Nossa cultura capitalista trata a dívida como se fosse uma questão moral.
“Temos que pagar nossas dívidas porque sim, porque somos pessoas honestas, porque é isso que se faz!”
Mas todo o sistema financeiro se baseia justamente no fato de que não precisamos pagar nossas dívidas, que algumas dívidas simplesmente não serão pagas e que é esse risco inerente ao empréstimo que justifica a excrescência imoral que são os juros.
Então, pelo contrário, não só as dívidas não precisam ser pagas como, se todos os devedores pagassem todas as suas dívidas no prazo, o sistema financeiro internacional quebraria no mesmo dia.
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A anedota que abre o livro Dívida: Os primeiros 5.000 anos, do antropólogo norte-americano David Graeber:
Em um coquetel, conversando com a advogada de uma fundação que ele faz questão de enfatizar que era uma pessoa de esquerda, ativista internacional, militante antiglobalização, etc, Graeber comenta sobre sua campanha para impedir que o FMI imponha austeridade aos países do terceiro mundo.
Em muitas culturas, diz ele, inclusive na hebraica citada na Bíblia, havia leis que obrigavam o perdão periódico — de sete em sete anos, etc — de todas as dívidas, para garantir que nenhuma pessoa passasse toda sua vida endividada. (No Brasil, temos algo que segue o mesmo princípio, que é a proibição de qualquer pessoa ficar com o nome sujo nos serviços de proteção ao crédito por mais de cinco anos.)
Ao ouvir isso, entretanto, a advogada-do-bem ficou horrorizada:
“Mas… mas… esses países de fato pegaram esse dinheiro emprestado! As dívidas precisam ser pagas!”
Mesmo na teoria econômica mais conservadora, porém, qualquer empréstimo traz em si um risco e, aliás, é a percepção desse risco que determina as taxas de juros. Apesar disso, essa ideia de que “as dívidas precisam ser pagas” é tão poderosa justamente porque não é uma afirmação econômica: é uma afirmação moral.
Graeber escreve todo o seu livro, um dos mais brilhantes que li nos últimos cinco anos, justamente para contestar essa afirmação tão autoevidente e para demonstrar como o capitalismo, ao longo dos séculos, conseguiu transformar uma relação econômica em uma relação moral.
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Penso nessa anedota do Graeber sempre que tenho o seguinte diálogo, que se repete com triste constância na minha vida.
“Ah, Alex, queria muito ir ao seu encontro, mas não tenho dinheiro.”
“Mas você não viu que dou gratuidades para todo mundo que pede? O preço do evento é só um valor sugerido. As pessoas pagam o que querem, o que podem. Não faria nenhum sentido negar alguém só porque a pessoa não pode pagar, nem fazer um evento elitista só para quem tem duzentos reais assim dando sopa. O evento é para quem precisa.”
“Ah, mas eu não consigo. Eu ficaria constragida. É o seu trabalho. Eu me sentiria uma sanguessuga, uma exploradora. Afinal, as coisas têm que ser pagas!”
São tantas premissas perversas e auto-sabotadoras nessas poucas afirmações que me dá vontade de abraçar a pessoa.
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Tudo o que eu faço é sempre fundamentalmente gratuito.
Paga quem pode, paga quem quer.
Mais importante, quem paga me ajuda a financiar quem não pode pagar.
Não deixe jamais de ler meus livros ou vir aos meus encontros por falta de dinheiro.
Fale comigo e a gente dá um jeito.
As pessoas-mecenas me sustentam, com suas generosas contribuições, justamente para que eu não precise enfiar a faca em ninguém.
Não faria sentido algum negar uma pessoa só porque ela não tem dinheiro.
Não faria sentido algum fazer eventos só para pessoas que podem pagar.
2 respostas em “Coisas que o capitalismo faz com a nossa cabeça”
Abordei o mesmo tema neste artigo, onde acabei falando de algum modo na questão moral presente na expressão “honrar nossas dívidas” – https://vamosfalar-jornalismocultural.blogspot.com.br/2017/04/voce-nao-precisa-ter-contas-pagar.html
Mas Alex, os juros não representam apenas o risco. Ele significa também o valor do dinheiro no tempo. Quando eu abro mão do consumo hoje para emprestar o dinheiro e receber apenas daqui a 1 ano, esse gesto tem um preço, do aluguel do recurso, e os juros pagam isso. Os juros contém o risco também, mas mesmo que o risco fosse zero, ainda teria juros, porque o dinheiro tem valor no tempo. Os bancos tem uma função social, que é conectar aqueles que tem excesso de recursos com aqueles que tem falta de recursos para materializar projetos.