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aula 10: burgueses grande conversa tchecov

Anton Tchecov

Tchecov sempre escreve sobre uma lacuna, algo que não está lá, que não aconteceu. A tragédia é essa: nada acontece, nunca. O que poderia ser mais dramático?

Reler Tchecov, pra mim, é um contínuo processo de re-embasbacamento.

Conheci Tchecov aos 25 anos. Pensei: esse homem é o maior artista literário de todos os tempos.

Mas eu era jovem, tinha lido pouco, não sabia de nada. Décadas se passaram. Meus gostos mudaram. Continuei lendo alucinadamente.

Nenhuma das centenas de pessoas que li desde então nem mesmo ameaçou a liderança isolada de Tchecov como meu artista literário preferido.

Esse texto é para tentar explicar o porquê.

* * *

Tchecov e Borges fecham a Grande Conversa

Nossas duas leituras da última do curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura são Borges e Tchecov.

Dois escritores muito diferentes, mas que fazem a ponte entre o século XIX e nós. Tchecov, mais velho, nascido em 1860 e morto em 1904, viveu totalmente na Era entre 1848 e 1914. Já Borges nasce no meio dela, em 1899 e só morre na década de 1980, quando quase todas nós já estávamos vivas. Tecnicamente, é nosso contemporâneo, mas também é um homem de outras eras.

Mais importante, em um curso sobre o cânone ocidental, são ambos outsiders: Tchecov de uma nação que ninguém considera ocidental (por que está aqui?) e Borges, de outra nas margens do Ocidente.

Ambos não tinham muito em comum. Talvez a semelhança mais importante, que vamos ver em detalhes, é que usavam um estilo traiçoeiramente simples, que desarma a leitora para a importância do que está sendo narrado. Borges escreveu:

Todo narrador deve ser levemente mais tonto do que sua narração; deve narrar as coisas mais sérias e consequentes mas com ar fleumático, de quem quase não entendeu a seriedade do que acabou de dizer. (Do prefácio de Elogio da Sombra.)

Uma semelhança pessoal: tanto Tchecov quanto Borges usavam seus conhecidos em suas histórias. Com uma diferença. Tchecov, em geral tão empático, usava essas menções para atacar desafetos e settle scores. Perdeu várias amizades e fez vários inimigos assim. Tentavam lhe dizer o quão canalha isso, quanta dor causava às pessoas, mas ele se recusava a ceder. Já Borges, tímido, não usava exatamente seus contemporâneos como personagens, mas citava seus nomes como interlocutores intelectuais em suas histórias e, via de regra, as pessoas gostavam.

Por fim, uma terceira coincidência estilística: ambos valorizavam ao máximo as tramas perfeitas e, talvez por isso, sempre tentaram, planejaram, mas nunca conseguiram escrever romances. Cada um ao seu jeito, bem diferentes, foram mestres do conto, da narrativa curta.

Vamos a eles. Primeiro, Tchecov.

* * *

Introdução

Tchecov está sempre escrevendo sobre uma lacuna, sobre algo que não está lá, sobre algo que não aconteceu. O objetivo de sua prosa, segundo ele mesmo, era representar a realidade de forma verdadeira e, também, como essa vida, a vida que levávamos, diferia da norma, do ideal. Seu tema é a inação patológica e a ambição desperdiçada, as vidas paradas e os amores fracassados. Em seus contos e peças, nada efetivamente acontece, e a tragédia é essa: nada acontece, nunca. O que poderia ser mais dramático? O que poderia ser mais humano?

É o escritor que narra a estranheza do comum, o drama de tudo aquilo que não é dramático. São histórias traiçoeiramente simples, narradas sem grandes artifícios, aparentemente simples fatias da vida, mas que, quando paramos e pensamos, quando mergulhamos em seus possíveis significados, percebemos que são gigantescamente cósmicas.

O que estão contando suas histórias? Ou, mais especificamente, quais histórias Tchecov está interessado em contar? Muitas vezes, suas histórias parecem pré-histórias, parecem terminar no ponto onde outras autoras começariam. Para entender qual história ele está contando é sempre importante se perguntar: onde Tchecov escolhe começar a narrativa? Onde escolhe terminar? Aliás, um de seus principais conselhos para iniciantes era sempre cortar o começo e o fim de um conto.

