Pergunta de uma participante do meu curso Introdução à Grande Conversa:
“O que significa ler Declínio e queda do Império Romano como literatura e não como história?”
A pergunta tem duas respostas que estranhamente tanto se anulam quanto se complementam:
Em primeiro lugar: história é literatura, oras!
Em segundo, história são os fatos expostos e a tese defendida, e literatura, o estilo criado e a narrativa desenvolvida.
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Naturalmente, história é literatura e é estilo, é contação de histórias e é criação de narrativas.
Existem historiadoras que são mais secas e factuais, trabalham com números e tabelas, e elas têm o seu enorme valor. Mas todas as grandes historiadoras, as clássicas canônicas, são as que também faziam grande literatura.
Ou seja, que não só traziam apenas os fatos duros, os números e as tabelas, mas sabiam contar uma história como ninguém, que sabiam criar uma narrativa bela e envolvente.
A metodologia da história está no levantamento das fontes e na checagem dos dados. Mas a escolha de quais histórias narrar, e como contá-las, é pura literatura.
Quase sempre, o texto envelhece rapidamente enquanto História, pois novas fontes são encontradas e novas metodologias desenvolvidas, mas continua vivo como Literatura.
Aconteceu com todos os historiadores antigos, de Heródoto a Plutarco, de Tucídides a Tácito. Na verdade, até com os mais recentes.
Quando fiz universidade, O outono da Idade Média, de Johann Huizinga, escrito em 1919, ainda era considerado um clássico da área de História Medieval, um livro, digamos, “ensinável”. Hoje, trinta anos depois, ao levantar a bibliografia para a nossa 5ª aula, Idade Média, minhas amigas medievalistas desrecomendaram fortemente o livro, por estar ultrapassado e conter conceitos e ideias retrógrados. Ou seja, não serve mais para a disciplina História.
Declínio e queda do Império Romano, igualmente, não serve mais como “História”. Se for ensinado em um curso de História, será mais provável de ser em um curso de Idade Moderna ou Iluminismo do que de História Antiga.
Por exemplo, a Idade Média é uma época especialmente longa e estigmatizada, sobre a qual todas nós temos uma série de preconceitos. Então, achei importante lermos pelo menos um livro de História que fosse relativamente curto e didático, mas também rigoroso e atualizado, para nos informarmos sobre o período. Escolhi um brasileiro muito recente (História medieval, de Marcelo Candido da Silva, 2019) e um menos recente mas de um grande especialista internacional (Civilização do Ocidente Medieval, de Jacques Le Goff, 1964), ambos sobre a Idade Média na Europa como um todo.
Se eu quisesse somente que vocês tomassem contato com os fatos históricos de Roma Antiga, teria escolhido um livro assim. Existem vários.
Mas não. Como nossa leitura sobre os romanos, não escolhi nem uma obra primária escrita por um romano da época, que teria interesse histórico, e nem um livro de história contemporâneo escrito por um acadêmico de hoje, que teria interesse informativo.
Escolhi um livro escrito na Inglaterra em 1776, que não é nem um nem outro. Por quê?
Em primeiro lugar, pela qualidade literária.
Porque Gibbon é, de fato, um dos maiores contadores de histórias de todos os tempos, tem uma verve irresistível, encadeia causos como ninguém.
Em segundo lugar, pelos fatos do Império Romano.
Porque, se teríamos que passar obrigatoriamente pelos romanos, que fosse antes lendo um dos melhores contadores de histórias de todos os tempos, do que um historiador de hoje, muito mais academicamente competente, mas também muito menos interessante.
Em terceiro lugar, pela tese de Gibbon.
Porque não lemos um livro de história somente pelos fatos, mas também por sua tese. (Todo livro de história, se não quiser ser somente um amontado seco de fatos e números, terá que ser, em alguma medida, um ensaio.)
E a tese de Gibbon não só é muito representativa de sua época (século XVIII, iluminismo, enciclopedismo, deísmo, liberalismo, etc) mas também muito influente até hoje, base lapidar da própria ideia que o Ocidente tem de si mesmo, e template para outros mil livros, estudos, teses sobre o declínio e queda do Império Britânico, dos Estados Unidos, da União Soviética, do próprio Ocidente.
Então, Gibbon acaba sendo um nódulo central, um ponto ótimo onde se articulam, se unem, se separam várias linhas:
1) uma arquinarrativa que sai do mundo antigo, mostra o Cristianismo forçando a transição da Antiguidade para a Idade Média e termina na Queda de Constantinopla, no marco temporal do início da Idade Moderna;
2) uma tese que ilustra os saberes, as prioridades, as limitações do iluminismo europeu do século XVIII, esse movimento que encerra a Era Moderna e abre alas para a Revolução Francesa e a Era Contemporânea;
3) uma ideia de Ocidente, uma concepção de progresso histórico, que atravessa toda a Era Contemporânea e ainda explica, demonstra, ilumina como nós, hoje, pensamos nós mesmas, nossa história, nossa cultura.
Por isso, em um curso sobre a Grande Conversa, estamos lendo, como literatura, o livro Declínio e queda do Império Romano, cobrindo os anos de 180 a 1453, e publicado em 1776 pelo britânico Edward Gibbon.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a terceira aula, Romanos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Ler História como Literatura é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 27 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/ler-historia-como-literatura // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato