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Ficções, de Jorge Luis Borges

Depois de Borges, o cânone está finalmente aberto, escancarado, exposto, Já não faz mais sentido falar em “cânone ocidental”.

Nossas duas leituras da última do curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura são Borges e Tchecov.

Em um curso sobre o cânone ocidental, são ambos outsiders: Tchecov de uma nação que ninguém considera ocidental e Borges, de outra nas margens do Ocidente. Naturalmente, não é por acaso que estão aqui.

Vida de Borges

Morou com a mãe quase até sua morte. Só casou depois da morte dela, aos 99 anos, com a secretária, depois sua viúva. Teve vários amores e paixões, mas foi sempre abandonado e rejeitado — talvez por seu apego excessivo à mãe. Segundo Bioy Casares, um de seus melhores amigos, era virgem, ou foi virgem até muito tarde, porque considerava sexo “sujo”. (Uma mulher que pediu em casamento só aceitou se eles transassem antes de casar. Incapaz de fazer isso, Borges foi para terapia para tentar se livrar de suas inibições. Ela também acabou abandonando-o.) Na década de 50, quando é nomeado diretor da biblioteca nacional, fica cego, e comenta sobre a “esplendida ironia” de ganhar, num mesmo golpe, todos os livros do mundo e a cegueira.

Autor versus leitor

O pai de Borges era um romancista frustrado. Ele morre em 1938, antes de Borges escrever qualquer um dos relatos de Ficções, quando era conhecido somente como ensaísta e poeta, e pede para que o filho reescreva e publique seu único romance. Poucos meses depois, Borges começa a escrever “Pierre Menard, autor do Quixote”, o conto que inaugura sua segunda fase — do Borges que conhecemos.

É uma história favorita de teóricos como Kristeva, Foucault, Barthes, Derrida. O projeto de Menard subverte a própria ideia de autoria, de que o texto comunica uma ideia de seu autor. Para Barthes, cada pessoa leitora, como se fosse um novo Pierre Menard, repetia para si mesma as palavras do texto em sua cabeça, e, ao fazer isso, criava um novo texto para si. Mesmas palavras, significados vastamente diferentes. Como o Quixote de Menard.

Borges sempre buscou sua salvação pessoal pela escrita, mas, ironicamente, se o projeto de Menard tivesse sucesso, ou fizesse sentido, se fosse possível reescrever o Quixote com as mesmas palavras, se o tempo mudasse o significado das palavras, então seria impossível para um autor realizar um destino único e individual através da escrita. Um texto literário não teria nenhuma conexão especial com seu autor, com a experiência desse autor, com as emoções desse autor e seria, na verdade, não mais original do que um manuscrito copiado e recopiado por um escriba medieval. Nesse sentido, “Pierre Menard, autor do Quixote” é como que um catálogo da “tragédia da escrita”, ou da difícil situação existencial de quem se propõe escritor.

“A morte e a bussola” é outro conto que dramatiza a “tragédia da escrita”. Lönnrot, no lugar da pessoa leitora, é tentado a encontrar significado (ou seja, a solução do mistério) interpretando as pistas deixadas por Scharlach (o autor escondido), mas quando ele está confiante que chegou à verdade, descobre que é apenas mais uma vítima de Scharlach, que é o autor de outros crimes. E, apesar disso, quando o criminoso finalmente mata o detetive, parece que está apenas matando uma imagem, um reflexo, um duplo de si mesmo. Essa é a tragédia da escrita: a prisão da palavra, ao mesmo tempo em que impede o autor de se comunicar com o leitor, também impede o leitor de ter certeza sobre sua interpretação do texto, tornando o significado ultimo das palavras algo sempre traiçoeiro e inalcançável. Autor e leitor estão assim divididos, mas também refletidos, por seus respectivos solipsismos, e o único lugar onde podem se encontrar é na antiutopia de Triste-le-roy (rei triste? quem? o leitor? o autor?) onde ambos finalmente se anulam. A história pode ser considerada uma analogia da “morte do autor”, mas também da “morte do leitor”, ou de ambos, e, na verdade, não importa quem mata quem. Afundam juntos, agarrados.

Ficções, o livro

Os relatos de Ficções foram primeiro publicados na revista literária à qual Borges estava associado, Sur. Até esse momento, ele era um literato, quarentão, autor de poesias, resenhas, ensaios. É nesse contexto que foram recebidos. Ou seja, os leitores de Borges esperavam ensaios, não contos.

São contos, narrativas, ensaios, que tentam encaixar nos vazios entre as definições de todos esses gêneros, ao mesmo tempo em que chama atenção para essas próprias convenções. É um livro de ficções composto por contos que não parecem ser ficções, ou que não se dizem ficções.

Duas curiosidades:

No conto “O jardim de veredas que se bifurcam”: o título em espanhol é “El jardin de senderos que se bifurcan”, um título que soa um pouco estranho, e algo anglicizado em espanhol, como se fosse uma tradução canhestra do inglês: “The garden of forking paths”. Em espanhol, o mais comum teria sido: “El jardin de los senderos que se bifurcan”.

O conto “O fim”, que termina o Martin Fierro, foi o último conto escrito por Borges antes de ficar cego, em 1953. (Os contos posteriores de Borges, depois da cegueira, ditados, são bem menos barrocos que os contos de Ficções e Aleph.)

O tempo em Menard e Funes

Dois dos mais estudados contos de Ficções são “Pierre Menard, autor do Quixote” e “Funes, o memorioso”. À primeira vista, ambos parecem ter como temas principais a memória e o esquecimento. Entretanto, na verdade, são sobre o tempo, sua passagem e sua progressão. Afinal, a memória nada mais é do que pensamento vivido ao longo do tempo. Sem essa progressão sequencial, não poder haver realmente memória. Funes, por exemplo, ao recordar tudo mas em uma dimensão ahistórica e atemporal, não tem realmente memória: só um acúmulo de fatos desconexos.

Em “Pierre Menard, Autor do Quixote”, o método inicial pensado por Menard para sua obra “invisível” era “relativamente simples”:

“Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes.”

Entretanto, ele descarta esse método, por ser demasiado simples. Qualquer um que seja Cervantes poderia facilmente escrever o Quixote: a contribuição e o mérito de Menard estão em escrever o Quixote sendo Menard, um homem do século XX.

“Compor o Quixote em princípios do século XVII era um empreendimento razoável, necessário, quem sabe fatal; em princípios do XX, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos.”

Mais adiante, uma frase de Cervantes descartada como um “mero elogio retórico da história” é saudada como uma “idéia assombrosa” quando vinda de Menard, “contemporâneo de William James.”

Desse modo, o verdadeiro autor do texto de Menard é não o próprio Menard, e nem mesmo Cervantes, mas sim os trezentos anos que os separam. Ou seja, é a passagem do tempo que dá sentido ao ato de reescritura e faz com que, apesar de serem “verbalmente idênticos”, o texto de Menard seja “quase infinitamente mais rico” que o de Cervantes. Menard inventa a nova técnica do “anacronismo deliberado”, mas quem escreve o texto é o próprio tempo. Mais do que um conto sobre autoria, “Pierre Menard, Autor do Quixote” é um conto sobre o tempo.

“Funes, O Memorioso”, ostensivamente sobre a memória e o esquecimento, também revela-se um conto sobre o tempo – já que nem memória nem esquecimento podem ser entendidos exceto em função do tempo. É sintomático que Funes tenha a capacidade de relembrar um dia nos seus mínimos detalhes (“essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc.”), mas para isso ele necessite de um outro dia inteiro. Para Funes, a memória é um traiçoeiro pacto do diabo, um sinistro jogo de soma zero: para cada dádiva que recebe precisa fazer um sacrifício de igual valor.

“Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos individuos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente).”

Por um lado, a prodigiosa memória de Funes fazia com que vivesse em um eterno presente: como o cachorro que ele observa, Funes também vive de minuto em minuto, sempre no presente, fora de qualquer tempo sequencial histórico. Por perceber tudo, Funes não percebe nada: ao registrar minuciosamente todas as diferenças entre o cachorro das três e quatorze e das três e quinze, Funes não concebe conceber que animais tão diferentes entre si (com ângulos, sombras, expressão diferentes) possam ser o mesmo animal. Ironicamente, Funes vê tudo, menos a passagem do tempo – que é justamente o que conecta o cachorro das três e catorze ao das três e quinze, “mesclando-os” em um mesmo animal.

Por outro lado, entretanto, ao ver tudo e registrar tudo, Funes percebe passagem do tempo talvez melhor do que ninguém: todo dia, diante do espelho, cada aspecto de sua progressiva decadência física lhe é surpreendente:

“discernia continuamente os tranqüilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade.”

Na verdade, resta uma dúvida: se não conseguia perceber que o cão das três e catorze e o das três e quinze eram o mesmo animal, conseguiria perceber que o rosto no espelho de ontem e o de hoje, um pouco mais velho, pertenciam à mesma pessoa, ele, Funes? Será que sua prodigiosa memória não teria o efeito de fazer com que nem mesmo se reconhecesse no espelho, que sumisse completamente enquanto indivíduo? Será esse o preço da memória?

Em “Pierre Menard, Autor do Quixote” e “Funes, o Memorioso”, temos dois personagens que lidam com o tempo de maneira radicalmente oposta. Menard coloca o tempo como dimensão primordial de sua obra invisível: a única diferença entre sua obra e a de Cervantes, a diferença que faz da primeira “genial” e da segunda “contingente”, são os trezentos anos que transcorrem entre elas. É a passagem do tempo que dá sentido (algum sentido, ao menos) para o processo de reescritura do Quixote. Sem o intervalo de trezentos anos, Menard seria apenas um plagiador barato. Já Funes simplesmente não vê o tempo: vive somente no presente e sua existência é ahistórica. Tem poderes mentais milagrosos (poderiamos dizer amaldiçoados), mas quanto mais recorda, mais torna-se incapaz de perceber qualquer sequência temporal. Para ele, é como se o tempo não existisse: cada cachorro observado é um novo cachorro. O tempo não passa, ele se reinicia a cada nova observação. O cronômetro está sempre sendo zerado. Para Menard, o tempo é tudo; para Funes, não é nada.

Borges, um escritor menor, um escritor periférico

Em uma conferencia sobre “O escritor argentino e a tradição”, dada em 1951, Borges se perguntava: o que é a tradição argentina? Sua resposta:

“Acredito que nossa tradição seja toda a tradição ocidental, e também acredito que temos direito a essa tradição, um direito maior do que os de qualquer nação ocidental.”

Borges cita Veblen que dizia que a razão do sucesso de tantos intelectuais judeus era o fato que eles atuavam dentro de uma cultura, ao mesmo tempo em que não se sentiam presos por essa cultura. Para Borges, os argentinos (e os latino-americanos, por extensão) estavam na mesma situação em relação à cultura ocidental:

“Podemos tratar de todos os assuntos europeus e ocidentais, pois eles são nossos, mas podemos fazemos com maior liberdade e menos superstição… porque eles não são nossos. Essa irreverência pode ter as conseqüências mais positivas.”

E teve: a maior delas foi a própria obra de Borges.

Duas décadas depois, em 1975, Gilles Deleuze e Felix Guattari lançam um livro chamado Kafka: por uma literatura menor, onde desenvolvem esse insight de Borges, mas aplicado a Kafka, um tcheco que escrevia em alemão. Para a dupla, uma literatura “menor” não seria uma literatura escrita em uma “língua menor” mas sim aquela língua constituída por uma minoria dentro de uma língua maior — como a minoria de tchecos escrevendo em alemão dentro de uma cultura alemã que não era deles, ou como um argentino escrevendo em uma língua européia que não era dele. Para ambos, uma literatura menor teria três características principais: em primeiro lugar, ela é desterritorializada. Mesmo quando é escrita no próprio território, ela é escrita a partir de um lugar de fora. (Borges, naturalmente, escreve em espanhol, mas muito longe da Espanha.) Em segundo lugar, tudo na literatura menor seria necessariamente político. (Quem escreve em “literaturas maiores” pode se dar ao luxo de escolher assuntos neutros, gerais, genéricos; quem pratica a literatura menor não, pois tudo que ela escrever será visto a partir do ponto de vista de seu grupo e refletirá sobre seu grupo. Assim, não existe a possibilidade de uma obra de literatura menor refletir somente um problema único, individual de seu autor.) Esse é o terceiro ponto: na literatura menor, tudo adquire um valor coletivo. Justamente por não haver muitos talentos escrevendo nas literaturas menores, não haveria a possibilidade da enunciação de um “mestre” se destacando da coletividade: não, pelo contrário, toda voz seria representante dessa coletividade, estaria imersa nela, falaria por ela, não teria como ser separada dessa “fala coletiva”. Kafka já dizia que a “literatura era do povo”. Em seu último conto (e talvez o melhor), “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”, publicado em Um artista da fome, ela, uma artista, a artista por definição, renuncia à sua voz individual para se fundir na imensa voz coletiva dos heróis do seu povo. Imagino eu que Borges, quase um cavalheiro inglês, conservador e individualista, teria provavelmente resistido à sua inclusão nessa classificação teórica. Mas, enfim, acho irresistível colocá-lo aqui.

Outras duas décadas depois, em 1993, outra escritora, dessa vez também argentina, Beatriz Sarlo, aplica essas idéias ao próprio Borges. É interessante mapearmos as palavras que ela usa: seu texto é escrito originalmente em inglês e se chama Borges, a writer on the edge (edge=limite). Quando é traduzido ao seu espanhol nativo, ela o reintitula Borges, un escritor en las orillas. “Orillas” é um termo interessante na Argentina. Tecnicamente, se traduziria “subúrbio”, mas tem outro contexto no país: especialmente em Buenos Aires, tão diferente e tão mais cosmopolita do que o resto do país, cercada de pampas incultos, etc, as “orillas” eram as “terras de ninguém”, os “não-lugares” ao redor da cidade, onde a pessoa já não estava mais na selva urbana e culta e cosmopolita de Buenos Aires mas ainda não estava no campo, nos pampas, nas terras dos gaúchos. No Brasil, o título foi traduzido como Borges, um escritor na periferia (que quase me faz visualizá-lo no ABC Paulista, “trampando uns corre” com o Emicida) mas essa foi uma solução literalmente só adotada no título: no interior do livro, o termo “orilla” não é traduzido. Mas, enfim, o que quer dizer “um escritor nas orillas”?

Sarlo entende que estrangeiros não-argentinos queiram ler, estudar, entender Borges como um autor da tradição ocidental, como se ele fosse um escritor sem nacionalidade, descobrindo nele as grandes questões ocidentais. Por outro lado, para ela, Borges era um autor profundamente argentino, inserido nas questões do seu país mas, mais importante, era um autor inserido nessa grande questão universal: como escrever literatura em um país agrícola, de população imigrante, em uma cidade litorânea, em uma nação periférica? Como evitar as armadilhas da cor local — que só produz literatura regionalista e estreitamente particularista — ao mesmo tempo em que não se rejeita à densidade cultural que vem de seu próprio passado, de estar inserido em seu próprio contexto? (Veremos no curso A Grande Conversa Brasileira que responder essa pergunta também é o grande mérito da Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa.)

Para Sarlo, uma das características da literatura de Borges, uma literatura sempre em conflito, sempre dividida, sempre às margens, é justamente o fato de ser uma literatura da tolerância: uma literatura onde perguntas sobre a ordem do mundo não se estabilizam com a aplicação de uma resposta. Pelo contrario, onde as respostas são abertas e abrem mais possibilidades. Borges, defende ela, é um escritor na margem: um marginal no centro, um cosmopolita à margem. Um escritor que constrói sua originalidade através da copia, da citação, da reescritura de textos alheios, que pensa a escritura através, a partir da leitura, e que desconfia profundamente da capacidade de representação literária do real. (Nesse ponto, ele é um pós-auerbachiano e, por isso, encerra nosso curso.)

A superação do realismo

A obra de Borges coloca em cheque, coloca no centro de suas preocupações o próprio ato de narrar.

Em “Funes, o memorioso”, ele coloca o esquecimento como condição necessária da memória e do raciocínio, pois seria o esquecimento das particularidades que tornaria possível a abstração. O realismo, enquanto escola literária, se apoiaria na ilusão de que a representação direta, que a equivalência de objetos e palavras, seria possível, quiçá desejável, e que as palavras se adaptariam bem a essa equivalência. Por isso, “Funes, o memorioso” é, antes de mais nada, uma parábola tragicômica sobre as possibilidades e os obstáculos da representação realista na realidade. É possível narrar o mundo, o tempo, o espaço, a consciência, sem cortes, sem elipses? Funes ignora a elipse e não pode recortar a seqüência do tempo recordado para organizá-lo na linha entrecortada da narrativa. Porque não consegue esquecer ele também não consegue escolher. Ele é uma imagem hiperbólica e dramática dos efeitos devastadores do realismo absoluto, que confia na força natural da percepção e na verdade espontânea dos fatos. Se o tempo fosse infinito (como é para Deus) o tipo de memória de Funes não seria um impedimento. Mas a ficção, como todo relato, como tudo que é humano, parte do princípio que o tempo é limitado. Um mapa da China só é útil se for menor que a China, ou seja, se omitir muitas coisas: um perfeito mapa da China, que inclua tudo, seria rigorosamente do tamanho da própria China, e, portanto, inútil enquanto mapa.

