“A cachorra atropelada” é um dos contos inéditos do meu novo livro Mentiras reunidas. Abaixo, a primeira parte.
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I. O passado
Balneário do R— de J—, muitas e muitas décadas atrás, no ano de 197—
A cidade cresce para a B—, pensou Bruno, acariciando o chaveiro em seu bolso, chaves virgens e assanhadas, ao mesmo tempo se guardando para ele e prometendo orgias sem fim, provas concretas da vida nova que começaria. Apartamento 1212. Mil duzentos e doze. Doze e doze.
Atrás dele, do outro lado da avenida S—, as ondas se quebravam na praia deserta, enquanto o sol se punha no mar. À sua frente, erguiam-se as duas primeiras torres da B— da T—, Ocean Privilege e Ocean Paradise, novíssimas e inabitadas, envidraçadas e modernosas, imaculadas e puras.
Até o porteiro parecia empolgado com as possibilidades: Que pressa, seu Bruno! O senhor vai ser o primeiro morador do bloco um. O Habite-se saiu só ontem! Enquanto Bruno passava com sua pequena mudança, ele abria portas e segurava elevadores, falava da Fusão e da Seleção, da ponte R—-N— e do carrossel holandês, tagarelava e papagaiava. Até que, quando estava tudo no elevador, Bruno quase subindo, ele chamou, lá da portaria: Seu Bruno! Seu Bruno! Bruno segurou a porta e ele veio correndo. Parou a um passo de Bruno, pareceu pensar, hesitou, decidiu, aproximou o rosto e disse, em voz baixa e de olhos baixos, como quem compartilha um sutil segredo, uma cúmplice confidência: Eu também me chamo Bruno.
As portas se fecharam.
O porteiro Bruno tinha razão: o primeiro morador Bruno abandonara o quartinho que alugava em uma república na rua S— C— e viera correndo e ansioso, quase trazendo a pouca mudança nas costas. Não aguentava mais o bairro de C—: o crime e a violência, o trânsito infernal e as vagas inexistentes, os mendigos e os pedintes, a praia lotada e a água poluída. A B— da T— era a chance de um novo começo, de uma nova qualidade de vida: uma refundação do R— de J—, um renascimento de Bruno H—, sem carregar nas costas os erros do passado e sem precisar pagar o preço das más decisões, tábula rasa e vida nova, clichês e obviedades, falsas estreias e arbitrários recomeços na marcha única e ininterrupta, unidirecional e inexorável do tempo.
Para Bruno, pela primeira vez proprietário de imóvel, agora morando em um dois quartos só dele, em frente à praia da B— da T—, com vista para o mar e para a lagoa, dependências de empregadas e duas vagas na garagem, sauna e piscina, quadras e churrasqueiras, não era possível que tudo continuasse igual, não era concebível que continuasse estragando todos seus relacionamentos, não era imaginável que continuasse bebendo sozinho todas as noites. Se não, nada faria sentido. E a vida tem que fazer sentido.
A vida faz sentido, pensava Bruno, em sua primeira noite no apartamento, noite escura sem lua, cadeira de praia na varanda, como um general supervisionando um território recém-conquistado que nem conseguia ver mas tinha segurança inflexível de que estava ali, plenamente seu, a sua mercê, aos seus pés. Na torre ao lado, puro breu: por hoje, ainda era ele o único morador em ambos os prédios. No mar, nenhum navio ao longe. Na praia, quase lá no R— dos B—, uma única luz tremia na areia, provavelmente uma fogueira de acampamento. Na avenida, quase nenhum prédio: só casas de praia, agora vazias, e dunas brancas, agora invisíveis. Em breve, essa avenida seria um novo R— de J—, dessa vez sem c—ização, sem prédios grudados bloqueando a luz do sol e cortando a circulação do ar. Quando Bruno acabasse de pagar o apartamento, daqui a duas dúzias de anos, já em um novo século, poderia (se quisesse) vender o imóvel por cinco, dez, doze vezes o preço. Mas não venderia. Ah, não! Por que venderia o apartamento onde começou sua vida adulta e viveu seu grande amor, onde concebeu seus projetos e criou seus filhos? O futuro era tão claro e tão concreto, tão inevitável e tão sólido, que era como se já tivesse acontecido, como se pudesse ser tocado e acariciado, polido e lustrado.
Bebeu mais um gole de sua garrafa de uísque. Era a última que bebia. Era a última que tinha comprado. Não podia jogar fora, caramba. Estava celebrando. E daí que estou sozinho? Afinal, sou o único morador. Por hoje, e por todos os dias do passado até hoje, sou a única pessoa que jamais morou nessas duas torres, novíssimas e inabitadas, envidraçadas e modernosas, imaculadas e puras. Não saberia explicar por quê, mas esse pensamento o enchia de poder e de potência, de força e de masculinidade: Nunca desvirginei ninguém, mas tirei o cabaço de uma torre de trinta andares.
Afagado por esse carinho e um pouco bêbado, dormiu ali mesmo, na cadeira de praia, e acordou diante do esplendor da praia da B— da T— na primeira manhã do verão.
Bruno deveria ter resolvido várias questões burocráticas da mudança. Mas, lá de cima, a praia olhou para ele, ele olhou para a praia, e se amaram.
As poucas nuvens apareciam apenas de passagem, correndo de um canto do céu ao outro, como se tivessem um compromisso urgente lá pros lados de J— ou do J—. Finalmente, quando era quase meio-dia, Bruno decidiu que o sol estava intenso demais para o que considerava sua cútis teutônica: voltou para casa e se entregou ao abraço do chuveiro.
Então, em pleno primeiro banho no novo apartamento, por cima do ruído das chamas queimando gás no aquecedor e de sua mão ensaboada esfregando as partes íntimas, ainda mais alto do que o som do novíssimo chuveiro rugindo com a enorme pressão d’água ou dos jatos comprimidos atingindo as paredes envidraçadas do boxe e o chão azulejado, audível até mesmo por tímpanos cobertos por água e sabão, xampu e condicionador, uma mulher gritou.
Mesmo ali, naquele boxe de última geração, sentindo-se acolhido pela névoa de vapor quente quase como um bebê no útero, ainda assim o corpo de Bruno parou e gelou, travou e tremeu.
Ele quase pensou não há de ser nada, quase desligou a água para ouvir melhor, mas decidiu não. Todo o seu corpo, tenso e arrepiado, quente e gelado, todos seus instintos, depurados por milênios da mais cruel seleção natural, tudo de inarticulável e de ilógico dentro dele sabia que sim, era alguma coisa: era alguma coisa de séria, era alguma coisa de terrível. Em cada célula de seu corpo, incontáveis gerações de macacos pelados extremamente eficientes em fugir de predadores gritavam para ele ficar; para ficar ali dentro do boxe; para ficar no quentinho, no úmido, no aconchegante; para evitar ao máximo lidar com qualquer situação capaz de fazer uma pessoa humana gritar com tanta entrega, com tanta dor, com tanta angústia.
Bruno continuou o banho. Os gritos também continuaram, nunca pararam, um após o outro, um se transformando no outro, cada vez mais reverberantes, cada vez mais desesperados. O cérebro racional de Bruno, atrasado e confuso, finalmente articulou seu primeiro pensamento consciente: gente, que coisa!, uma briga dessas, no primeiro dia de prédio!, será que vai ser assim sempre?, que povo barraqueiro! O corpo de Bruno, se brigasse com as mesmas armas, poderia contra-argumentar que era óbvio que Bruno ainda estava sozinho no prédio (ele saberia se alguém tivesse se mudado para algum dos apartamentos vizinhos nas últimas doze horas) e que, mais ainda, aquela não era uma briga normal, aqueles não eram gritos normais, que a situação pedia medidas mais sérias do que pensar gente, que coisa!