Um crítico escreveu essa paródia de uma história de Tchecov, bem precisa:

“Chove. Folhas caem. Pessoas bebem chá e comem pão com geléia. Jogam paciência. Estão entediadas. Eles bebem e, às vezes, gargalham. Ficam entediadas de novo. Algumas vezes, um homem dá em cima de uma mulher. Bebem de novo, ficam entediadas de novo e, enfim, alguém morre, de doença ou de tiro.”

A paródia só não está correta porque, nela, acontecem coisas demais! No fim da vida, Tchecov aprendeu a prescindir até mesmo dessa morte final. Era dramático demais para ele. O desafio era criar o drama sem isso, sem precisar apelar para o final explosivo. Em sua última peça, O jardim das cerejeiras, ele consegue: nada acontece, nunca. E o que poderia ser mais dramático do que isso?

Vida de Tchecov

Era neto de servos. A servidão só termina em 1861, um ano depois de ele nascer. Seu pai era dono de loja no sul da Russia, em Taganrog, a beira do Mar de Azov. O pai vai a falência e, para não ser preso, precisa ir com a família para Moscou. Tchecov fica na cidade, estudando, dando aulas particulares, e mandando esse dinheiro para a família, já sustentando os pais. Finalmente, vai para Moscou estudar medicina, e se forma. Ainda durante a faculdade, começa a vender histórias humorísticas curtas para ganhar dinheiro, pagar as contas, ajudar a família. Essa veia cômica nunca lhe abandona. (Até o fim da vida, insistiu, contra tudo e contra todos, que sua obra prima, O jardim das cerejeiras, era uma comédia.)

Algo acontece com Tchecov entre “A estepe” (1888) e “Uma historia enfadonha” (1889). Talvez a morte do irmão. Talvez a visita à Sacalina. Na ilha de Sacalina, na Sibéria, Tchecov conhece finalmente o mal, o verdadeiro mal, não existencial, mas social. Talvez seja essa a fonte de sua grande mudança. Suas histórias mudam, tornam-se mais sérias, mais existenciais, apesar de nunca perderem totalmente uma veia cômica.

Depois de ser “tolstoiano”, no final da década de 1880, Tchecov supera essas idéias e adota um ponto de vista narrativo mais… imparcial. Para Tchecov, ele importante não confundir “responder as perguntas” com “formulá-las corretamente”. Só o último era a tarefa do escritor. Ele criticava Tolstoi por se concentrar demais no primeiro. Já Tolstoi criticava Tchecov por nem tentar o primeiro. Para Tchecov, o ataque de Tolstoi à arte era insano, tão louco quanto atacar comida ou medicamentos: todos seriam necessidades humanas. Para Tchecov, era tão ridículo criticar arte por não resolver os problemas da existência quanto criticar o vinho por não tirar manchas.

Tchecov nunca para de praticar medicina. Dizia que a medicina era sua esposa, mas a literatura era sua amante, e precisava de ambas. Talvez a chave para seu método esteja em uma bio que escreveu para uma publicação de ex-alunos de sua universidade de medicina: que o seu treinamento médico nos métodos empíricos e investigativos das ciências naturais tinha sido a maior e mais formativa influência em seu estilo literário.

Pouco antes de seu irmão morrer de tuberculose, em 1889, aos 31 anos, ele, aos 29, manifesta os primeiros sintomas, mas escolhe ignorá-los por dez anos. Finalmente, em 1897, já se torna impossível: ele é diagnosticado com um caso grave de tuberculose e já sabe que nunca chegará à meia idade. Daí em diante, vivendo em tempo emprestado, ele passa a se dedicar ao teatro (escreve suas maiores peças: Tio Vania, Três irmãs, O jardim das cerejeiras) e à revistar suas obras completas, pelas quais recebe uma gigantesca soma. Por isso, temos tão poucas histórias dos últimos anos de Tchecov, mas também temos obras completas muito bem editadas e fechadinhas, Tchecov revisou completamente todas as historias, basicamente cortando cortando cortando. (Um estudo dos cortes mostra que ele quase sempre cortava para evitar o didatismo, para abrir as interpretações e leituras possíveis de cada conto.)

Sua história “Enfermaria número 6” (1892) era considerada um símbolo da Russia: toda a Russia seria uma enfermaria e o povo todo, doente. (O jovem Lenin morria de medo dessa história, tinha pesadelos de que era ele que estava preso na enfermaria.) O Alienista, de Machado de Assis, publicado pouco antes, em 1881, tem um tom semelhante.

No grande debate da Rússia de finais do XIX, e que se reflete na literatura, como não poderia deixar de ser, entre os eslavófilos, que achavam que o futuro da Rússia estava em se voltar para dentro, em sua herança cultural eslava própria, onde estavam Dostoeivski e Tolstoi, e os europeizantes, que julgavam que o futuro da Rússia estava em abraçar a Europa, o ocidente, a cultura ocidental, e tudo que isso trazia a reboque, Tchecov, ao lado de Turgeniev, estava entre os últimos. Um dos lados interessantes, engraçados, e prosaicos de Tchecov (talvez por ter crescido pobre, por ser literalmente um self-made man) é seu fascínio e seu carinho por todos os marcadores de classe da alta burguesia européia: formalidade e polidez, bons modos à mesa, tolerância, empiricismo, método cientifico, moderação, constitucionalismo, etc. Em sua ultima carta, do sanatório alemão onde em breve morreria de tuberculose, ele escreve: “Não tem uma única alemã bem vestida nesse lugar. A sua falta de bom gosto é deprimente.” Pouco mais tarde, ele pediu uma taça de champanhe, comentou: “Fazia tanto tempo que eu não bebia champanhe” e morreu. Seu corpo volta para a Russia em um caminhão frigorífico para o transporte de ostras.

De que lado ele estava

Às vezes, para saber de que lado Tchecov está, só mesmo conhecendo sua biografia. Em “A casa com mezanino”, a história é narrada pelo ponto de vista de um artista faz um ataque muito bem argumentado contra uma moça rica que se dedica a construir escolas e hospitais para os mais pobres, dizendo que essas iniciativas filantrópicas não fazem sentido, não ajudam nada, são como enxugar gelo, se não forem consertadas as causas da desigualdade, etc. A história em si, como sempre, não se coloca explicitamente de nenhum lado da questão. Mas sabemos que fundar escolas e hospitais era exatamente o que o médico e artista Anton Tchecov fazia em suas propriedades. Em “Minha esposa”, uma história sobre uma fome, Tchecov retrata os ricos fazendo um jantar beneficente para ajudar as vitimas, e ele descreve minuciosamente as gigantescas quantidades de comida envolvida. Ele nunca critica abertamente esses ricos, mas a mera descrição da refeição já é, em si, uma crítica. Ele dizia:

“Não sou liberal, nem conservador, nem monge, nem indiferente. Quero ser um artista livre e nada mais. Fariseísmo, imbecilidade e tirania reinam não só nas casas dos burgueses e nas delegacias policiais, mas também na ciência e na literatura. Por isso, não tenho predileção por ninguém. Todos os rótulos me parecem preconceitos. Para mim, só são sagrados o corpo humano, a saúde, a inteligência, o talento, a inspiração, o amor, e liberdade, liberdade da violência e liberdade das mentiras.”

Uma corda esticada se rompe

Tolstoi começa a escrever Guerra e Paz com objetivos muito mais modestos do que o romance gigantesco que terminou escrevendo: ele queria apenas escrever sobre a Revolta Dezembrista, uma tentativa de golpe acontecida na Rússia em 1825, contra o Czar, claramente inspirada pelos ideais da Revolução Francesa, por oficiais veteranos das guerras contra Napoleão. (Tropas russas tinham ocupado a França até 1821.) Para poder escrever sobre isso, Tolstoi começou a pesquisar sobre a invasão de Napoleão à Rússia, em 1812, ficou tão cativado pelo assunto que o romance acabou saindo sobre isso. No final, Guerra e Paz, apesar de descomunal e enciclopédico, nunca chega à Revolta Dezembrista em si, mas termina com um aceno a ela. No epílogo (primeira parte, capítulo 14), Pierre diz:

“Agora é preciso outra coisa. Enquanto ficam parados e esperam que a corda esticada arrebente; enquanto todos esperam pela revolta inevitável, é preciso que o povo esteja de mãos dadas, mais unido e em numero maior, a fim de reagir à catástrofe geral.”

Na cópia de Tchecov, esse trecho estava sublinhado em vermelho. Nem precisava ter feito isso para sabermos que lhe era importante. Tchecov retoma essa imagem em vários contos e, especialmente, em sua última peça, O jardim das cerejeiras. De repente, ao longe, no final do segundo ato, os personagens escutam um barulho assim descrito da seguinte maneira nas orientações cênicas:

“De repente, se escuta um som distante, vindo aparentemente do próprio céu, como se uma corda esticada se arrebentando, um som que vai sumindo de maneira lenta e triste”.

