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Declaração de princípios de Alex Castro

Sou pró-feminista, de esquerda, apoiador do politicamente correto.

Vivo uma relação não-monogâmica. Já participei da comunidade bdsm.

Sou contra a pena de morte. Sou contra a redução da maioridade penal. Apoio a justiça restaurativa.

Não considero que a vida seja sagrada: apóio o direito ao suicídio e à eutanásia.

Sou a favor de direitos iguais para as pessoas homossexuais, inclusive e especialmente casamento e todos os direitos correlatos, como herança, dividir plano de saúde, etc.

Acho que a pessoa comum não deve ter direito a portar armas.

Sou a favor de cotas raciais e sociais nas escolas, universidades, funcionalismo público. E não, isso não resolve, mas é um primeiro passo.

Sou contra a criminalização de opiniões racistas ou homofóbicas, por achar que a lei não tem direito de legislar opiniões, apesar de concordar com Judith Butler que linguagem violenta é violência.

Sou a favor da descriminalização da maconha e de outras substâncias ilícitas de uso recreativo.

Sou a favor do direito irrestrito ao aborto.

Minha mais urgente prioridade política seria colocar uma creche em cada esquina: só quando as mulheres não forem mais reféns da maternidade, elas poderão de fato ocupar o espaço público, e isso mudaria tudo.

Não sou nem nunca fui filiado a nenhum partido político. Para o legislativo municipal, estadual e federal, sempre voto na legenda do PSOL. Votei no Ciro no primeiro turno e no Haddad no segundo. Estou decepcionadíssimo com Lula e com Ciro.

Não acho que foi golpe, mas foi canalhice e fico feliz da bancada do PSOL ter votado contra.

Sou agnóstico, religioso e zen-budista, afiliado à Ordem dos Pacificadores Zen, ordenado Irmão Iquiú em Eininji — Templo do Cuidado Amoroso Eterno, em Copacabana.

* * *

Essas são minhas posições. Elas não estão abertas a debate e podem mudar sem aviso prévio.

Se você discorda delas, saiba que eu respeito sua opinião e não quero te convencer de nada, mas não vou debatê-las com você.

Se você é radicalmente contra minhas posições, talvez não devesse estar me lendo.

De resto, sente-se, fique à vontade, leia os textos.

Abração.

(Atualizado: 11abr2019)

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Mini-manual pessoal para uso não-sexista da língua

Em meus textos, para chamar atenção para o sexismo de nossa língua, estou invertendo a norma e usando o feminino como gênero neutro.

Não porque troquei um sexismo por outro, mas porque o gênero da palavra “pessoa” é feminino.

Trocar:

“Meus alunos não calam a boca.”

Por:

“Minhas alunas não calam a boca.”

Só mantém o sexismo da língua. Pior: sugere que são apenas as minhas alunas mulheres que não calam a boca.

Por isso, hoje, eu digo:

“Minhas pessoas alunas não calam a boca.”

Essa tem sido, pra mim, a maneira não-sexista de escrever.

* * *

Para me referir a seres humanos de modo geral, uso o feminino, idealmente antecedido de “pessoa”.

Por exemplo, o texto “Carta aberta às pessoas privilegiadas” normalmente teria se chamado “Carta aberta aOs privilegiadOs”, se referindo a todas as pessoas privilegiadas do mundo de ambos os sexos.

Se eu mudasse simplesmente para “Carta aberta Às privilegiadAs”, o texto poderia passar a impressão errada, graças ao treino sexista que impusemos aos nossos ouvidos, de falar somente para as mulheres privilegiadas e não aos homens.

Portanto, para evitar essa distorção e manter o significado genérico, o título final ficou “Carta aberta às pessoas privilegiadas”.

* * *

A melhor forma de evitar o sexismo é usar a palavra “pessoa” livremente e sem medo de repetições.

* * *

Só uso o masculino para me referir especificamente a homens.

Trecho da mesma “carta aberta” citada acima:

“Escuto muito: homens reclamando da histeria das feminazis, pessoas cis reclamando da agressividade das militantes trans, brancas reclamando do vitimismo do movimento negro, religiosas reclamando da chatice das ateias militantes. … É comum ouvir as pessoas privilegiadas (homens, brancas, cis, ricas, etc) reclamarem que as militantes de causas marginalizadas (movimento negro, lgbt, trans, feministas, indígenas, ateias, etc) são agressivas, defensivas, estressadas, etc.”

* * *

Ocasionalmente, faço referências a mim mesma no feminino (como no texto “e se eu estiver errada?“), não porque me identifico como mulher, mas simplesmente para que esse estranhamento faça a pessoa leitora refletir sobre a arbitrariedade do uso de gêneros na nossa língua.

* * *

Existem várias outras maneiras de inverter o sexismo da língua, como usar a arroba e o X.

Respeito muito todas as pessoas que também estão lutando por menos sexismo na língua e que escolheram usar essas ou outras opções.

Os meus motivos para não adotá-las são os mesmos de Juno, expostos no texto: Deixando o X para trás na linguagem neutra de gênero

Recomendo também esse utilíssimo manual para o uso não sexista da linguagem.

Para dicas práticas, recomendo o artigo: Escrever com X não é linguagem neutra.

* * *

Essa é apenas uma regra que estou seguindo em meus próprios textos. Não estou impondo nem sugerindo a ninguém.

* * *

Talvez a grande contribuição da filosofia durante o último século tenha sido essa:

As palavras importam. a linguagem molda o mundo.

vale a pena brigar por isso. Não é uma luta vã.

* * *

Se você tem interesse em escrever de forma menos sexista, talvez goste de conferir meus melhores textos políticos, listados abaixo:

Pra começar
Uma história de quatro pessoas

Racismo
Senzalas & campos de concentração
O peso da história: a escravidão e as cotas
Imigrantes sim, mas de que cor?
Racismo, miscigenação e casamentos interraciais no brasil

Feminismo
Feminismo para homens, um curso rápido
A fácil paternidade
Cavalheirismo é machismo
O papel dos homens no feminismo
O segredo de beleza dos homens

Privilégio
Carta aberta às pessoas privilegiadas
Ação de graças pelos privilégios recebidos
O assunto não é você
O valor das pessoas e das coisas
Carta aberta às humoristas do brasil

Pra encerrar
O desabafo da moça do crachá
O baralho viciado

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raça

pode um cabelo ser pior?

um dos grandes problemas das sociedades escravistas sempre foi como distinguir as pessoas escravizadas das livres. cada cultura resolveu o problema de um jeito: mudança de nome, tatuagem, marcar a ferro, vestimentas.

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entropia

um café na beira da estrada

nessa época, eu estava me dividindo entre duas mulheres que eu amava (e ainda amo), uma no rio e outra em são paulo, tentando provar para as duas que esse tipo de relacionamento aberto funcionava, que eu podia ser homem pras duas, que eu podia fazer as duas se sentirem amadas e preenchidas. por causa disso, oliver e eu passamos muitas horas insones, ouvindo muitos audiobooks, fazendo a rio-sp de um lado pra outro, nas horas mais sinistras da noite. e, um dia, completamente exausto, parei num bar de caminhoneiros, porque precisava de cafeína, precisava esticar as pernas, precisava sair daquele carro. era alta madrugada, o bar quase vazio, eu com uma cara exausta, carregando um poodle no colo, e o moço do balcão puxou um café pra mim, feito na hora, não um espresso ou um cappucino ou essas novidades estrangeiras, mas um bom e velho e delicioso e 100% brasileiro café coado de beira de estrada. e eu fiquei ali, bebericando o café e olhando o carro de rabo de olho (lema: confie em todos, mas corte o baralho), enquanto o oliver explorava o bar e falava com todo mundo, e senti minhas energias voltando, e senti que a vida era linda e que tudo iria ficar bem. e quando me ofereci pra pagar, o atendente disse, aqui não se cobra por cafezinho, não, moço. e, não saberia dizer porque, talvez fosse a fadiga, talvez saudades de expatriado, mas aquilo me pareceu a coisa mais linda do mundo e ainda é um daqueles momentos especiais que eu carrego comigo, um recorte no tempo pra onde vou nos momentos de depressão, um instante que visito pra me recarregar. não lembro mais se foi na ida ou na volta, se foi perto do rio ou perto de são paulo. vai ver nem aconteceu. vai ver eu dormi e sonhei isso no último segundo de vida enquanto o carro saía da estrada. vai ver o oliver está agora latindo ao lado do carro – o puto com certeza sobreviveu e deve estar feliz na sua nova família. enfim. seis meses depois, ambas terminaram comigo. uma mais tarde voltou, e depois quem terminou fui eu. a outra veio e foi e, depois, foi e veio de novo. são duas mulheres incríveis e sinto falta delas. enquanto isso, a vida foi indo, como ela sempre faz, linda como ela sempre é.

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textos

por quantos mendigos você passou hoje?

em nossa sociedade, existem pessoas que vivem sem privacidade e sem higiene, sem casa e sem comida, que são obrigadas a dormir em bancos de praça e, ainda por cima, os deixam todos emporcalhados.

isso é um problema, ninguém nega.

mas o problema não é o banco emporcalhado e a praça vandalizada! e nem a solução é gradear a praça, expulsar os mendigos e tomar deles até essa camas improvisadas!

se existem pessoas dormindo em bancos de praça, o problema é justamente existirem pessoas dormindo em bancos de praça.

o papel do estado não é ir lá e proteger os pobres bancos de praça desses meliantes porcalhões, mas sim proteger essas pessoas, que são tão cidadãos quanto eu e você, das vicissitudes da vida: descobrir as causas de seus problemas, tentar resolver, oferecer um prato de comida, uma cama limpa, uma chuveirada.

sim. eu já quis ler um livro em uma praça e o banco estava emporcalhado. aconteceu comigo. aconteceu com você.

mas essa pequena inconveniência não é nada comparada à tragédia de existirem pessoas, tão gente quanto eu e você, que não tem outra opção a não ser dormir em bancos de praça.

o fato de existirem pessoas que não compreendem essa diferença também é uma tragédia.

você daria uma esmola para ele?

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rio de janeiro textos

moro onde você passa férias

é um privilégio morar em uma cidade turística, mas talvez não pelas razões que você pensa.

quando escrevi o texto comparando rio e são paulo, muitos paulistas disseram que parte da fama de preguiçoso do rio vinha do fato que eles mesmos, os paulistas, não conseguiam imaginar alguém trabalhando o dia inteiro ao lado de uma bela praia.

economia aquecida.

já eu levo esse estranhamento um pouco mais além: realmente, não consigo imaginar alguém trabalhando oito horas por dia, fechado em um escritório, por nada desse mundo, em nenhuma cidade! como essas pessoas aguentam?

mas não, as praias não atrapalham o trabalho de ninguém e, pelo contrário, movimentam uma parcela grande da economia da cidade: em 2010, r$ 7 bi e 200 mil pessoas.

transporte turístico lá e cá

cresci na barra da tijuca.

em algum ponto da década de oitenta, a prefeitura criou as jardineiras : um ônibus aberto, de bancos de madeira, que fazia todo o circuito da orla, levando turistas e surfistas. várias vezes, peguei a jardineira pra ir ao trabalho ou para a universidade.

o privilégio é justamente estar vivendo minha vida e fazendo minhas tarefas cotidianas, pensando no trabalho, na reunião, na aula, mas cercado de pessoas muito felizes, que pagaram caro para estar ali em minha volta, animadas, conversando, tirando fotos, vendo a beleza nos menores detalhes, encontrando a maravilhas em paisagens que para mim já eram comuns, constantemente me relembrando a olhar a vida por novos ângulos.

jardineira, na orla do rio, cerca de 1985.
jardineira, na orla do rio, cerca de 1985.