Mas o corpo não contra-argumenta: ele treme e sua, ele palpita e trava, ele bombeia sangue e libera adrenalina. Mais importante, ele decide que, por pior que seja ir em direção ao horror, pior ainda é ser pego indefeso por ele, e, antes mesmo que o idiota do cérebro possa articular o que está acontecendo, o corpo desliga a água e sai do boxe.
O som lhe atropelou com a violência de cavalos desgovernados.
Aquilo não estava acontecendo no vizinho. Era ali dentro, como uma televisão no volume máximo, ou melhor, como uma televisão enlouquecida em um volume acima do máximo. Urros de raiva e berros de dor. Objetos sendo atirados ou arrastados.
Mas não ali no banheiro. Lentamente, pingando água, sentindo o corpo começar a esfriar, Bruno saiu para o corredor. De um lado, os dois quartos. Do outro, a sala. O tumulto era tão retumbante que parecia vir de todas as direções, soava ubíquo e onipresente, mas, afinando os ouvidos, dava pra perceber que vinha da sala. Estava na sala. Tudo acontecia na sala. A balbúrdia pertencia à sala.
Com seu corpo e sua mente agora juntos, em um mesmo desespero pegajoso, em um mesmo tosco trabalho em equipe, Bruno lentamente pingou em direção ao frenesi de vozes reverberando naquela sala ainda vazia.
Apesar de tudo, apesar dos ruídos de vidro quebrado e madeira estraçalhada, de tapas e de chutes, de pele contra pele, de carne contra carne, a sala vazia estava inapelavelmente vazia, vazia de objetos, vazia de pessoas, ainda esperando pela mudança, povoada apenas pelo sol forte de verão que entrava implacável pela varanda, transformando o ambiente numa sauna de pequenas partículas flutuantes brilhando contra a luz. A sala vazia estava vazia.
A orquestra polifônica de terríveis sons parecia percorrer a sala em ondas, às vezes mais distante, às vezes delirantemente próxima. Eram tapas ou socos? Objetos arrastados ou atirados? Ali, na divisa entre a sala e os quartos, sob o umbral de uma porta que não existia, Bruno, sem saber o que fazer, com receio de entrar na sala, com receio de dar as costas à sala, se deixou ficar, paralisado, estacionado, petrificado. Ouvindo, ouvindo. Esperando a qualquer momento levar um chute perdido, ou sentir os perdigotos daqueles berros demoníacos.
Porque havia vozes. Vozes humanas. (Uma voz?) Vozes humanas estrondeando e trombeteando. (Talvez duas?) Vozes humanas bramando e esbravejando a um palmo de seus tímpanos. (Um homem e uma mulher?) Só em peças de teatro onde se sentara na primeira fileira Bruno ouvira gritos tão altos, tão próximos. Dava pra sentir o calor radiando do corpo da atriz, ver as gotas de suor surgindo em sua testa, cheirar seu bafo quente de cigarro, receber no rosto uma saraivada de pequenos perdigotos. Ali, abraçado pelo berratório cavernoso, cercado pelo vozerio demônico, era tudo isso que Bruno, de modo não-verbal, não-lógico, não-racional, esperava sentir. Teria sido aterrorizante cheirar o bafo e receber os perdigotos de uma boca alucinada e espectral que troava desde as profundezas de tempos imemoriais, mas também era aterrorizante, inexplicável, inquietante, que tantos sons, tão profundos e tão pavorosos, reverberando e ressoando naquela sala vazia, não tivessem nenhuma contrapartida física, concreta, cinética. Se cordas vocais fantasmagóricas podem criar ondas sonoras reais que viajam pelo ar real e se propagam em uma sala real, por que uma boca fantasmagórica não soltaria perdigotos reais?
Nada disso Bruno pensava ou articulava: ele somente ouvia, sentia, deixava o terror passar por ele em ondas, como as ondas da praia ali em frente, fatais para os distraídos e para os incautos, mas inofensivas para quem, como Bruno, apesar de incapaz de se mover, sentindo o gosto de sal em seus lábios, se entregava ao subir e ao descer daquele escarcéu bravio e mexido.