(As notas de produção do primeiro diretor da peça, o mítico Stanislavsky, tem instruções precisas de como criar esse som, como fazer o eco, como modular sua finalização, como dar um toque ao mesmo tempo metálico e elástico, etc)

Ninguém sabe de que se trata o som. Os personagens discutem. Os mais lógicos e racionais dizem que era provavelmente o cabo de uma mina subterrânea, muito distante. A velha senhora aristocrática comenta que foi um som muito desagradável. E um ex-servo idoso comenta que era provavelmente um pássaro de mau agouro cantando antes de alguma desgraça, e que ele se lembrava de já ter ouvido antes. Perguntam quando, e ele responde:

“Quando nos deram a liberdade.”

(A história foi escrita, e teoricamente se passa, em 1904. Os servos tinham ganho a liberdade em 1861, um ano depois do nascimento de Tchecov. Para muitos, inclusive servos, tinha sido a destruição de todo um estilo de vida que valorizavam.)

Em Tolstoi, a corda esticada claramente aponta para a Revolta Dezembrista (1825), que está no futuro a partir do final do romance (1812), mas no passado do próprio Tolstoi (1860). Mas o que Tchecov, escrevendo em seus últimos meses de vida, quer dizer com essa “corda rompendo”, um rompimento que, seja ele qual for, Tchecov não vai testemunhar? Não é à toa que muitos consideram que ele, de certa maneira, “previu” a Revolução Russa.

Tchecov e o futuro

As peças de Tchecov são cheias de personagens que olham para o futuro, pensam como será, imaginam que será glorioso. No período soviético, esses trechos eram interpretados como se Tchecov fosse um visionário que já estivesse prevendo, antecipando a gloriosa Revolução Russa etc. Mas esses personagens quase sempre são hesitantes e paralisados e, para eles, sonhar com o futuro era um consolo para sua vida de imobilidade e frustração.

Tchecov não era, por temperamento, um revolucionário. De qualquer modo, a questão é atraente: quando eclode a Revolução, Tchecov, aos 58 anos, estaria no auge de seus poderes, fama, influência. O que teria feito? Em cartas, ele afirmava:

“Tenho fé nos indivíduos, busco a salvação nas pessoas individuais, sejam elas intelectuais ou camponeses. Não divido pessoas em grupos ou classes. Nenhuma divisão é boa: somos todos uma só nação, e as melhores coisas que fazemos devem ser para a nação.”

Apesar de sua aguda consciência dos problemas sociais e de seu ativismo pessoal para resolve-los, é difícil de imaginar um individualista como Tchecov apoiando a Revolução. (Em uma carta de Nice, ele diz que o melhor da cidade era não encontrar com “marxistas cheios de si”.)

No começo da Revolução, na década de 1920, quando esse tipo de discussão estava na moda, ele era consistentemente incluído nas listas de grandes autores russos que provavelmente teriam se oposto à Revolução. Deveriam estar mais certos em imaginar um Tchecov contrarrevolucionário do que os ideólogos soviéticos posteriores, que correram para garimpar sua obra atrás de todo e qualquer comentário político que indicasse um possível apoio do grande escritor à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Duas leituras de Tchecov

Tchecov é um autor tão sutil que uma das maiores polêmicas sobre ele é como deve ser lido. Existem dois campos.

Uma leitura, pegando o gancho da famosa “arma de Tchecov” (“se uma arma estiver pendurada na parede no primeiro ato, ela precisa ter disparado até o final do terceiro”), defende que suas histórias são tão curtas e precisas que, literalmente, cada palavra conta. Nada que está ali seria por acaso, não seria para revelar algo sobre os personagens, a ação, o enredo.

Outra leitura, interpretando a “arma de Tchecov” em uma chave irônica, defende que o segredo de suas histórias era fazer o exato oposto: elas eram “fatias de vida”, sem começo e sem final, cuja forte verossimilhança vinha exatamente de certos detalhes aleatórios que não faziam nada pela história… a não ser nos dar essa impressão de aleatoriedade da vida real. Nesse sentido, a maior desleitura possível de Tchecov seria superinterpretar cada um desses detalhes aleatórios como se fosse um símbolo, um mensagem consciente do autor. (Ou seja, o maior erro que uma leitora de Tchecov pode fazer é ser como o detetive Lönnrot, no conto “A morte e a bússola”, em Ficções, de Borges.)

Tchecov, força e darwinismo

Do nosso ponto de vista, talvez a herança mais polêmica de Tchecov seja seu darwinismo, ou melhor, o darwinismo social como o entendia o final do século XIX, que mais tarde desembocaria no lombrosianismo e eugenia de começos do XX.

Tchecov aceitava como fato que a raça humana não tinha nada de especial dentro da natureza e, mais ainda, que era obvio que a natureza estava fazendo todo o possível para se livrar de todos os indivíduos fracos. Ele dizia que observar a natureza lhe trazia “equanimidade” e que os ideais românticos ou religiosos nos cegavam à beleza e à força da natureza. Resta saber como Tchecov achava que isso se aplica a seres humanos.

Por um lado, sua ficção une uma visão macro de todos os seres como igualmente merecedores de atenção e compaixão e, em sua própria vida, se dedicou a construir escolas e hospitais para camponeses que, talvez, tivessem morrido sem essa ajuda. Mas, por outro, suas histórias contém muitas vezes um elogio implícito da força e do vigor, mesmo quando esmagam pessoas mais fracas. Para Tchecov, quase budista, o agressor mereceria tanta compaixão quanto os agredidos.

O estilo de Tchecov

A principal crítica que recebia era a falta de um assunto, de um posicionamento, de um ponto de vista único, de um tema unificador:

“Tchecov trata tudo do mesmo jeito. um homem e sua sombra, uma borboleta e um suicídio. Aqui bois passam e o correio é entregue. Ali um homem se mata e outros tomam champanhe”…. “Tchecov só fez uma coisa em toda a sua carreira: Ele ficou tristemente, teimosamente, monotonamente matando toda e qualquer esperança humana”.

Do nosso ponto de vista, Tchecov não parece especialmente pessimista, mas alguém que já tinha visto o colapso do edifício moral que sustentou o XIX e estava buscando por novos valores, novas potencialidades. Talvez por isso suas obras, mais do que de qualquer escritor, sempre apontem ao futuro.

Não era místico (e sim cientista e agnóstico), mas tinha momentos de transcendência, de união com cosmos. Seu misticismo é, naqueles momentos em que tudo mais falhou, para ele e para seus personagens, uma intuição irracional de que existe um significado belo e transcendente no cosmos.

Tudo é um

Uma comparação comum era usar a A Morte de Ivan Ilich (1886), de Tolstoi, para criticar ou ilustrar as deficiências de “Uma historia enfadonha” (1889). Diziam:

“Tolstoi registra detalhes minuciosos da vida e do cotidiano de seu protagonista, e Tchecov tenta fazer o mesmo sem tanto sucesso. Em Tolstoi, os detalhes dão sentido à história como um todo. Em Tchecov, eles parecem aleatórios, jogados, sem sentido, desnecessários.”

Não parecem ter visto que são histórias radicalmente diferentes: a de Tolstoi é fundamentalmente uma historia moralizante e milagrosa; a de Tchecov é ao mesmo tempo irônica e também uma celebração da vida.

Mas esses detalhes ditos desnecessários apenas são desnecessários do ponto de vista de quem mantém outros princípios literários e artísticos que não os de Tchecov. Os detalhes “desnecessários” talvez não comuniquem, de fato, nada sobre os personagens em si, mas comunicam à pessoa leitora que ela está lendo em texto que está tentando fazer algo novo em termos de prosa de ficção. Que existe uma quebra entre a tradição literária anterior e o que quer que se esteja tentando fazer aqui. Esses detalhes são necessários para simbolizar e indicar um novo método de contar histórias e, para isso, para esse método, eles são necessários, importantes, obrigatórios.

Detalhes aparentemente irrelevantes são citados não porque essas pequenas coisas parecem relevantes ao seu enredo, ou porque são mais relevantes do que parecem, ou que porque parecem relevante aos autor de uma maneira que nos escapa e que teríamos que decifrar, mas porque é assim que Tchecov percebe o mundo. Sua alma, seu olhar, sua percepção estão abertos a tudo, a todos os pequenos detalhes da vida cotidiana, a tudo que exista em uma pessoa ou a rodeie. Ao fazer isso, ao escolher narrar dessa maneira, Tchecov está sinalizando mais do que sua quebra com a tradição anterior, de que cada detalhe conta, ou precisa contar: ele está demonstrando sua própria maneira de enxergar a existência.

A prosa anterior media a importância de uma ação pela escala de seu resultado, de suas conseqüências. Ou seja, se uma ação teve conseqüências importantes, então ela foi importante. Muitas vezes, em Tchecov, a história que o conto está efetivamente contando é muito simples: Fulano percebe X, e acabou. A falta de conseqüências importantes faz parecer que nada importante aconteceu, e, consequentemente, que a história não tem enredo. Mas o nosso desafio é justamente tentar entender o que aconteceu nessa história. Ou seja, do ponto de vista de Tchecov, qual é o enredo? E por que esse enredo, essa coisa que aconteceu, é importante ao ponto de merecer uma história? Uma parte importante do estilo de Tchecov, e também de Borges, é que justamente as afirmações mais importantes, bombásticas, decisivas, são ditas, articuladas, apresentadas da maneira mais banal, sutil possível. O texto nunca chama atenção para elas. Esse trabalho é nosso.

Não é que todos os detalhes tenham algum significado oculto e esotérico que precise ser decodificado. Mas também não é que não tenham significado algum. O que esses detalhes significam, simbolizam, demonstram é a visão de mundo do autor, é a maneira como ele enxerga, percebe a totalidade da existência. Quando nos impressionamos com a quantidade de “detalhes desnecessários” é porque, nós, pessoas leitoras, estamos na confluência, na pororoca!, de duas visões de mundo diferentes, que não se misturam, pois não podem se misturar: de um lado, o ponto de vista da protagonista tchecoviana, quase sempre egocêntrica, autocentrada, limitada, paralisada, hesitante — por sua própria natureza, ela não consegue enxergar o mundo à sua volta, porque não consegue, não sabe viver no presente. Em oposição a essa visão por definição limitada, temos o ponto de vista do autor, que é sempre incomparavelmente mais amplo, mais rico, mais complexo. O que os “detalhes desnecessários” revelam, entre outras coisas, e daí sua importância inclusive para o enredo propriamente dito, é o horizonte limitado das protagonistas tchecovianas.

Não é que as histórias não tenham um “fim” mas que o “fim”, além de geralmente ser mais sutil do que esperamos, é um “fim” em ponto de fuga, que aponta para algo que está fora do texto, que aponta para o infinito. Um fim que indica o final daquilo que Tchecov quis contar mas que também simboliza que a história continua mais pra lá, com mais coisa acontecendo, sempre mais coisa acontecendo. São finais afirmativos, cheio de vida e possibilidade (O final de “A dama do cachorrinho” é um exemplo perfeito, mas óbvio: quase todos os finais são assim, alguns não facilmente perceptíveis.)

O que Tchecov parece estar afirmando, em seus momentos mais cósmicos, mais amplos, mais existenciais, é que, de fato, não existe começo e não existe fim. Só existe uma história a se contar e ela começa na criação da humanidade e terminará quando morrer o último ser humano. Qualquer começo e qualquer fim que não seja esse é sempre um começo e um fim completamente arbitrário — e os começos e finais aparentemente arbitrários de Tchecov parecem fazer justamente isso: ressaltar, na comparação, que, na verdade, todos os finais que nos pareciam tão “finais” em outras obras de ficção são tão arbitrários quanto os dele. Todas as histórias são uma só, partes da mesma tapeçaria ancestral e cósmica, que cada autora recorta do seu jeito único.

Tchecov não se permite escolher entre o pequeno e o grande, o relevante e o irrelevante, o conseqüente e o inconseqüente. Ele enxerga tudo como igualmente grande, relevante, conseqüente. Tudo se mistura em uma inteireza cósmica única, onde nada pode ser separado, diferenciado, hierarquizado. Talvez seja o budista em mim, mas me parece que a grande contribuição de Tchecov à literatura é afirmar, através de suas peças e histórias, que tudo é um.

(Referências: Understanding Chekhov, A critical study of Chekhov’s Prose and Drama, de Donald Rayfield; The Cambridge Companion to Chekhov, org. Vera Gottlieb; Anton Chekhov’s Selected Stories, Norton Critical Edition, org. Cathy Popkin.)

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a décima aula, Burgueses, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso aconteceu entre julho de 2020 e março de 2021 — quem se inscrever depois dessa data tem acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Anton Tchecov é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 29 de março de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/tchecov // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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