no século seguinte, morei por seis anos em nova orleans, outra cidade linda e decadente, hospitaleira e turística, sexy e carnavalesca. e praticamente sem transporte público. a linha de bondes de carrollton, a mais antiga linha de bonde em funcionamento contínuo do mundo (desde 1833!), é uma entre tantas atrações turísticas da cidade.

o bonde era notoriamente não-confiável e os habitantes quase nunca usavam. eu, por exemplo, morava a meia hora a pé do trabalho: quando queria ir de bonde, só para garantir não atrasar, precisava sair de casa uma hora antes.

mas valia a pena. só para ver, enquanto preparava minhas aulas, tanta gente tão feliz e tão rosada, fotografando os shotguns e as mansões sulistas, apontando para os beads pendurados nos enormes carvalhos .

tanta alegria era contagiante. eu já chegava em sala de aula renovado.

pelo menos eles raramente atropelam alguém

os condutores de bonde, aliás, eram uma espécie a parte.

uma vez, apesar do bonde nem estar cheio, o condutor desistiu de parar nos pontos. simplesmente passava direto e apontava pra trás: “peguem o próximo”.

para um carioca, era experiência comum ver um ônibus passar a toda pelo ponto, enquanto pobres cidadãos quase levantavam voo de tanto abanar os braços. em nova orleans, também: alguns passageiros reviraram os olhos e só. continuamos a viagem e voltei ao meu livro.

O bonde de Nova Orleans.

então, depois de um tempo, para minha surpresa, sinto o bonde parando.

pela porta da frente, entram duas moças lindas, uma loira e uma negra, com mapas e guias embaixo dos braços, e o condutor prontamente faz uma mesura com seu boné e começa a oferecer dicas turísticas da cidade.

“welcome to new orleans”, ele disse, e eu pensei, cá com os meus botões, que não era à toa que esse carioca desterrado se sentia tão em casa na capital do jazz.

todo dia nublado é uma pequena tragédia

a fotógrafa claudia regina (autora do incrível texto como se sente uma mulher) se mudou para o rio há pouco tempo. em uma de suas visitas anteriores, foi ao cristo em um dia nublado. uma velhinha saiu do elevador, procurou a estátua… e não viu nada:

“imaginei a velhinha juntando dinheiro a vida toda pra visitar o rio de janeiro. que o sonho de sua juventude era ver a estátua do cristo. que aquele era seu último dia e que logo voltaria para düsseldorf, onde morreria sem nunca ter realizado seu maior sonho.

faz poucos meses que vim morar na cidade maravilhosa. em curitiba, quando o dia amanhecia chuvoso, eu só ficava com preguiça de sair da cama. agora, penso sempre que deve haver uma pobre velhinha que gastou todas suas economias para vir pegar chuva no rio.”

(leia o texto completo: morar em uma cidade turística)

cadê?
cadê?

* * *

um texto sobre o rio e são paulo: rio e são paulo, duas arrogantes

dois textos sobre nova orleans: geladeiras distópicas na nova orleans pós-katrina e a importância de um restaurante na nova orleans pós-katrina

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arte

amor vândalo

amor vândalo.
amor vandâlo.
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nomes datados

nasci no sábado de carnaval de 1974. só na minha sala, havia 8 alexandres. é um dos nomes mais comuns da minha geração. já interroguei todas as mães de alexandres nascidos nessa época e elas negam a existência de algum alexandre famoso causador dessa avalanche. ainda não desisti de encontrá-lo.

faz uns alguns anos, um moço chamado raoni comprou um dos meus livros.

lá pelos idos de 1989, o cantor inglês sting e o cacique raoni correram o mundo, dupla dinâmica ecológica, tentando chamar atenção para o desmatamento da amazônia. dizem que o sarney não aguentava mais eles.

e, agora, hoje, já tem gente chamada raoni votando, transando, comprando meu livro.

fim de semana passado, em brasília, realizei a palestra “as prisões” na casa de um leitor universitário chamado laio.

laio é um nome grego clássico. o velho rei de tebas. pai de édipo, marido de jocasta, morto em uma encruzilhada pelo próprio filho que ele enviara para a morte.

mas também foi um personagem da novela mandala, exibida pela globo em 1988, uma releitura da velha tragédia grega. jocasta era vera fischer, édipo, felipe camargo e laio, o veterano perry salles.

envelheço, envelheço. mas é melhor que a alternativa.

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textos

meu emprego de sonhos

criador de nome de esmalte e de operação da polícia federal.

"o cabo poeta". macanudo, por liniers

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arte

preliminares

pra fazer literatura, não é preciso ser inteligente, articulada, embasada. na literatura, tentamos criar sensações na outra: fazer rir, chorar, sentir medo. é como o sexo, onde você estimula o corpo da parceira, buscando aqui uma cócega, ali uma mordida, quem sabe uma arranhada, talvez uma lambida. é uma atividade quase física que não requer nenhuma inteligência, apenas sensibilidade.

a literatura é uma carícia no clitoris.

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zen

uma caneca

de repente, minha caneca térmica de tomar café começou a sumir. fui procurar e descobri que um dos colegas de casa, o nate, estava usando.

me irrita bastante não ter acesso a minha caneca. afinal, não foi pra isso que eu a comprei? para beber café?

toda vez que procuro minha caneca e não encontro, fico puto. fico puto de verdade. ensaio diálogos mentais de marchar quarto adentro do nate e dizer coisas como:

olha só, vamos fazer um trato? sim, todo mundo pode usar tudo de todo mundo, mas vamos combinar que cada um tenta usar prioritariamente as suas coisas e, se não estiverem disponíveis, as dos outros, ok?

talvez muitas pessoas concordassem com essa minha irritação.

pena que ela está errada. é babaca, pequena, mesquinha, egoísta.

o colega de casa não sabe que a caneca é minha, que me irrito que ele a use, que só bebo café nela: ele sabe apenas que não foi ele que comprou mas que ela está no armário junto com outras dez canecas que ele também não comprou. como ela só some de vez em quando, ele não a usa sempre: deve simplesmente pegar a primeira que aparece e pronto.

não, não uso nada dele. teoricamente, os objetos de cozinha são de uso comum (facas, panelas, potes, canecas, etc), mas eu já tenho as minhas próprias coisas, não preciso usar as de ninguém.

o nate é uma pessoa ótima, linda, aberta, carinhosa, generosa. um cara realmente desapegado. trabalhava em uma financeira, num emprego pacato e seguro, largou tudo pra fazer escola de culinária, e depois, veio pra nova orleans trabalhar no melhor restaurante da cidade, trazendo apenas a bagagem que cabia no seu carro. ele usa minha caneca porque nem tem a dele.

imagino que não haveria nenhum problema em falar sobre isso. tenho certeza absoluta de que ele não teria nenhuma reclamação. ele é norte-americano, respeita a propriedade privada!

olha, sabe como é, eu gosto dessa caneca, só tomo café nela, de vez em quando eu procuro e não encontro, você poderia tentar usar as outras antes de usar essa? na boa?

mas não vou falar nada. porque o problema sou eu.

o problema não é o nate (uma pessoa generosa que outro dia quase deu cinquenta dólares pra uma velha trambiqueira numa cadeira de rodas) abrir o armário e pegar a primeira caneca que vê pela frente. o problema sou eu ter qualquer tipo de apego a um objeto de plástico vagabundo, que custou 6,99 dólares mais impostos, sem qualquer valor intrínseco ou sentimental.

não quero ser a pessoa que regula uma caneca. não quero chegar pro meu colega de casa, com a mão das cadeiras e a voz irritada, e pedir pra ele por favor não usar a minha caneca! eu não quero escrever bilhetinhos “vamos cada um usar nossas próprias canecas?”

eu não quero ser essa pessoa. eu não sou essa pessoa. eu não sou essa pessoa porque eu não quero ser essa pessoa. eu não sou essa pessoa porque 99,99% de tudo o que acontece no universo (provavelmente mais) está fora do meu controle, mas eu pelo menos ainda tenho controle sobre algumas coisas: eu posso até ser uma pessoa que se incomoda do colega de casa usar sua caneca preferida, mas eu decido não ser a pessoa que reclama com o colega de casa de ele estar usando sua caneca preferida.

poucos conselhos são mais canalhas do que o clássico “seja você mesmo”. a maioria dos problemas do mundo veio de gente que estava simplesmente sendo si próprio.

mais importante do que “ser você mesmo” é ser quem você quer ser. todas as forças do universo nos impelem a nos conformarmos, a aceitarmos as regras do mundo, a cedermos, nos moldarmos. ser a pessoa que você quer ser é uma das tarefas mais difíceis do mundo. é uma luta diária, surda, interna, contra seus próprios preconceitos, suas mesquinharias, seus egoísmos.

se quero ser menos invejoso, menos ciumento, menos egoísta, então, basta ser.

ser quem eu quero ser é o mínimo que devo a mim mesmo. se não sou nem isso, então não sou nada.

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para que servem os espelhos e os namorados

antes de um evento social. eu tomando banho, a namorada de então se maquiando. de repente, a pergunta:

– estou bem?

– está ótima. lindíssima. perfeita.

(silêncio)

– alex, você viu como eu estou?

– não, meu amor. estou com xampu no olho e tudo. mas não preciso te ver pra saber que você está sempre linda e ótima. além disso, tenho quase quarenta anos, cresci cercado de mãe, irmã, melhores amigas, ex-esposa, namoradas. fui muito bem treinado pra saber que essa pergunta só tem uma resposta. o fato de eu não conseguir te ver não muda nada.

– então, você sempre vai dizer que estou ótima e linda?

– sempre. tenho amor à vida.

– e se eu não estiver? e se a maquiagem estiver borrada?

– bem, é pra isso que inventaram espelho, não namorado.

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os mesmos olhos

em junho de 2000, minha irmã e eu estávamos procurando uma nova cachorra para nossa casa. então, uma amiga nos ligou: sua labradora dourada acabara de dar cria e ela guardara para nós a filhote mais linda, de olhos verdes. fomos buscá-la, nome já escolhido: esmeralda, como os olhos.

chegando lá, enquanto minha irmã conversava com a amiga e eu me jogava na grama entre os pingos de doce de leite, reparei em uma outra cachorrinha da mesma ninhada, que me encarava com os mais doces e lindos e profundos olhos castanhos que eu já vira. aquele olhar me conquistou.

levei a cachorrinha até minha irmã. ela também se apaixonou.

nossa amiga não entendeu: mas eu guardei pra vocês logo a de olhos verdes! a mais linda! labradora de olhos castanhos é muito comum!

não esses olhos, eu disse.

com certeza, não faltaram bons lares para os olhos verdes da esmeralda. mas quem levamos pra casa foi a sabrina.

os anos se passaram e o pingo de doce de leite logo se transformou em um tonel de doce de leite. sempre linda. sempre com aqueles olhos.

hoje, treze anos depois, sabrina está idosa e doente, como estaremos todas nós, se tivermos a sorte de chegar até lá.

quando soube os detalhes de sua grave condição de saúde, me lembro de ter pensado: meu deus, por que não sacrificam logo essa bichinha? essa é das maiores vantagens de ser cachorra e não humana. por que estender esse sofrimento?

mas, então, fui visitá-la.

mesmo magra e convalescente, mesmo sem conseguir comer pela boca e andando com dificuldade, lá estavam aqueles olhos. aqueles mesmos olhos. vivos, lindos, profundos, doces. olhos de quem ainda não desistiu. olhos de quem está na batalha. olhos de quem quer viver. olhos que não envelheceram. os mesmos olhos daquele pinguinho de doce de leite que me conquistou.

um dia, quando estivermos idosas e entrevadas, incapazes e enrugadas, a única lembrança que vai restar da criança que fomos um dia são nossos olhos. os mesmos olhos.

sabrina.

* * *

para chamar atenção para o sexismo da nossa língua, o texto acima usa o feminino como gênero neutro.

* * *

os olhos da sabrina se fecharam no dia 7 de outubro de 2013, aos 13 anos de idade, pouco menos de um mês depois de eu escrever esse texto.

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“alex, você preferia uma filha gay ou ladra?”

conversando com uma amiga sobre homofobia, ela de repente me sai com essa:

“alex, falar essas coisas que você fala é muito fácil! na prática, na verdade, diz aí: você preferia ter uma filha gay ou uma filha ladra?”

quando finalmente parei de rir, respondi que “gay”, claro, mas por pouco.

afinal, por um lado, não consigo imaginar nenhum problema possível ou imaginário em ter uma filha gay.

e, por outro, como nunca tive nenhum amor pela propriedade privada, não vejo “ser ladra” como algo tão horrível assim. mas faltaria explicar muita coisa: como assim, “ladra”? existe isso de “ser ladra” como categoria ontológica definidora do indivíduo? ela rouba por compulsão? porque precisa pra alimentar as filhas? por diversão? por ideologia anti-capitalista? ela consegue se abster de roubar se for necessário? ela rouba com violência ou somente furta? ela rouba de quem pode absorver o prejuízo ou rouba as poupanças de velhinhas aposentadas?

naturalmente, minha amiga achou que eu estava de sacanagem. pra ela, nenhuma dessas distinções tinha nenhuma importância e, por motivos que sinceramente não consigo conceber, lhe era auto-evidente que ter uma filha gay destruía a felicidade de qualquer pessoa.

aliás, felicidade muito mequetrefe essa que se deixa destruir pela orientação sexual de terceiras.

* * *

talvez ela devesse ter me feito outras perguntas:

“alex, o que você prefere: uma filha homofóbica ou racista? conservadora cristã ou que usa uma camiseta 100% branca? que acha que são paulo leva o país nas costas ou que é membro da opus dei?”

mas o pior é que seriam falsas escolhas. porque a racista quase sempre é a homofóbica. a conservadora cristã quase sempre usaria a camiseta 100% branca. a membro da opus dei quase sempre acha que são paulo sustenta o brasil.

como separar? onde termina a loucura e começa a nojeira? onde termina a falta de empatia e começa a falta de caráter?

é por isso que nunca respondo perguntas hipotéticas.

* * *

talvez o mais interessante tenham sido as escolhas da minha amiga para “pior coisa que se pode querer para uma filha”:

“gay e ladra”.

não assassina e flamenguista. não freira e agressora doméstica. não libriana e corrupta. não anarquista e sonegadora. não pedófila e gamer.

mas sim “gay e ladra”. uma que vai contra a heteronormatividade e outra, contra a propriedade privada.

ou seja, o termo “heterocapitalista” deve ter sido inventado para descrever exatamente minha amiga.

na verdade, a palavra “heterocapitalismo” serve, antes de mais nada, para irritar as heterocapitalistas.

se eu digo que quero destruir o “heterocapitalismo” e você já fica puta, arranca os cabelos, diz que isso não existe… então, é você.

vamos derrubar tudo?

(imagem by juno cremonini)

* * *

para chamar atenção para o sexismo da nossa língua, o texto acima usa o feminino como gênero neutro.

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o demônio

hoje de manhã. oliver está empacado e eu chamando, vem, animal, vem.

uma das velhinhas de copacabana faz carinho em seu pelo e diz, ah, não chama ele de animal…

e respondo: ok. vem, demônio, vem!

ela me olha com uma expressão de horror e eu explico: mas esse é o nome dele. demônio. vem, demônio!

a senhorinha pega o rosto do oliver pelo queixo e levanta seus olhos: ah, não acredito!

e eu: minha senhora, olha bem pra cara dele. isso é um demônio.

demônio.
demônio.

* * *

acho que só quem anda comigo regularmente sabe que faço mesmo essas coisas.

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dos medos

amigo: alex, vc não tem medo de falar essas coisas e acharem que vc é gay?

eu: amigo, você não tem medo de falar essas coisas e eu achar que vc é homofóbico?

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a solidão é um egoísmo

narciso.

ninguém reclama “estar sozinho”, sente “vazio existencial”, ou quaisquer outros desses caprichos bem-alimentados, quando está ouvindo, acolhendo, se doando para outra pessoa.

narciso não estava só: ele tinha seu reflexo.

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um pouco sobre bashô

cinco haicais

escritos na juventude de bashô, entre 1666 e 1672.

na festa junina
corações desencontram
chuvorgasmo

* * *

botões de flor
pena que primavera não abre
uma bolsa de poemas

* * *

dentro da igreja
fiéis não têm como saber
cerejeiras em flor

* * *

casal de veados
pêlo no pêlo em consenso
pêlo tão duro

* * *

broto de bambu
gerações também escorrem
pelo orvalho

* * *

algumas notas

no original do primeiro haicai, bashô faz referência a um festival de verão, frequentemente interrompido por chuvas, onde havia o equivalente das nossas simpatias românticas de santo antonio nas festas juninas. a última palavra é um neologismo entre chuva e orgasmo.

no original do terceiro haicai, ao invés de “igreja”, bashô cita o nome de um templo budista. esse haicai é geralmente considerado uma crítica ao egocentrismo das pessoas religiosas que “rezam” muito mas não enxergam o mundo a sua volta.

em suas cartas, bashô revelou desejos homoeróticos que não se sabe se realizou. o quarto haicai é geralmente lido sob essa luz. é interessante a repetição da palavra “pêlo” três vezes. o animal “veado” tem uma conotação homossexual em nossa cultura, mas não, que eu saiba, na japonesa.

* * *

bashô é um dos grandes nomes da literatura mundial e mestre reconhecido em haicai. as versões acima, libérrimas, são minhas, baseadas na tradução inglesa muito bem anotada por jane reichhold, publicada pela kodansha.

* * *

basho

a bananeira

em 1680, um estudante deu a bashô uma muda de bananeira para seu jardim, uma árvore muito rara e exótica no japão. sobre ela, o poeta escreveu:

“suas flores, ao contrário de outras, não têm alegria alguma. seu tronco é intocado pelo machado, pois sua madeira não serve para nada. porém, amo essa árvore por sua própria inutilidade. … sento sob suas folhas e aprecio ver o vento e a chuva soprando contra ela.”

pouco depois, o poeta mudou pela última vez de pseudônimo e passou a assinar “bashô”, nome pelo qual está eternizado.

em japonês, “bashô” quer dizer “bananeira”.

* * *

a libélula

um dos alunos de poesia de bashô veio mostrar a ele, empolgado, um haicai sobre arrancar as asas de uma libélula para deixá-la parecida a uma pimenta vermelha.

bashô, que não tolerava crueldade nem no faz-de-conta, sugeriu trocar a ordem dos fatores: acrescentar asas a uma pimenta vermelha para deixá-la parecida a uma libélula.

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“torne-se indispensável”

acompanhar o noticiário converteu-se em um investimento narcissista.

eu me informo sobre a crise no egito não por empatia e curiosidade, não por realmente me importar com o destino do povo egípcio, mas sim para me gabar de minha cultura, para ter assunto no almoço com as colegas de trabalho, para impressionar a chefa.

ou, como diz a nova campanha de um canal de notícias que sabe EXATAMENTE o que está vendendo:

torne-se indispensável
torne-se indispensável

e eu me pergunto: o que quero? me tornar indispensável? ou me tornar uma pessoa melhor?

existe algo de seriamente errado em uma cultura que vende como fundamental a necessidade de saber o nome do presidente da frança mas não do porteiro do prédio.

 

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respeito

não se muda o mundo respeitando a opinião de quem te oprime.