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Como ler Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon

O que é, como ler, qual edição usar, como melhor aproveitar. (Guia de leitura para a terceira aula do curso Introdução à Grande Conversa)

O que é, como ler, qual edição usar, como melhor aproveitar Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon.

O que é

São raros os livros de História das décadas passadas, ou mesmo dos séculos passados, que ainda se lêem como livros de História: Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon é um dos poucos e, sem dúvida, o melhor.

Nunca mais ninguém teve a temeridade de empreender uma análise histórica com tamanha envergadura tanto no tempo quanto no espaço: do reinado de Marco Aurélio, no ano 100, até a queda de Constantinopla, em 1453, cobrindo toda a gigantesca área do Império Romano.

A força literária de Declínio e queda está na união entre a história mais interessante de todos os tempos (como pôde a instituição humana mais sólida que jamais existiu se esfacelar tão completamente?) e um dos melhores e mais talentosos narradores também de todos os tempos.

Poucas leituras são mais instrutivas, mais deleitosas, mais polêmicas: sua tese central, de que foi o Cristianismo que apodreceu o Império Romano por dentro, ainda gera controvérsias exaltadas até hoje.

Como escreveu Jorge Luis Borges, antes líamos Declínio e queda para nos informar sobre Roma. Hoje, além disso, lemos para conhecer as opiniões de um fascinante cavalheiro inglês do século XVIII, mestre contador de histórias, sobre Roma.

Por que ler

Porque é um livro delicioso, muito fácil de ler, em ritmo de crônica.

Porque Gibbon é um dos melhores, mais charmosos, mais sedutores contadores de histórias de todos os tempos. Ele conseguiria fazer um rol de roupas sujas parecer interessante. Como essa é uma das histórias mais fascinantes de todos os tempos, ele dá um banho.

Porque depois da Bíblia nem a Ilíada é o meu livro preferido.

Como ler

Já rodei o mundo, já fiz longas viagens de carro. Uma das coisas que gosto de fazer é chegar em uma cidade completamente desconhecida e deixá-la entrar em mim enquanto eu entro nela.

Às vezes, me perguntam:

“Mas você não tem medo de se perder?”

E respondo que não tem como eu me perder.

Só pode se perder quem tem um rumo, quem tem um destino, quem está tentando chegar em algum lugar.

E eu faço questão de não ter nada disso.

Pelo contrário, como não tenho como me perder, só posso me encontrar, e encontrar também aquela cidade, seus museus incríveis e seus cantos charmosos, suas ruas lindas e suas paisagens inéditas, tudo aquilo que eu nem imaginava que existia.

Por que estou falando isso?

Quando estiverem lendo Declínio e Queda do Império Romano, por favor, não se percam.

Porque se perder quer dizer que estavam buscando alguma coisa.

Não busquem.

É um livro monumental, de milhares e milhares de páginas. Tem de tudo ali. Mergulhem. Se deixem levar. Enfiem o braço lá dentro até o ombro e vejam o que conseguem pescar.

Gibbon não é nem a Bíblia nem a Ilíada. Não é um texto obscuro de uma tradição antiga. Não é elíptico, não é simbólico, não é difícil de entender.

Pelo contrário, é quase um contemporâneo nosso, fala com a mesma sensibilidade, manifesta (em larga medida) as mesmas prioridades (talvez só um pouquinho antiquado). Como qualquer livro contemporâneo de não-ficção, Gibbon escreve sobre Roma para leitores não-romanos que não sabem nada de Roma. (O leitor ideal dele somos nós.)

Então, podemos ler de forma mais relaxada, mais tranquila.

Sim, Gibbon vai mencionar milhares de nomes e topônimos não conhecemos mas isso só tem como nos fazer sentir “perdidas” se realmente quisermos saber o que é cada uma daquelas coisas.

Mas, sério, precisamos?

Gibbon está contando uma história literalmente monumental, a mais monumental de todas, o declínio e a queda do maior império que já existiu.

O que estamos buscando é a linha-mestra da sua grande-narrativa. A floresta, não as folhas.

Então, confiem no professor que sou e confiem no contador de histórias que Gibbon era: peguem na mão dele, não se preocupem com os detalhes e se deixem levar pela narrativa.

Panorama geral

Antes de começarmos, precisamos entender sobre o que é a obra.

Gibbon começa no ano de 180 eC e pretende narrar a queda do Império Romano. Os primeiros três volumes, metade da obra, terminam na queda de Roma em si, no ano 476, e tem alguns rápidas reflexões. (Portanto, três volumes cobrindo três séculos.)

A intenção original de Gibbon era parar aí. Mas, empolgado, abençoado seja, ele decidiu seguir adiante. Afinal, o “império romano” não acaba com a queda de Roma, pois o Império Romano do Oriente, como capital em Constantinopla, ainda existia.

Nos três volumes seguintes, Gibbon cobre os mil anos entre a queda de Roma (476) e a de Constantinopla (1453), que é geralmente considerada o fim da Idade Média e o começo da Idade Moderna. Ou seja, Gibbon nos leva através do mundo medieval e até o renascimento.

Em português

Para quem pretende ler em português, a questão já está resolvida: só tem uma edição, selecionada por Dero Saunders e publicada pela Companhia das Letras.

Essa edição saiu em inglês como The portable Gibbon: The Decline and Fall of the Roman Empire.

Essa edição privilegia a primeira metade da obra, até a queda de Roma, e mostra somente meras 50 páginas de destaques da segunda metade.

