Em julho, mais uma vez, quase todas as minhas leituras foram religiosas: Padres do Deserto, Bíblia, meditação budista e cristã.
1. (58) Noite escura, Cruz, c.1580, espanhol.
2. (59) A Noite Escura segundo João da Cruz, Stinissen, 1990, alemão.
3. (60) Cântico dos Cânticos, circa séc.III/II AEC, hebráico.
4. (61) Cântico dos Cânticos, León, c.1560, espanhol.
5. (62) Religiões em Reforma, 2017, português.
6. (63) Meditation, now or never, Hagen, 2007, inglês.
7. (64) Meditação cristã, Main, 1982, inglês.
8. (65) A orientação espiritual dos Padres do Deserto, Grün, 2002, alemão.
9. (66) O caminho do coração, Nouwen, 1981, inglês.
10. (67) A sabedoria do deserto, Merton, 1960, inglês.
11. (68) The Prophets, Heschel, 1962, inglês.
12. (69) Odisséia, Homero, c.séc.IX AEC, grego.
13. (70) O livro aberto, Lourenço, 2015, português.
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Noite escura, de São João da Cruz
1. (58) Noite escura, de João da Cruz, c.1580, espanhol. [Trad:?] Releitura.
2. (59) A Noite Escura segundo João da Cruz, de Wilfried Stinissen, 1990, alemão. [Trad: Camélia Cotta, Gabriel Haamberg, 1996.]
Em nosso templo, recitamos os Quatro Votos do Bodhisatva. O terceiro é “A realidade é ilimitada, faço voto de percebê-la”.
Meditamos não para fugir da realidade ou para nos isolar do mundo, mas por perceber que a vida não-contemplativa, a vida do ego, a vida do consumo, a vida do apego, é fundamentalmente irreal. Meditar é a nossa maneira de mergulharmos plenamente na realidade ilimitada.
Mais importante, todas as práticas espirituais, religiosas, místicas, contemplativas, espirituais compartilham do mesmo objetivo.
Entretanto, nem sempre a espiritualidade, a contemplação, a meditação trazem a paz: essa não-paz é o que João da Cruz chama de “noite escura”.
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Li Noite Escura em maio e foi uma porrada atrás da outra. Ao longo dos meses seguintes, me peguei seguidamente refletindo sobre o livro. Em julho, decidi reler. Foi um daqueles raros livros que eu li, digeri, refleti… e reli, e gostei mais ainda.
Em busca de ajuda, como é um texto denso, aproveitei também para ler um outro livro sobre ele: A noite escura segundo São João da Cruz, do padre carmelita belga Wilfried Stinissen.
João da Cruz já se tornou um de meus guias no caminho.
Para saber mais, leia meu texto principal sobre Noite Escura, de João da Cruz.
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O Cântico dos Cânticos
3. (60) Cântico dos Cânticos, de anônimo, circa séc.III/II AEC, hebráico. Releitura.
a. (BP: Bíblia do Peregrino, Ed: Luís Alonso Schökel, 1997; trad: Ivo Stormiolo e José Bortolini, 2002.)
b. (BJ: Bíblia de Jerusalém, 1998; trad: Emmanuel Bouzon, 1985/2001.)
c. (NTLH: Nova Tradução na Linguagem de Hoje; trad: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.)
d. (TLA: Traducción en Lenguaje Actual; Sociedades Biblicas Unidas, 2003.)
e. (KJV: King James Bible, 1611.)
f. (NRSV: New Revised Standard Version; trad: National Council of Churches, 1989.)
g. (ESV: English Standard Version; trad: Good News Publishers, 2001.)
4. (61) Cântico dos Cânticos, de Frei Luís de León, c.1560, espanhol. [Trad: Nilton Santos, 2013.]
Dentre tantos livros compilados na Bíblia (“Bíblia” literalmente significa “livros”), talvez o mais surpreendente e inesperado seja uma antologia de poesia erótica, que jamais menciona Deus, assinada pelo dono de um gigantesco harém e provavelmente escrita por uma mulher: o Cântico dos Cânticos.
É interessante a conexão entre a Noite Escura e o Cântico dos Cânticos.
O tradutor, poeta e humanista Frei Luís de León (1527-91) foi professor da Universidade de Salamanca, onde provavelmente teve entre seus alunos João da Cruz (1540-91).
Em 1572, Frei Luís é preso pela Inquisição, em grande parte por sua tradução comentada do Cântico dos Cânticos, considerada demasiado mundana.
Cinco anos depois, em 1577, é a vez de seu ex-aluno, João da Cruz, também ser preso, por suas tentativas de reformar a Ordem dos Carmelitas.
Na cadeia, João escreve a Noite escura, cuja imagética romântico-sexual estabelece um intenso diálogo (talvez pastiche descarado) com a obra que custara a liberdade ao seu ex-professor.
Por isso, ao terminar de reler a Noite escura, em julho de 2017, decidi reler o Cântico dos Cânticos e aproveitar para conhecer os comentários de Frei Luís de León, publicados na coleção Clássicos da Espiritualidade, da Editora Vozes.
(Essa coleção tem um belíssimo projeto gráfico, excelentes traduções e uma curadoria primorosa. Já tenho dez dos seus livros, um melhor que o outro, da Nuvem do Não-Saber à obra de Mestre Eckhart. Recomendo.)
Leia meu texto principal sobre o Cântico dos Cânticos.
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McMindfulness
5. (62) Religiões em Reforma: 500 anos depois, de vários, 2017, português.
Em julho, o meu professor e monge responsável por nosso templo, o médico psiquiatra Álcio Braz, deu uma palestra sobre budismo no 30º congresso da Soter (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião) em Belo Horizonte:
A palestra do Álcio foi realmente bem interessante, falando em bom português coisas que, se não me engano, ainda não se falam ou mal se falam no Brasil, sobre o atual estado do Budismo.
Aproveitei e, como sou interessado em Religião, li o livro todo, coligindo as palestras do evento.
Para ler a palestra do monge Álcio, clique no link abaixo:
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Meditação budista e meditação cristã
6. (63) Meditation, now or never, de Steve Hagen, 2007, inglês.
7. (64) Meditação cristã, de John Main, 1982, inglês. [Trad: Monjas Beneditinas do Mosteiro da Virgem, 1987.]
Como já dito diversas vezes nas minhas anotações de leituras, estou fazendo um curso de Formação de Instrutores de Meditação em meu templo zen (Eininji – Templo do Cuidado Amoroso Eterno), dado por nosso irmão responsável, Álcio Braz.
O primeiro livro acima, de Steve Hagen, um sacerdote zen norte-americano, é uma das leituras obrigatórias do curso. Além disso, estou finalizando o meu próprio livro sobre os Exercícios de Atenção, e um dos últimos exercícios que ainda me falta escrever será sobre meditação. Por isso, li também o segundo livro, do prior canadense John Main.
(Esse curso já estaria virando minha vida da cabeça pra baixo apenas pelas leituras às quais me levou, que me levaram a outras e outras leituras.)
O livro de Hagen, apesar de simples e introdutório, é com certeza o melhor guia de meditação que conheço. Minha edição está toda sublinhada, eu nem saberia por onde começar a falar dele. Talvez fosse melhor remeter vocês ao texto que escreverei sobre meditação. Vai ter muito de Hagen nele.
Dom John Main era um prior beneditino. O livro reune três palestras que deu sobre oração e meditação na Abadia de Getsemani, casa de Thomas Merton. (Mais sobre ele abaixo.)
O trecho abaixo se encaixa perfeitamente na Noite escura, de João da Cruz, e em nossas razões para lê-lo no curso de formação:
“Existe um verdadeiro perigo para o homem religioso – e na verdade para todos os homens – de viver nossa vida voltados para proposições em lugar de aprofundar nossa atenção, de estarmos despertos para apreender e nos comprometermos com a verdade viva que nos torna autênticos … de nos tornarmos facilmente presunçosos e satisfeitos com nós mesmos, autocomplacentes ao repetirmos nossas fórmulas e credos. … A verdadeira pobreza que havemos de praticar é um empobrecimento do egoísmo que isola. … Quando vivemos como irmãos e nos sentimos respeitados e amados, vamos adquirindo a confiança necessária para penetrar no caminho … no qual praticamos essa pobreza total e essa total renúncia. … Não se trata de fuga, nem de desprezo de nós mesmos, nem ódio contra nós mesmos. Pelo contrário, estamos a procura de nós mesmos e da experiência de nossa capacidade pessoal e infinita de sermos amados. … Renunciamos essencialmente à irrealidade. A dor dessa renúncia será proporcional à extensão do nosso comprometimento com a irrealidade, à extensão com que aceitamos nossas ilusões como se fossem realidade. Na meditação, despimo-nos da ilusão do ego que nos isola. … ‘Quem quiser encontrar a sua vida deve primeiro perdê-la.’ … Renunciamos ao pensamento, à imaginação e até mesmo à autoconsciência que é a matriz da linguagem e da reflexão. … É o meio, na meditação, de perder nossa vida a fim de podermos encontrá-la. É o meio de nos tornarmos nada para nos tornarmos o Tudo. … Somente quando pomos em prática essa total renúncia, que João da Cruz denomina de ‘aniquilamento”, é somente então que nossa identidade plena, nossa realidade total aparece. … O verdadeiramente simples raramente é fácil. … O problema máximo que nós ocidentais enfrentamos em relação à meditação [é] apenas crer na sua essencial simplicidade. … Tudo que há a fazer é apenas repetir o mantra com total simplicidade e total fidelidade. Sem nada esperar nem antecipar. … Nada temos a perder a não ser nossas limitações.”
Por fim,a melhor coisa do livro é uma anedota sobre o autor contada no posfácio:
“Certa vez, perguntei a Dom John por que se havia tornado monge; ele me respondeu que foi por sua vontade de ser totalmente livre.”
Faz sentido pra vocês?
Tenho passado quase metade da semana em nosso templo zen, onde para tudo existe uma regra, quase nunca com uma razão bem explicada. Minhas pessoas amigas me perguntam:
“Você não se sente preso lá dentro, reprimido sob o peso de tantas regras? E sua liberdade?”
E eu, em outras épocas, bem mais reativo, responderia:
“E você, não se sente preso aí fora, reprimido sob o peso de tantas regras? E sua liberdade?”
Mas hoje só respondo:
“Não me sinto preso, não. Pelo contrário. Aqui me sinto verdadeiramente livre: livre da tirania do meu ego e livre dos meus desejos insaciáveis, livre da minha necessidade de aparecer e livre da minha compulsão por ser reconhecido. Livre.”
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Os padres do deserto
8. (65) A orientação espiritual dos Padres do Deserto, de Anselm Grün, 2002, alemão. [Trad: Enio Paulo Giachini, 2013.]
9. (66) O caminho do coração: a espiritualidade dos Padres e Madres do Deserto, de Henri Nouwen, 1981, inglês. [Trad: Denise Jardim Duarte, 2012.]
10. (67) A sabedoria do deserto: ditos dos Padres do Deserto do século IV, de Thomas Merton, 1960, inglês. [Trad: Helio de Mello Filho, 2004.]
Os Padres do Deserto foram talvez os últimos cristãos verdadeiros, os últimos iconoclastas que escolheram seguir os ensinamentos da pessoa Jesus em detrimento das ordens da instituição criada por Paulo.
Em abril, também para meu curso de Formação de Instrutores de Meditação, li A montanha no oceano: meditação e compaixão no Budismo e Cristianismo, de Jean-Yves Leloup, que me deixou uma fortíssima impressão. (Veja as leituras de abril.) O autor é padre grego ortodoxo e o livro fala, entre outras coisas, sobre o hesicasmo, técnicas de meditação dos padres ortodoxos de Monte Atos, na Grécia. No livro, Leloup menciona bastante dos Padres do Deserto. Curioso, fui atrás deles.
Os três livros acima foram minhas primeiras leituras sobre os Padres do Deserto. Em agosto, li mais dois livros: The Desert Fathers (na coleção Vintage Spiritual Classics, edição/tradução de Helen Waddell) e The Desert Fathers: Sayings of the Early Christian Monks (da Penguin Classics, edição/tradução de Benedicta Ward).
Falo mais sobre eles em meu texto principal sobre os Padres do Deserto.
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Solidão e silêncio
O padre holandês Henri Nouwen, em três palestras para uma plateia de padres e pastores, fala de silêncio e de solidão em termos que não fariam feio saindo da boca de um Mestre Zen.
Primeiro, sobre o falso Eu:
“O Eu secular ou falso Eu é um Eu que é fabricado … por compulsões sociais. ‘Compulsivo’ é, de fato, o melhor adjetivo para o falso Eu, que aponta para a necessidade de contínua e crescente afirmação. Quem sou eu? Eu sou aquele que é apreciado, elogiado, admirado, antipatizado, ou desprezado. Se sou um pianista, um empresário ou um ministro, o que importa é como eu sou percebido pelo meu mundo. Se estar atarefado é uma coisa boa, então preciso estar atarefado. Se ter dinheiro é sinal de liberdade, então preciso reivindicar meu dinheiro. Se conhecer muitas pessoas prova a minha importância, então terei que fazer os contatos necessários. A compulsão se manifesta no medo oculto de fracassar e no impulso constante de evitar isso juntando mais do mesmo: mais trabalho, mais dinheiro, mais amigos. … O que mais é a ira senão a resposta impulsiva à experiência de ser privado de algo? Quando a minha consciência do Eu depende do que os outros dizem de mim, a raiva é uma reação perfeitamente natural a uma palavra crítica. E quando essa minha percepção do Eu depende daquilo que posso alcançar, a cobiça irrompe à medida que meus desejos são frustrados.” (Nouwen, 20-21)
Nós, no Ocidente, definimos solidão sempre de maneira muito egocêntrica:
“Dizemos uns aos outros que precisamos de alguma solidão em nossas vidas. O que realmente estamos pensando, no entanto, é num tempo e lugar para nosso proveito, no qual não somos incomodados pelos outros, podemos ter nossos próprios pensamentos, expressar nossos lamentos e nos ocupar de nossas próprias coisas. … como uma estação onde se pode recarregar baterias, ou como o corner do ringue de boxe, onde nossas feridas são untadas, nossos músculos massageados e nossa coragem, restaurada por slogans convenientes. Em suma, pensamos na solidão como uma circunstância onde juntamos novas forças para dar seqüência à contínua competição da vida.” (Nouwen, 24-25)
Mas a “solidão transformadora” dos místicos e dos contemplativos é de outra natureza:
“Na solidão [transformadora], me livro de meus cadafalsos: nenhum amigo com quem conversar, nenhum telefonema para fazer, nenhuma reunião à qual comparecer, nenhuma música para entreter, nenhum livro para distrair, apenas eu – nu, vulnerável, fraco, despojado, insignificante – e nada mais. É esse nada que devo enfrentar em minha solidão, um nada tão terrível que tudo em mim quer correr para os meus amigos, meu trabalho e minhas distrações, de modo que eu possa esquecer o meu vazio e passe a acreditar que sou algo que vale a pena. … A tarefa é perseverar em minha solidão, permanecer em meu calabouço até que meus sedutores visitantes [a ira e a cobiça] se cansem de bater em minha porta e me deixem em paz. … A batalha é real porque o perigo é real. É o perigo de viver a totalidade de nossa vida como uma longa defesa contra a realidade de nossa condição, um esforço incansável para convencer a nós mesmos de nossa virtuosidade.” (Nouwen, 25-26)
Só podemos servir se não julgamos:
“Não devemos subestimar a dificuldade de ser compassivo. A compaixão é difícil porque requer disposição interior para visitar o outro naquele lugar onde ele se encontra fraco, vulnerável, solitário, e abandonado. Mas essa não é a nossa resposta espontânea ao sofrimento. O que mais desejamos é acabar com ele, fugindo ou encontrando uma rápida cura. Como ministros ocupados [ou seja, sacerdotes profissionais], ativas e relevantes, queremos ganhar nosso pão fazendo uma contribuição real. Isso significa, em primeiro lugar, realizar algo capaz de mostrar que nossa atitude faz diferença. E assim ignoramos nosso maior dom, que é nossa habilidade de ser solidários com aqueles que sofrem. … Para estar a serviço do outro, precisamos morrer para eles; ou seja, precisamos desistir de medir nosso significado e valor utilizando critérios alheios. Morrer para o nosso próximo significa parar de julgá-lo, parar de avaliá-lo, e, assim, nos tornar livres para ser compassivos. A compaixão não pode jamais coexistir com o julgamento porque ele cria a distância, a distinção, que nos impedem de estar realmente com o outro.” (Nouwen, 32-34)
Praticar o silêncio:
[O silêncio] “é uma disciplina bastante concreta, prática e útil em todas as incumbências ministeriais [ou seja, religiosas], pode ser percebido como uma cela portátil que levamos conosco, a partir de nosso espaço solitário. … É a solidão praticada na ação. … [Q]uantas vezes saímos de uma conversa, uma discussão, um encontro social ou uma reunião de negócios sem um gosto amargo na boca[?] Com que frequência as longas conversas provam ser boas e frutíferas? Não seria melhor que muitas, senão a maioria das palavras que usamos, ficassem sem ser ditas? Falamos sobre acontecimentos mundanos, mas quantas vezes nós realmente os mudamos para melhor? Falamos sobre pessoas e seu modo de ser, mas quantas vezes as nossas palavras fazem, a nós ou a elas, algum bem? … Vamos ao menos levantar o questionamento se nosso generoso modo de compartilhar os pormenores de nossa vida não seria mais compulsivo que virtuoso; se, em vez de promover a comunhão, ele não tende a nivelar as nossas vidas conjuntamente. … Nessa sociedade loquaz, o silêncio se tornou algo bastante temeroso. Para a maioria das pessoas, ele cria irritação e nervosismo. Muitos o experimentam não como algo pleno e rico, mas vazio e sem valor. Para eles, o silêncio é como um abismo escancarado, que pode engoli-los. Assim que um ministro diz durante a missa: ‘Fiquemos em silêncio por um momento’, as pessoas tendem a se tornar inquietas e preocupadas com um só pensamento: ‘Quando isso chegará ao fim?’ … É uma boa disciplina se perguntar, a cada nova situação, se as pessoas não seriam mais bem servidas pelo nosso silêncio do que por nossas palavras. … O silêncio é … uma qualidade do coração, que pode permanecer conosco mesmo quando conversamos com os outros. É uma cela [recinto onde dormem os monges] portátil que carregamos onde quer que vamos. Nela falamos aos necessitados, e a ela retornamos depois que nossas palavras frutificam.” (Nouwen, 42, 49-50, 52, 57, 62)
O objetivo da solidão e do silêncio é aumentar nossa atenção ao outro:
“Se a solidão fosse essencialmente a evasão de alguma tarefa absorvente e o silêncio, essencialmente, a fuga de um ambiente barulhento, poderiam facilmente se transformar em formas de ascetismo muito egocêntricas.” (Nouwen, 65)
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A paixão dos profetas
11. (68) The Prophets, de Abraham Heschel, 1962, inglês.
Nos anos noventa, eu era uma pessoa ateia, antirreligiosa e de direita. Já nessa época, a Bíblia era meu livro preferido, especialmente os livros (digamos) folclóricos/mitológicos, como Gênesis, Êxodo, Judite, Tobias, Jonas, e os históricos, como Josué, Juízes, Samuel, Reis, Macabeus.
O tempo foi passando e fui mudando: hoje, sou uma pessoa ainda atéia, mas muito religiosa, surpreendentemente mística, bastante de esquerda. Apesar disso, a Bíblia continua sendo o meu livro preferido, com uma pequena diferença.
Agora, amo mais do que tudo os Profetas e suas lancinantes dores existenciais, suas profundas experiências místicas, suas apaixonantes denúncias contra a desigualdade e a injustiça.
(Entre ambos, nos anos 2000, rolou uma fase apocalíptica. Escrevi até um paper comparando o Romance da Pedra, do Suassuna, e o Apocalipse de João. O Apocalipse de Esdras [IV Esdras] ainda é talvez o meu livro bíblico favorito. Só os livros de Jó e Eclesiastes continuaram preferidos em todos os períodos.)
Abraham Heschel, por seu lado, talvez seja um dos autores mais passionais que já li. Esse mítico rabino polonês radicado nos EUA, professor de ética e misticismo judaicos, que marchou pelos direitos civis com Martin Luther King e fez piquetes contra a Guerra do Vietnã, escreve com a mesma paixão ensandecida dos poetas que estuda.
Que homem fenomenal! Esse livro, The Prophets, simplesmente transborda energia. Comecei a ler em janeiro e retomei em julho, na FLIP. (Foram meus dois livros na FLIP: The Prophets e a Odisseia do Lourenço, abaixo.)
Já comprei e estão na minha fila dois de seus livros: Between God and Man: an Interpretation of Judaism e Who is man (Esse último, ao lado de What is Life?, do Schrödinger-do-gato, está no topo da minha lista de títulos mais autoexplicativos e ambiciosos de todos os tempos.)
Mais tarde, quando terminar The Prophets, escrevo mais sobre Heschel e sobre os profetas. Por enquanto, deixo vocês com as primeiras palavras do livro, que já dão o tom:
“What manner of man is the prophet? A student of philosophy who turns from the discourses of the great metaphysicians to the orations of the prophets may feel as if he were going from the realm of the sublime to an area of trivialities . Instead of dealing with the timeless issues of being and becoming, of matter and form, of definitions and demonstrations, he is thrown into orations about widows and orphans, about the corruption of judges and affairs of the market place. Instead of showing us a way through the elegant mansions of the mind, the prophets take us to the slums. The world is a proud place, full of beauty, but the prophets are scandalized, and rave as if the whole world were a slum. They make much ado about paltry things, lavishing excessive language upon trifling subjects. What if somewhere in ancient Palestine poor people have not been treated properly by the rich? So what if some old women found pleasure and edification in worshiping “the Queen of Heaven”? Why such immoderate excitement? Why such intense indignation? …
[T]he sort of crimes and even the amount of delinquency that fill the prophets of Israel with dismay do not go beyond that which we regard as normal, as typical ingredients of social dynamics . To us a, single act of injustice–cheating in business, exploitation of the poor-is slight; to the prophets, a disaster. To us injustice is injurious to the welfare of the people; to the prophets it is a deathblow to existence: to us, an episode; to them, a catastrophe, a threat to the world.
Their breathless impatience with injustice may strike’ us as hysteria. We ourselves witness continually acts of injustice, manifestations of hypocrisy, falsehood, outrage, misery, but we rarely grow indignant or overly excited. To the prophets even a minor injustice assumes cosmic proportions. …
Is not the vastness of their indignation and the “vastness of God’s anger in disproportion to its cause? How should one explain such moral and religious excitability, such extreme impetuosity? It seems incongruous and absurd that because of some minor acts of injustice inflicted on the insignificant, powerless poor, the glorious city of Jerusalem should be destroyed and the whole nation go to exile. Did not the prophet magnify the guilt?
The prophet’s words are outbursts of violent emotions . His rebuke is harsh and relentless. But if such deep sensitivity to evil is to be called hysterical, what name should be-given to the abysmal indifference to evil which the prophet’ bewails? …
The niggardliness of our moral comprehension, the incapacity to sense the depth of misery caused by our own failures, is a fact which no subterfuge can elude. Our eyes are witness to the callousness and cruelty of man, but our heart tries to obliterate the memories, to calm the nerves, and to silence our conscience. The prophet is a man who feels fiercely. God has thrust a burden upon his soul, and he is bowed and stunned at man’s, fierce greed. Frightful is the agony of man; no human voice can convey its full terror. Prophecy is the voice that God has lent to the silent agony, a voice to the plundered poor, to the profaned riches of the world. It is-a form of living, a crossing point of God and man. God is raging in the prophet’s words.”
Meu texto sobre qual edição da Bíblia você deve ler.
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Odisseia
12. (69) Odisséia, de Homero, c.séc.IX AEC, grego. [Frederico Lourenço, 2003.]
Odyssey. [Stanley Lombardo, 2000.]
Odisseia. [Christian Werner, 2014.]
A Odisseia é uma das obras indispensáveis da literatura ocidental, ao lado da Ilíada e a Bíblia. Escrevi mais sobre ela aqui, mas o texto acabou falando muito também sobre a Ilíada.
Esse ano, o tradutor da minha versão preferida foi convidado para a FLIP e aproveitei para ler seu trabalho em Paraty. Foi uma delícia, mas cada releitura da Odisseia me faz gostar mais da Ilíada.
Leia meu texto principal sobre a Odisseia.
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A Bíblia comentada
13. (70) O livro aberto: leituras da Bíblia, de Frederico Lourenço, 2015, português.
Frederico Lourenço, que esteve na FLIP desse ano, tem duas grandes traduções da Odisseia e da Ilíada ao português, fluentes e precisas, lançadas pela Companhia das Letras com excelente aparato crítico. São as traduções que eu recomendo.
Além disso, também está traduzindo ao português a Bíblia grega. (Ou seja, os textos originais do Novo Testamento e a tradução do Velho Testamento ao grego.) Já saiu no Brasil o primeiro volume, com os Evangelhos, e já saiu em Portugal o segundo, com o resto do Novo Testamento. O terceiro, com os livros proféticos, que eu amo, sai por lá no segundo semestre. Recomendo todos.
Agora, aproveitando sua vinda à FLIP, a editora Oficina Raquel (que também publicou o meu Onde Perdemos Tudo) lançou um livro de seus ensaios, muito pessoais, sobre a Bíblia. Foi uma delícia conhecer um pouco mais sobre um homem, professor, intelectual, tradutor a quem sinto que devo tanto. (Por exemplo, como mais teria eu sabido que ele era gay?)
Meu trecho preferido é quando ele comenta essa passagem do livro de Jó:
“A vida do homem sobre a terra, não é ela uma luta? Não são seus dias como os de um assalariado? Como um escravo suspira pela sombra, e o jornaleiro pelo seu salário…” (Jo 7, 1-2)
Uma nota: “jornaleiro” aqui significa o trabalhador braçal que é pago dia a dia, ou seja, jornada a jornada, daí “jornaleiro”, daí “jornal”.
E comenta Lourenço:
“Que mundo de dor está contido na expressão ‘como um escravo suspira pela sombra’! A compensação do jornaleiro pela sobrevivência é o seu salário. Ele sofre, mas recebe sua (miserável) recompensa. O escravo, porém, forçado pelo chicote a trabalhar agrilhoado à torreira do sol horas a fio, não tem nada a que possa aspirar: não tem salário, não tem refrigério, não tem vida pessoal a que regressar após o dia de trabalho. A única coisa por que ele pode suspirar – essa coisa gratuita para todos, menos para ele, mas que mesmo assim lhe é sonegada – é a sombra. A sombra.” (60)
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Convenções da lista
Título, autor, data da escritura, idioma original. (organizador, tradutor, data da organização e/ou tradução) data da leitura.
Quando são dadas várias traduções de uma mesma obra, a primeira foi a principal e as demais usadas para cotejo.
Considero um livro “lido” e acrescento nessa lista quando li o suficiente sobre ele para sentir que posso escrever sobre ele sem estar blefando: o critério é subjetivo e varia de obra a obra.
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A mesma ressalva de sempre
Fazer listas de livros reforça uma ideia que considero muito problemática:
Que “ler é bom”, que todas deveríamos “ler mais”, que ler é uma atividade intrinsecamente melhor do que a maioria das outras, etc.
Mas ler um livro não é mérito, não é vantagem alguma, não é algo para se gabar.
Mais importante, simplesmente ter lido um livro não significa que a pessoa leitora o entendeu, que tirou dele qualquer coisa de relevante, bela, prazeirosa ou útil.
Listar os livros que eu li faz tanto sentido quando listar os vagões de metrô que eu viajei. (Aliás, quase sempre, o 1022 e o 1026, que operam na linha um e são os últimos vagões de suas composições.)
E daí, não?
Apesar disso, incrivelmente, as pessoas pedem e perguntam.
Enfim, a verdade é que trabalho com livros. Para mim, pessoalmente, esse tipo de lista é relevante e me ajuda a sistematizar as leituras.
Então, apesar do efeito negativo de divulgar listas assim, esses foram alguns dos livros que li em julho de 2017.