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Contradições e repetições no Gênese

O Gênese é inconsistente? Ou somos nós? (Um guia de leitura para a primeira aula do curso “Introdução à Grande Conversa”.)

A Hipótese Documental (que apresento aqui) explica o fato de algumas histórias do Gênese, e de todo o Pentateuco, serem contadas duas vezes: Noé, em sua Arca, leva dois (6,9) ou sete (7,2) de cada animal? O poço de Bersebá é batizado por Abraão (21, 31) ou por Isaac (26, 33)? José é vendido aos ismaelitas ou medianitas? etc (Gabel, 88-89) Naturalmente, mesmo antes da Hipótese Documental ser elaborada, essas duplicações não escaparam à atenção dos leitores do Gênese ao longo dos séculos.

Os dois relatos da Criação, por exemplo, não podem ambos verdade, pois se contradizem. Como explicar essa contradição?

Uma teoria popularizada pelos judeus helenizados, por exemplo, era bem platônica: a primeira criação, na qual Deus cria o homem à sua imagem e semelhança, teria sido uma criação ideal, acontecida somente na mente de Deus, enquanto o relato seguinte, com seus antropomorfismos, seria a criação como teria acontecido no mundo visível.

Outra teoria é que ambas as criações se referiam a povos diferentes: a primeira, dos povos não-judeus e a segunda, dos judeus. A partir do Renascimento, essa teoria serviria para explicar a origem dos “novos povos” que iam sendo “descobertos” nas Américas. Mais importante, como Deus teoricamente faria melhor na segunda tentativa, esses povos pré-adamitas seriam inferiores e poderiam ser escravizados. Até cair em desuso, somente no século XIX, essa teoria embasaria escravidão, racismo, antissemitismo. Tudo porque, um dia, três mil anos atrás, um redator juntou em um mesmo documento duas versões da mesma história da criação. (Fox 19-20)

Surge outra dúvida: dado que houve, em algum momento, um ou mais redatores que deram redação final a esses textos, por que não corrigiram essas contradições? (Gabel 24)

Uma hipótese é que consideravam sinceramente que o texto fosse sagrado e, por isso, não ousaram modificá-lo ao fazer a redação final. (Naturalmente, também sabemos que a própria sacralidade percebida do texto às vezes tem o efeito contrário, fazendo com que redatores bem-intencionados corrijam o que consideram ser suas falhas para aproximá-lo do “ideal”.)

Outra hipótese é que, tal como os opositores contemporâneos da Hipótese Documental, esses redatores simplesmente não enxergavam essas contradições e, confiando na unicidade do texto, elaboravam explicações que lhes pareciam razoáveis para justificá-las. (Como nos exemplos acima das duas criações seqüenciais.)

Uma terceira hipótese é que enxergavam as contradições mas, talvez como nós leitoras contemporâneas, não se importavam com elas: sua prioridade era preservar os textos que consideravam importantes e confiavam que suas leitoras compreenderiam que havia pequenas diferenças nem sempre conciliáveis, e tudo bem.

Por fim, a quarta hipótese é o exato oposto: que esses redatores eram tão diferentes de nós que tinham critérios e prioridades editorais que não podemos compreender, antecipar, conceber. Aquilo que nos parece tão fundamental (coerência lógica e consistência interna, por exemplo) para eles poderia ser completamente irrelevante.

Talvez essa seja a lição mais importante: não projetarmos nossos valores, nem que apenas nossas prioridades editoriais, em textos escritos há mais de três mil anos. (Gabel 24, 91)

(Referências: A Bíblia como literatura, de John B. Gabel e Charles B. Wheeler e Bíblia, verdade e ficção, de Robin Lane Fox.)

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Contradições e repetições no Gênese é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 24 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/contradicoes-e-repeticoes-no-genese // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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