Aterrorizado mas curioso, Bruno tentava identificar os sons. Foi um tapa? Pareceu um tapa. Agora, foi um móvel. Sendo arrastado? Virado? Jogado? No meio de tudo, estrepitando e ribombando, vozes humanas guinchando, urrando, sofrendo.
Depois de longos, ondulantes minutos paralisado sob o umbral da porta, um alarido inacreditavelmente mais alto, mais agudo, mais penetrante (era possível algum volume ser mais alto do que o volume no qual o furdunço já estava?) quebrou a paralisia de Bruno, que sentindo-se quase concretamente golpeado, quase fisicamente empurrado, deu um passo atrás instintivo, reativo, defensivo, e seu corpo se deu conta que, sim, movimentar-se ainda era possível, ainda era uma opção e talvez fosse até a decisão mais apropriada.
No calor inviável daquela manhã de verão, o corpo de Bruno continuava úmido, a água do banho agora misturada com um suor gelado, e ele foi dando passo atrás de passo, deixando um rastro molhado pelo chão, quase esperando ver nele pegadas inexistentes dos espectros trovejantes, afastando-se mais e mais do alvoroço sepulcral, seu corpo todo se permitindo um mínimo relaxamento ao se sentir nem que fosse apenas alguns metros mais distante da fonte de tanto horror, de tanta dor, até finalmente chegar no banheiro, também quente, também ainda úmido, ainda vaporoso, e bater e trancar a porta, como se aquele fosse um crucial gesto de segurança, a diferença entre a sobrevivência e a morte.
Houve uma diferença. A porta fechada abafava parte do som. O furdunço demoníaco continuava trovejando em um volume impossível, mas nada parecido a quando Bruno estava no umbral da porta inexistente, sentindo-se quase no meio de um redemoinho clamoroso invisível, recebendo verdadeiros açoites impossíveis de chicotes sonoros imateriais.
Bruno estava exausto. O efeito restaurador do banho havia passado num instante e ele se sentia velho, gasto, esvaziado. Ao primeiro ensaio de relaxamento, seus músculos tensionados, esticados durante (horas?, minutos?, quanto tempo já durava a inferneira?) começaram a tremer, ceder. Caiu contra a privada, sentado, nu, sobre os azulejos molhados e frios do chão do banheiro, e os calafrios lhe despertaram um pouco. Sentiu-se quase vivo. Ensaiou uma tentativa de, quiçá, recuperar a respiração. A vida talvez fosse novamente possível. Quem sabe até boa? Mas não vingou. Não vingou.
As sonorições aumentaram, cada vez mais caóticas, cada vez mais brutais, vozerios lancinantes e golpes zumbantes, mais e mais estrondosos, mais e mais estrepitosos. Bruno mal percebeu ter tido o seu primeiro pensamento consciente em muito tempo (está piorando ou só se aproximando?) e, na prática, Bruno, que diferença faz?, mas a pergunta logo foi respondida, pelo estrondo de uma porta se fechando, pelo clique de uma chave se trancando, pelo baque de um corpo se atirando contra uma porta com toda a força e o desespero que apenas um ser humano ensandecido é capaz, contra aquela porta ali, diante de Bruno, placidamente fechada, deixando sair os últimos vapores do banho começado (quando? uns dez anos atrás?).
Dentro do banheiro, entre choques violentos de carne contra madeira, Bruno ouvia choros e ganidos, uma respiração ofegante e desesperada, um crocitar baixinho, e se perguntava, sou eu?, sou eu?, mas, de novo, Bruno, que diferença faz?, e não houve tempo de pensar mais nisso, pois logo a porta, aquela porta (ali placidamente fechada) explodiu em mil pedaços, e como descrever o ruído inconfundível de uma porta sendo arrombada, um ruído que Bruno nunca ouvira e que simplesmente não poderia ser outra coisa a não ser uma porta sendo destruída, arrombada, irrompida por quase cem quilos do maior predador do planeta passando desembestado, enlouquecido, furioso, descabelado? Aquela porta, ali perfeitamente intacta?