O que Saunders escolhe não mostrar: a ascensão do Islã, a queda do Império Romano do Oriente, as Cruzadas, a ascensão dos Estados Papais, etc.

Todo resumo de obra literária é uma decisão difícil, de cobrir o pé para descobrir a cabeça. Nesse caso, Saunders privilegiou a parte que considerou que seria de mais interesse do seu leitor ideal, anglófono ocidental.

Ele também omite a maior parte das notas de rodapé de Gibbon, mantendo somente as que julgou mais interessantes.

Em inglês, versões resumidas

Para quem acha que se garante no inglês, recomendo tentar ler o comecinho do livro e ver o que acha. O inglês de Gibbon não é tão difícil assim e é belíssimo, irônico, refinado.

Para quem decidir ler em inglês, existem duas opções principais de edições resumidas, todas disponíveis para kindle:

The Decline and Fall of the Roman Empire (Edited and Abridged), da Modern Library, organizada por Hans-Friedrich Mueller, acima.

The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, da Penguin, organizada por David Womersley, abaixo.

Ao contrário de Saunders, Mueller e Wormsley preferem fazer um panorama geral da obra inteira (e não apenas até a queda de Roma), mas de maneiras bem diferentes.

Em Mueller, cada um dos 71 capítulos está representado, com as histórias e episódios que julgou mais relevantes. Também fez questão de manter todas as polêmicas religiosas (que tanto furor causaram na época) e omitir as descrições geográficas, longas genealogias, etnografias de povos, narrativas de campanhas militares. Mas nenhum capítulo está inteiro e não incluiu nenhuma nota de rodapé.

Já Wormsley também preferiu incluir capítulos de todas as partes da obra, do começo até o fim, mas somente 17 (dos 71) e sempre completos e com todas as notas de rodapé — que são muitas vezes a parte mais interessante, mais irônica. Sua teoria é que a verdadeira arte literária de Gibbon só pode ser apreciada lendo os capítulos como um todo.

Em inglês, versão integral

Nunca li de fato nenhum dessas edições resumidas: tirei as informações acima dos prefácios onde os organizadores expõem a intenção do seu trabalho.

Li Declínio e queda pela primeira vez em 2004, na versão integral, em dois volumes, da coleção Great Books of the Western World (mais sobre ela abaixo) e, agora, estou lendo na versão integral, em seis volumes, da Everyman’s Library.

Essa última, pra mim, tem o atrativo de incluir todas as notas de rodapé de Gibbon e, mais ainda, notas de um historiador contemporâneo corrigindo onde ele considera que Gibbon se enganou.

Uma opção, para quem quiser, é pegar uma versão integral em inglês (existem várias gratuitas em ebook) e simplesmente ir lendo até o dia da nossa aula.

Em inglês, em áudio

Também estou ouvindo o audiolivro da versão integral, narrado por David Timson, em seis volumes, da produtora Naxos, minha favorita.

A Naxos também tem essa outra versão, resumida, em dois volumes, narrada por Philip Madoc e Neville Jason.

Esse resumo, feito por Gary Mead, segue a mesma lógica de Saunders, e se limita, em larga medida, à primeira metade da obra, até a queda de Roma.

Conclusões

Naturalmente, não existe nenhuma única resposta.

A obra completa não dá pra ler até o dia da nossa aula.

Todas as versões resumidas têm prós e contras.

Passei todas as informações que tenho.

Fica por conta de vocês. :)

Quando estivermos chegando mais perto da aula, como sempre, passo uma cola rápida dos principais trechos que pretendo abordar.

Great Books of the Western World

Quando eu era criança, não havia muitos livros na minha casa, tirando os livros infantis que compravam pra mim, e os Sidney Sheldon e Agatha Christie e afins dos meus pais. Mas eles, como bons burgueses enriquecidos, acharam apropriado enfeitar a sala com uma edição da Enciclopédia Britânica (que nenhum dos dois tinha inglês pra ler) e que trazia, como brinde ou adendo, essa coleção Great Books of the Western World.

Às vezes, a menor decisão dos pais molda toda a vida dos filhos. Das decisões dos meus pais, essa foi uma das que mais moldou a minha vida. Crescer com essa coleção na sala literalmente fez com que eu fosse a pessoa que, hoje, está aqui dando esse curso para vocês.

Alguns dos autores que eu li pela primeira vez nessa coleção: Homero, Ésquilo, Sófocles, Euripides, Aristófanes, Herotodo, Tucidides, Platão, Aristóteles, Lucrécio, Epicteto, Marco Aurélio, Agostinho, Tomás de Aquino, Dante, Chaucer, Maquiavel, Hobbes, Rabelais, Erasmo, Shakespeare, Cervantes, Descartes, Hume, Rosseau, Gibbon, Mill, Hegel, Melville, Darwin, Marx, Tolstoy, Dostoeivski, James, Freud.

Um textinho antigo que escrevi sobre essa coleção e uma lista completa, comentada, dos livros.

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a terceira aula, Romanos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Como ler Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 25 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/como-ler-declinio-e-queda-do-imperio-romano-de-edward-gibbon // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

2 respostas em “Como ler Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon”

Eu amo esse livro. Fico perplexo quando vejo pessoas esnobarem este belíssimo livro devido a “outras interpretações modernas da queda de Roma”. Para mim é como ler Shakespeare em prosa. Uma pena no Brasil não ter edições decentes à altura da obra e muito menos uma tradução integral. Amo tbem quando acho textos comentando sobre a obra, como o seu, que está digno dela, indicando inclusive audiobooks. Parabéns.

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