cuidar!”

“Ah, Alex, você fala isso porque não conhece o Juquinha! ele é um monstro!”

E eu só pensando em todos os coleguinhas de escola a quem eu devia desculpas retrospectivas por ter sido uma criança que claramente superestimava o equilíbrio emocional das pessoas adultas.

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A pior coisa que te fizeram

Muitas de nós temos relações ambivalentes e conflituosas, afetivas e odientas, gratas e ressentidas, com pai e mãe.

Gosto de propor o seguinte exercício:

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textos zen

A liberdade da biruta

Pergunta:

“Alex, faz sentido se esforçar tanto para controlar e disciplinar a mente? Por que tanta repressão?”

Porque, ironicamente, nenhuma mente está mais presa, nenhuma mente é menos livre, do que a mente descontrolada, refém de seus próprios condicionamentos, correndo sem rumo de um lado para o outro como um cachorro que não sabe qual carro perseguir.

A gente se autocontrola para sermos mais livres.

birutas ddf

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A culpa não é da África

O que está destruindo o planeta não é a superpopulação mundial.

Se as sete bilhões de pessoas tivessem o nível de consumo da Etiópia, o planeta tava de boas.

Não dá pra falar de superpopulação sem levar em conta o aspecto classe, como se as sete bilhões de pessoas fossem “iguais”, como se uma equatoriana e uma alemã tivessem a mesma pegada de carbono.

O que está destruindo o planeta é o superconsumismo ocidental.

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* * *

Uma boa definição para “pessoa de direita”: aquela que fala, pensa, reflete sobre qualquer assunto sem levar em conta o aspecto “classe”.

 

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existem pessoas

existem pessoas que são frias porque sentem nada ou pouco.

existem pessoas que parecem frias porque sentem tudo extremadamente e aprenderam a controlar as emoções.

existe a teoria de que as primeiras são as segundas que você ainda não conheceu direito.

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menos

Nossa vida no meio do lixo

Pergunta: “Como desapegar das minhas tralhas?”

Ceci Garrett has been helping hoarders, like this one, with Lightening the Load, a hoarding ministry in Spokane. Garrett's mother was a hoarder and they appeared on the show "Hoarders" on A&E. COLIN MULVANY colinm@spokesman.com

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Como lidar com a dor

Pergunta: “Alex, como você lida com a dor?”

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A cruz e o carma

Outro dia, um moço me procurou. Setenta anos, alguns distúrbios mentais, um câncer no cérebro. Estava raivoso, puto, frustrado.

Em um dado momento, me acusou de não estar fazendo nada para ajudá-lo. Que o que ele precisava mesmo era que eu pegasse aquele câncer pra mim. Afinal, por que no cérebro dele e não no meu?!

E eu respondi:

“Se você pudesse pegar o meu diabetes, a minha hipertensão, a minha gota, a minha gastrite, eu pegaria o seu câncer de cérebro.”

cancer battle

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A religião é um espelho

Podemos escolher presumir sempre o melhor: a religião é um espelho onde cada pessoa enxerga aquilo que traz.

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aula 04: cristãos grande conversa textos

O monge é uma farpa na carne da História

Os monges foram os primeiros revolucionários e os monastérios, as primeiras utopias.

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Desperdício

Em junho, enquanto minha rua explodia em uma guerra civil, a vida me levou, pela primeira vez, a visitar o shopping Village Mall, o mais luxuoso do Rio de Janeiro, palco de lojas como Apple, Cartier, Tiffany, etc.

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Em um dado momento, a pessoa que estava comigo perguntou:

“Alex, você, que já foi rico, que já teve coisas de lojas como essas, como se sente voltando aqui, agora, nessa sua vibe irmão zen minimalista?”

E eu olhava para cada um desses produtos, pensava em tudo que se sacrificou para comprá-los, e me invadia uma tristeza absurda.

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Quanta vida desperdiçada, quanta vida reprimida, quanta vida adiada… para trabalhar mais, para ralar mais, para se vender mais… para poder comprar aqueles produtos inflacionados, o vestido de quinze mil e o sapato de cinco mil, o expresso de vinte reais e o cinema de cinquenta… tudo para manter identidades de pessoas ricas e elegantes, sofisticadas e diferenciadas, capazes de pagar quinze mil num vestido e cinco mil num sapato, vinte num expresso e cinquenta num ingresso… e tudo isso pra quê?

village mall

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Leituras comentadas, agosto de 2017

Um mês de diferentes leituras por diferentes motivos: um livro lido a trabalho, para escrever a orelha; um lido no grupo de estudos sobre Cuidados Contemplativos; três lidos como follow-up de leituras para meu curso de Formação de Instrutor de Meditação; quatro como parte dos meus estudos para um romance em planejamento; uma coletânea de artigos do Gandhi que têm tudo a ver com As Prisões; e, por fim, dois estudos sobre a Ilíada, por puro prazer estético, porque ninguém é de ferro.

1. (71) Santos fortes, Karnal e Fernandes, 2017, português.
2. (72) Being with dying, Halifax, 2009, inglês.
3. (73) João da Cruz, Leloup, 2007, francês.
4. (74) Esperando Foucault, ainda, Sahlins, 1993, inglês.
5. (75) The Western illusion of human nature, Sahlins, 2008, inglês.
6. (76) The knowledge illusion, Sloman e Fernbach, 2017, inglês.
7. (77) The enigma of reason, Mercier e Sperber, 2017, inglês.
8. (78) The desert fathers, c.III-IV, copta. [Trad, org: Waddell, 1936.]
9. (79) The desert fathers, c.III-IV, copta. [Trad,org: Ward, 2003.]
10. (80) Trusteeship, Gandhi, c.1930-1940, inglês.
11. (81) The Iliad, or the poem of force, Weil, 1940, francês.
12. (82) On the Iliad, Bespaloff, 1945, francês.

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Como escrever um livro

(Ou como completar qualquer outro projeto de longo prazo.)

pessoas felizes pulando na praia

Todo dia, tem uma nova bomba estourando, alguma pendência que precisa ser entregue para ontem, algum problema urgente que precisa ser resolvido hoje, um trabalho que vai pagar a conta de luz do mês que vem ou, pior, a conta de luz que já está vencida. Se nos deixarmos levar, passaremos a vida apagando incêndio.

Nossos projetos de longo prazo, aqueles projetos que demandam trabalho todo dia para que, quem sabe, frutifiquem em 2025 (“claro que não posso pensar nisso agora! E esse boleto aqui, vou pagar como?!”), esses vão sendo eternamente postergados. Seremos como a proverbial jornalista que está escrevendo um romance há vinte anos.

Não existe mágica. O tempo para nossos projetos de longo prazo nunca vai cair, livre e desimpedido, no nosso colo. A vida é uma esteira rolante feita, projetada, pensada para que nunca tenhamos tempo de parar, respirar, olhar em volta. Pessoas ocupadas, estressadas, cansadas consomem mais e questionam menos.

Esse tempo precisa ser efetivamente criado, talhado na rocha da vida, roubado da balbúrdia do mundo.

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Coisas que o capitalismo faz com a nossa cabeça

Nossa cultura capitalista trata a dívida como se fosse uma questão moral.

“Temos que pagar nossas dívidas porque sim, porque somos pessoas honestas, porque é isso que se faz!”

Mas todo o sistema financeiro se baseia justamente no fato de que não precisamos pagar nossas dívidas, que algumas dívidas simplesmente não serão pagas e que é esse risco inerente ao empréstimo que justifica a excrescência imoral que são os juros.

Então, pelo contrário, não só as dívidas não precisam ser pagas como, se todos os devedores pagassem todas as suas dívidas no prazo, o sistema financeiro internacional quebraria no mesmo dia.

grego alemão dívida juros graeber

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Marketing desperdiçado

Saí do restaurante correndo, tentando segurar o choro, mas não consegui.

Do outro lado da rua, havia uma Fábrica de Bolo.

franquia-fabrica-de-bolos-vo-alzira

Pedi uma fatia, qualquer sabor, muita calda. A atendente já devia estar acostumada, pois disse apenas:

“Vai passar, moço.”

E eu, comendo e chorando, só pensava:

“E não é que daria um um puta slogan? “‘Fábrica de Bolo: Vai Passar’!

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uso recreativo

proctoderm é um sabonete líquido específico para a região anal.

na maioria das farmácias, ele está na prateleira dos sabonetes.

em algumas, na dos lubrificantes e preservativos.

essas farmácias são as melhores farmácias.

proctoderm

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Leituras comentadas, julho de 2017

Em julho, mais uma vez, quase todas as minhas leituras foram religiosas: Padres do Deserto, Bíblia, meditação budista e cristã.

1. (58) Noite escura, Cruz, c.1580, espanhol.
2. (59) A Noite Escura segundo João da Cruz, Stinissen, 1990, alemão.
3. (60) Cântico dos Cânticos, circa séc.III/II AEC, hebráico.
4. (61) Cântico dos Cânticos, León, c.1560, espanhol.
5. (62) Religiões em Reforma, 2017, português.
6. (63) Meditation, now or never, Hagen, 2007, inglês.
7. (64) Meditação cristã, Main, 1982, inglês.
8. (65) A orientação espiritual dos Padres do Deserto, Grün, 2002, alemão.
9. (66) O caminho do coração, Nouwen, 1981, inglês.
10. (67) A sabedoria do deserto, Merton, 1960, inglês.
11. (68) The Prophets, Heschel, 1962, inglês.
12. (69) Odisséia, Homero, c.séc.IX AEC, grego.
13. (70) O livro aberto, Lourenço, 2015, português.

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o que você gosta de ouvir?

o que você gosta de ouvir?, me perguntou uma amiga

eu: gargalhada feminina. batidas rápidas no han simbolizando o começo iminente do zazen. alho refogando. zíper abrindo. ondas quebrando. gemidos de gozo. criança brincando. zumbido de ar-condicionado começando a funcionar. dois sapatos caindo no chão, lentamente, um depois do outro. o apito do sorveteiro que passava pela minha casa. passos descalços no chão frio. “eu te amo, alexandre.” o rabo da capitu batendo na máquina de lavar enquanto estou abrindo a porta de casa. saltos altos estalando no mármore. máquina de escrever elétrica. “ó o biscoito globo, ó o mate leão.” pisada forte de mulher decidida. apito do recreio. pernas femininas, vestidas de couro ou látex, roçando uma contra a outra enquanto andam. o porteiro quando diz: “tem pacote pra você, seu alex.” suspiro saciado de prazer. gemidinhos da capitu sonhando. o sino do jikidô simbolizando o fim do zazen.

ela: não. eu quis dizer de música.

eu: ah.