Recostado contra a privada, Bruno se encolheu, abraçou as pernas, enfiou a cabeça entre as coxas, tentou tapar os tímpanos. Nada em sua vida tinha lhe preparado para aqueles sons. Ele não sabia que era possível existirem sons tão altos, tão ressoantes, tão infernais. Sons sem começo e sem fim. Uma cacofonia operática de dor e desespero. Em seu banheiro. Aproximando-se. Cada vez mais retumbante.
Já não se ouviam mais respirações ou ganidos, sussurros ou gemidos. Só gritos. Os piores urros que cordas vocais humanas (onde? onde? de quem? de quem?) poderiam concebivelmente emitir, ali, ribombando em seu crânio, dentro dele mesmo, ecoando em seus ossos, em seu tecido, em seu sangue. Bruno estava o mais encolhido possível, seu rosto quase em sua virilha, os tímpanos completamente bloqueados pelas coxas, e ainda assim o som ficava mais trovejante, mais fragoroso, mais… interno! Seria possível? Mas era. Estava acontecendo. Os gritos estavam ali, dentro dele. Eram ele. O berro sou eu.
Até que não. Até que foram substituídos por engasgos, grunhidos, guinchos. Cada vez mais abafados, cada vez mais sufocantes. De repente, foi o silêncio que tornou-se ensurdecedor. Aquele silêncio, súbito, cruel, assassino, depois de tantos gritos, de tanta dor, de tanta fuga, aquele silêncio era ofensivo, era nojento, era uma agressão, era uma violência.
A raiva repentina quebrou o encanto e despetrificou Bruno, que esticou as pernas, empertigou o corpo, abriu as narinas, desobstruiu os tímpanos, tentando ouvir, tentando entender, não mais em modo presa mas agora em modo predador, o que posso fazer?, como resolver?, tudo depende de mim.
Mas não. Um penúltimo soluço úmido, um último grunhido seco, e o furdunço estava encerrado. Uma respiração (agora, a de Bruno), uma gota que pinga no chuveiro, uma gaivota que grasna perto da varanda, uma buzina de carro ao longe. Restaram somente os sons da vida, os sons vivos, os sons que se explicam, os sons que se entendem.
* * *
O “furdunço”, como Bruno passou a chamá-lo, se repetia todos os dias, sempre do meio-dia e doze ao meio-dia e trinta e quatro, sempre começando na sala e terminando no banheiro.
Nos dias de semana, Bruno nunca estava em casa. Nos fins de semana, fazia questão de não estar. Quando recebia visitas da família, ou quando trazia pessoas para transar, sempre dava um jeito para que todos saíssem antes do meio-dia: vamos?, perdão, estou com pressa, olha esse sol, vamos, vamos, não sei por que marcam reunião a essa hora, precisamos aproveitar a praia, acho que vai chover, vamos, vamos, vamos.
Benzedeiras e babalorixás, padres e pastores, monges e médiuns, Bruno só revelava seu segredo para peritos habilitados. O apartamento foi expertamente benzido e consagrado, profissionalmente defumado e exorcizado, de acordo com as melhores práticas de cada religião. Mesmo assim, todo meio-dia e doze, o furdunço recomeçava.
Nunca cogitou vender o apartamento. O impacto em sua vida era mínimo. Afinal, pensava Bruno, que tipo de gente está em casa ao meio-dia? Passava semanas e semanas sem pensar no furdunço, meses e meses sem ouvi-lo. Era como um velho parente, drogado e desagradável, que só gera incômodo nas datas comemorativas.
Alguns anos depois, a porta do banheiro empenou. O porteiro Bruno disse que estava acontecendo o mesmo em várias unidades: é uma porta muito vagabunda, seu Bruno, empena por qualquer coisa, ainda mais com essa maresia.