Já em “Pierre Menard, autor do Quixote” Borges destrói primeiro a ideia de identidade fixa de um texto e, de outro, a ideia de autor, e finalmente, a ideia de escrita original. O paradoxo cômico da narrativa é mostrar, por meio de um escândalo lógico, que todos os textos são necessariamente a reescritura de outros textos, num desdobramento infinito, e, ao mesmo tempo, que todo texto só faz sentido quando lido contra o seu contexto histórico:

Constitui uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, nono capítulo):

…a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

Redigida no século XVII, redigida pelo “engenho leigo” Cervantes, essa enumeração é mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve:

…a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

A história, mãe da verdade; a ideia é assombrosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. As cláusulas finais — exemplo e aviso do presente, advertência do futuro — são descaradamente pragmáticas. Também é vívido o contraste entre estilos. O estilo arcaizante de Menard — estrangeiro, afinal de contas — padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que maneja despreocupadamente o espanhol corrente de sua época.

Ou seja, o sentido de um texto é um efeito frágil, não substancial, e está ligado à enunciação e ao contexto: ele emerge na atividade de ler e escrever, mas não está vinculado às palavras e sim ao contexto das palavras. Por isso, um texto não tem como ser idêntico ao seu duplo, pois nenhum espelho é capaz de uma transcrição exata. Por isso, todos os textos são absolutamente originais, o que equivale a dizer, claro, que nenhum é. (Aliás, se, como aprendemos em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, os espelhos são abomináveis porque multiplicam os homens, o que dizer de homens que multiplicam textos?)

Por fim, se nenhum texto pode reclamar para si originalidade, se todo sentido surge da leitura e do contexto, então não existe inferioridade alguma em ser um escritor menor, das “orillas”, das periferias, do terceiro mundo. O escritor periférico, das margens do ocidente, ou de fora do ocidente, teria as mesmas prerrogativas que seus predecessores, colegas ou antecessores europeus e não precisaria de modo algum respeitar a liderança, precedência ou autoridade deles.

O que Borges faz, sozinho, em um único livro, Ficções, Borges, esse senhorzinho portenho, conservador e amante dos clássicos, de Stevenson e de Kipling, tão conservadores quanto ele, mas também um escritor periférico e terceiro-mundista, o que ele faz é efetivamente matar, superar, transcender tanto o conceito do autor como Deus pairando sobre o texto, tanto o realismo literário como representação da realidade, quanto o próprio conceito de “literatura canônica ocidental”. Depois de Borges, não há mais justificativa possível, lógica, filosófica, política, literária, para um cânone fechado somente para uns poucos autores brancos europeus. Depois de Borges, o cânone está finalmente aberto, escancarado, exposto, desmascarado. Depois de Borges, efetivamente, não faz mais sentido falar em “cânone ocidental”, como se fosse algo separado da literatura mundial. Aliás, com Borges, podemos olhar para trás retroativamente e ver que esse conceito nunca fez nenhum sentido. Com Borges, estão abertas infinitas possibilidades literárias que jamais seriam possíveis, por exemplo, em um século XIX que tinha que escolher entre romantismo, realismo, naturalismo.

Por tudo isso, Borges é um fechamento perfeito para um curso sobre A Grande Conversa Ocidental.

Obrigado por me acompanharem até aqui.

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(Referências: Jorge Luis Borges, um escritor na periferia, de Beatriz Sarlo; The Cambridge Companion to Jorge Luis Borges, org. Edwin Williamson; Kafka: Por uma literatura menor, de Félix Guattari e Gilles Deleuze.)

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a décima aula, Burgueses, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso aconteceu entre julho de 2020 e março de 2021 — quem se inscrever depois dessa data tem acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Ficções de Jorge Luis Borges é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 30 de março de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/ficcoes-de-borges // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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