Na loja de construção, passeando por entre as portas, portas de metal e portas de madeira, portas de abrir e portas de correr, Bruno de repente decidiu comprar uma porta externa, porta de rua, porta grossa e maciça. A vendedora Bruna não entendeu: para um banheiro de apartamento, temos portas mais finas, mais leves, mais elegantes, mais modernas, mais baratas, mais razoáveis. O porteiro Bruno não entendeu: mas seu Bruno, por que tudo isso?, está guardando algum cofre aqui no banheiro?, rá rá. Bruno não respondeu: no sábado seguinte, tocaiou-se em sua própria sala e esperou.
O furdunço teve início ao meio-dia e doze, na sala, como sempre, mas, dessa vez, só foi acabar no banheiro, como sempre, mas ao meio-dia e quarenta e seis. Doze minutos a mais. Doze minutos. Em vários e vários anos, era a primeira vez que o furdunço sofria qualquer alteração.
Bruno foi subitamente penetrado por uma sensação de potência que não gozava desde sua primeira tarde no apartamento. Havia um espaço de ação. Existiam alternativas. Ele não era um mero joguete do furdunço. Pelo contrário, Bruno detinha o poder de influir sobre o furdunço e de fazê-lo submeter-se à sua vontade soberana. Apenas ainda não entendia como.
Os meses seguintes foram de júbilo arrebatado e de experimentação criativa, de potência viril e de testes sistemáticos: Bruno pintou e repintou as paredes; comprou novos móveis para a sala e, depois, trocou os móveis de lugar; fez consultoria de feng shui e de design holístico. Nada, em nenhum momento, surtiu qualquer efeito. O furdunço continuava radicalmente igual, somente doze minutos mais longo.
Por fim, o júbilo brochou e a potência cedeu. De volta às madrugadas espessas, entre masturbações e uísques, Bruno fantasiava sobre a vida que poderia estar levando se não fosse o furdunço: com certeza namorar, quem sabe casar, talvez ter filhos, e até, por que não?, adotar um cachorrinho.
A falta de um cachorro era o sacrifício mais imediato que o furdunço lhe impunha. Ninguém merecia essa maldição, pensava Bruno. O bichinho passaria o dia todo em casa, sempre nervoso, não entenderia nada, concluía Bruno, como se entendesse.
E sonhava: se um dia o furdunço terminar, se um dia eu puder ter um cachorrinho, seria bom ter uma porta entre a sala e os quartos, não?, para impedir o cachorro de ficar o dia inteiro na minha cama, esfregando a bunda no meu travesseiro… Espera. Não tinha sido uma porta justamente a única coisa a surtir qualquer efeito?
Na manhã seguinte, matou o trabalho, foi à loja de construção no primeiro horário, trouxe a porta mais sólida disponível para retirada imediata e a instalou entre a sala e os quartos, tudo antes do meio-dia.
Pela primeira vez, o furdunço não aconteceu.
À tarde, adotou uma vira-lata chamada Diadorim.
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O projeto gráfico, como sempre, é de autoria da minha melhor amiga de trinta anos, a artista plástica Isabel Löfgren, sobre desenhos originais de Francisco de Goya — hoje, talvez, meu artista plástico favorito. (Minha ida à Madri em 2018 e meu encontro com Goya.)
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Mentiras reunidas, índice
Porque mentir
Primeiras mentiras
Mulher de um homem só
Onde perdemos tudo
A morte do meu cachorro
De portas abertas
Onde perdemos tudo
Quando morrem os pêssegos
A falta que nos fazem os figos
Depois da festa junina, em volta da fogueira (inéditos)
Moça de sorte (exclusivo capa dura)
Não adianta morrer (exclusivo capa dura)
Uma questão de fé
A surdez do meu avô (exclusivo capa dura)
A menina do copo d’água (exclusivo capa dura)
Te espero no açougue
Às vezes, morro
Sangue e morte na noite de Natal (exclusivo capa dura)
Mentiras avulsas (inéditos)
Como nos velhos tempos
Grandezas de candura
Uma cigarrilha apagada
A cachorra atropelada
Títulos sem contos
Últimas mentiras
Biografia do autor
Mecenato
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A cachorra atropelada, conto é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 31 de março de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/cachorra-atropelada-conto // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato