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zazen

assim que assumo a posição de meia-lótus, cruzo as pernas e pouso as mãos em frente ao umbigo, é nessa hora que meu nariz coça.

primeiro, vem a negação, imediatamente seguida pela revolta. caralho, não acredito que meu nariz escolheu coçar justo agora. putaqueopariu.

quanto mais tento esvaziar a mente, mais a coceira aumenta. em breve, a coceira está do tamanho do mundo. a coceira é maior do que eu, do que a vida, do que kafka, do que o sol, do que a vacuidade, dp que a morte.

a coceira é o universo. ali. na ponta do meu nariz.

mas não posso me mexer.

aí, vem a barganha.

que besteira!, penso. ninguém vai me ver. estão todos sentados, voltados pra parede, concentrados na prática. e, afinal, o que tem de mais coçar o nariz? o nariz não está coçando mesmo? não sou livre? não estou no templo praticando zen por vontade própria? não posso me levantar e ir embora a qualquer momento? por que não poderia coçar o nariz?

mas não. vai fazer barulho. o cotovelo vai estalar. o tecido da minha roupa vai farfalhar. naquele silêncio absoluto, esses sons seriam quase ensurdecedores.

então, a coceira some.

como tudo no universo, como nossas vidas, como as árvores, como o próprio sol, a coceira também passa.

porque se eu sinto coceira e não preciso coçar, então eu posso sentir fome e não preciso comer. posso sentir cansaço e não preciso sentar. posso sentir ira e não preciso gritar. posso sentir desprezo e não preciso humilhar.

porque a fome, o cansaço, a ira, o desprezo também passam.

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uma caneca

de repente, minha caneca térmica de tomar café começou a sumir. fui procurar e descobri que um dos colegas de casa, o nate, estava usando.

me irrita bastante não ter acesso a minha caneca. afinal, não foi pra isso que eu a comprei? para beber café?

toda vez que procuro minha caneca e não encontro, fico puto. fico puto de verdade. ensaio diálogos mentais de marchar quarto adentro do nate e dizer coisas como:

olha só, vamos fazer um trato? sim, todo mundo pode usar tudo de todo mundo, mas vamos combinar que cada um tenta usar prioritariamente as suas coisas e, se não estiverem disponíveis, as dos outros, ok?

talvez muitas pessoas concordassem com essa minha irritação.

pena que ela está errada. é babaca, pequena, mesquinha, egoísta.

o colega de casa não sabe que a caneca é minha, que me irrito que ele a use, que só bebo café nela: ele sabe apenas que não foi ele que comprou mas que ela está no armário junto com outras dez canecas que ele também não comprou. como ela só some de vez em quando, ele não a usa sempre: deve simplesmente pegar a primeira que aparece e pronto.

não, não uso nada dele. teoricamente, os objetos de cozinha são de uso comum (facas, panelas, potes, canecas, etc), mas eu já tenho as minhas próprias coisas, não preciso usar as de ninguém.

o nate é uma pessoa ótima, linda, aberta, carinhosa, generosa. um cara realmente desapegado. trabalhava em uma financeira, num emprego pacato e seguro, largou tudo pra fazer escola de culinária, e depois, veio pra nova orleans trabalhar no melhor restaurante da cidade, trazendo apenas a bagagem que cabia no seu carro. ele usa minha caneca porque nem tem a dele.

imagino que não haveria nenhum problema em falar sobre isso. tenho certeza absoluta de que ele não teria nenhuma reclamação. ele é norte-americano, respeita a propriedade privada!

olha, sabe como é, eu gosto dessa caneca, só tomo café nela, de vez em quando eu procuro e não encontro, você poderia tentar usar as outras antes de usar essa? na boa?

mas não vou falar nada. porque o problema sou eu.

o problema não é o nate (uma pessoa generosa que outro dia quase deu cinquenta dólares pra uma velha trambiqueira numa cadeira de rodas) abrir o armário e pegar a primeira caneca que vê pela frente. o problema sou eu ter qualquer tipo de apego a um objeto de plástico vagabundo, que custou 6,99 dólares mais impostos, sem qualquer valor intrínseco ou sentimental.

não quero ser a pessoa que regula uma caneca. não quero chegar pro meu colega de casa, com a mão das cadeiras e a voz irritada, e pedir pra ele por favor não usar a minha caneca! eu não quero escrever bilhetinhos “vamos cada um usar nossas próprias canecas?”

eu não quero ser essa pessoa. eu não sou essa pessoa. eu não sou essa pessoa porque eu não quero ser essa pessoa. eu não sou essa pessoa porque 99,99% de tudo o que acontece no universo (provavelmente mais) está fora do meu controle, mas eu pelo menos ainda tenho controle sobre algumas coisas: eu posso até ser uma pessoa que se incomoda do colega de casa usar sua caneca preferida, mas eu decido não ser a pessoa que reclama com o colega de casa de ele estar usando sua caneca preferida.

poucos conselhos são mais canalhas do que o clássico “seja você mesmo”. a maioria dos problemas do mundo veio de gente que estava simplesmente sendo si próprio.

mais importante do que “ser você mesmo” é ser quem você quer ser. todas as forças do universo nos impelem a nos conformarmos, a aceitarmos as regras do mundo, a cedermos, nos moldarmos. ser a pessoa que você quer ser é uma das tarefas mais difíceis do mundo. é uma luta diária, surda, interna, contra seus próprios preconceitos, suas mesquinharias, seus egoísmos.

se quero ser menos invejoso, menos ciumento, menos egoísta, então, basta ser.

ser quem eu quero ser é o mínimo que devo a mim mesmo. se não sou nem isso, então não sou nada.

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a solidão é um egoísmo

narciso.

ninguém reclama “estar sozinho”, sente “vazio existencial”, ou quaisquer outros desses caprichos bem-alimentados, quando está ouvindo, acolhendo, se doando para outra pessoa.

narciso não estava só: ele tinha seu reflexo.

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um pouco sobre bashô

cinco haicais

escritos na juventude de bashô, entre 1666 e 1672.

na festa junina
corações desencontram
chuvorgasmo

* * *

botões de flor
pena que primavera não abre
uma bolsa de poemas

* * *

dentro da igreja
fiéis não têm como saber
cerejeiras em flor

* * *

casal de veados
pêlo no pêlo em consenso
pêlo tão duro

* * *

broto de bambu
gerações também escorrem
pelo orvalho

* * *

algumas notas

no original do primeiro haicai, bashô faz referência a um festival de verão, frequentemente interrompido por chuvas, onde havia o equivalente das nossas simpatias românticas de santo antonio nas festas juninas. a última palavra é um neologismo entre chuva e orgasmo.

no original do terceiro haicai, ao invés de “igreja”, bashô cita o nome de um templo budista. esse haicai é geralmente considerado uma crítica ao egocentrismo das pessoas religiosas que “rezam” muito mas não enxergam o mundo a sua volta.

em suas cartas, bashô revelou desejos homoeróticos que não se sabe se realizou. o quarto haicai é geralmente lido sob essa luz. é interessante a repetição da palavra “pêlo” três vezes. o animal “veado” tem uma conotação homossexual em nossa cultura, mas não, que eu saiba, na japonesa.

* * *

bashô é um dos grandes nomes da literatura mundial e mestre reconhecido em haicai. as versões acima, libérrimas, são minhas, baseadas na tradução inglesa muito bem anotada por jane reichhold, publicada pela kodansha.

* * *

basho

a bananeira

em 1680, um estudante deu a bashô uma muda de bananeira para seu jardim, uma árvore muito rara e exótica no japão. sobre ela, o poeta escreveu:

“suas flores, ao contrário de outras, não têm alegria alguma. seu tronco é intocado pelo machado, pois sua madeira não serve para nada. porém, amo essa árvore por sua própria inutilidade. … sento sob suas folhas e aprecio ver o vento e a chuva soprando contra ela.”

pouco depois, o poeta mudou pela última vez de pseudônimo e passou a assinar “bashô”, nome pelo qual está eternizado.

em japonês, “bashô” quer dizer “bananeira”.

* * *

a libélula

um dos alunos de poesia de bashô veio mostrar a ele, empolgado, um haicai sobre arrancar as asas de uma libélula para deixá-la parecida a uma pimenta vermelha.

bashô, que não tolerava crueldade nem no faz-de-conta, sugeriu trocar a ordem dos fatores: acrescentar asas a uma pimenta vermelha para deixá-la parecida a uma libélula.

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arte zen

compromisso público

não sou guru, coach, terapeuta. não escrevo auto-ajuda.

não quero te convencer, não quero que você mude, não te digo o que fazer, não aponto dedos na sua cara, não te acuso, não te peço para concordar comigo.

não sou melhor que você, não levo uma vida melhor que a sua, não vendo meu estilo de vida.

não debato, não respondo provocações, não me irrito.

agradeço a atenção de quem me lê e, para quem acompanha e gosta, se não for fazer falta, peço uma doação correspondente ao valor que adicionei à sua vida:

www.alexcastro.com.br/mecenato

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zen

o zen não enriquece ninguém

“where there is carrion lying, meat-eating birds circle and descend. life and death are two. the living attack the dead, to their own profit. the dead lose nothing by it. they gain too, by being disposed of. or they seem to, if you must think in terms of gain and loss. do you then approach the study of zen with the idea that there is something to be gained by it? this question is not intended as an implicit accusation. but it is, nevertheless, a serious question. where there is a lot of fuss about ‘spirituality,’ ‘enlightenment’ or just ‘turning on,’ it is often because there are buzzards hovering around a corpse. this hovering, this circling, this descending, this celebration of victory, are not what is meant by the study of zen — even though they may be a highly useful exercise in other contexts. and they enrich the birds of appetite.

zen enriches no one. there is no body to be found. the birds may come and circle for a while in the place where it is thought to be. but they soon go elsewhere. when they are gone, the ‘nothing,’ the ‘no-body’ that was there, suddenly appears. that is zen. it was there all the time but the scavengers missed it, because it was not their kind of prey.”

primeiras palavras do livro “zen and the birds of appetite”, do monge trapista chamado thomas merton, com comparações muito fecundas entre o zen e as tradições místicas e monásticas do cristianismo.

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neodarwinismo

um dia alguém vai ter que me explicar porque é tão importante que a espécie humana não se extingua.

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koan

se você tiver arte, vou te dar arte. se você não tiver arte, vou tomar sua arte.

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vai-e-volta

às vezes, acho que ninguém me respeita. então, lembro que não respeito ninguém, e acho super justo.

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menos zen

a velha ganância aquisitiva

algumas pessoas morrem de orgulho de ter trocado o discurso do

“faça isso e aquilo para ficar mais rico e ter mais coisas e ser mais bonito e estar mais na moda, etc etc!”

por o novo discurso auto-ajuda-zen-pós-moderno do

“faça isso e aquilo para ser mais feliz e mais minimalista e ser mais autêntico, etc etc!”

mas o foco é sempre uma competição por mais! maIS!! MAIS!!!

a ganância aquisitiva continua a mesma, só muda o objeto.

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poesia zen

Alguns poemas que fui encontrando em minhas leituras. A versão para o português é minha, a não ser quando assinalado. Naturalmente, não é uma tradução, pois não falo nem chinês nem japonês. Conheci esses poemas em inglês e espanhol, em diferentes versões, às vezes muito distintas umas das outras, e, do alto da minha ignorância, meu instinto de escritor me levou a ficar futucando, melhorando, brincando, ouvindo seu ritmo interno. Minhas versões, abaixo, com certeza já não tem mais nada a ver com os originais, mas significam muito pra mim. E me ajudam.

* * *

Debaixo dos pés, o céu; por cima da cabeça, o chão.
Não existe nem dentro, nem fora, nem meio.
Uma pessoa sem pernas caminha.
Uma pessoa sem olhos enxerga.
A montanha do norte se mantem em silêncio,
Voltada para a montanha do sul.

Hanshan // China, século IX // verbete na Wikipédia

* * *

Não há necessidade de atacar os erros dos outros
Não há necessidade de ostentar suas próprias virtudes
Aja quando for reconhecido
Retire-se quando for ignorado
Grandes recompensas querem dizer grandes provas
Palavras profundas se encontram com mentes superficiais
Pense no que ouviu
As crianças devem ver por si mesmas

Hanshan // China, século IX // tradução de Marcos Beltrão

* * *

Comemos, cagamos, dormimos, acordamos.
Esse é nosso mundo.
Só o que temos que fazer depois
É morrer.

Ikkyu // Japão, 1394-1491 // verbete na Wikipédia

* * *

A sombra do bambu varre as escadas,
Mas o pó não se levanta.
O luar penetra as profundezas do lago,
Mas não deixa traços na água.

autor desconhecido

* * *

Eles se revoltam, eu fico imóvel.
Desejos me atiçam, eu fico imóvel.
Ensinam os sábios, eu fico imóvel.
Só me movo por conta própria.

Lu Yu // China, 1131-1162 // verbete na Wikipédia

* * *

Budas despedaçados.
Espada sempre afiada.
Onde a roda gira,
O vazio range os dentes.

Shûhõ Myõchõ, mestre Daitõ Kokushi // Japão, 1282-1337 // Segundo a lenda, esse mestre passou seus últimos anos meditando na posição de lótus por ter uma das pernas aleijadas. Sentindo a morte chegar, ele quebrou a perna com as próprias mãos, assumiu a posição de lótus, escreveu as linhas acima e morreu ao desenhar o último pictograma. // fonte: Manual de Zen Budismo, de D.T.Suzuki

* * *

velha lagoa
o sapo salta
o som da água

Bashô // Japão, 1644-1694 // verbete na Wikipédia // tradução de Paulo Leminski

* * *

A cigarra. Ouve.
Nada em seu canto revela
Que está pra morrer.

Bashô // Japão, 1644-1694 // verbete na Wikipédia

* * *

De mãos vazias, seguro a pá.
Ando a pé, montado no touro.
Cruzo a ponte, e ela flui,
Mas a água não.

Bodisatva Fudaishi // também conhecido por Jinie, Fu Ta-shih, Shan-hui // fonte: Introdução ao Zen Budismo, de D.T.Suzuki

* * *

A morte existe,
Mas não há quem morra.

O sofrimento existe,
Mas não há quem sofra.

O feito existe,
Mas não há quem faça.

O nirvana existe,
Mas não há quem busque.

O caminho existe,
Mas não há quem siga.

Visuddhimagga, ou Caminho da Purificação, cap.16 // na Wikipédia

* * *

Se você tiver um cajado,
Eu lhe darei um cajado.
Se você não tiver um cajado,
Eu lhe tomarei seu cajado.

Mumonkan, ou A Porta sem Porta, koan 44 // na Wikipédia // O Mumonkan (não sei qual é ou se existe um nome consagrado em português) já entrou na seleta lista dos três livros mais importantes da minha vida. Os outros dois são A Bíblia e Declínio e Queda do Império Romano. Todos os outros estão muito abaixo.

* * *

Trinta raios convergem para o meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.
Molda-se o barro para fazer um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.
Fazem-se portas e janelas para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.

Por isso, a vantagem do que está lá
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está.

Tao Te Ching, capítulo 11 // escrito por Lao Zi // China, século VI AEC // naWikipédia // tradução de Waldéa Barcelos

* * *

Para atingir um determinado objetivo,
você precisa tornar-se um tipo de pessoa.

Uma vez que se torne essa pessoa,
O objetivo não vai mais parecer importante.

Dogen // Japão, 1200-1253 // verbete na Wikipédia

Para aprender a morrer,
observe as cerejeiras,
observe os crisântemos.

Anônimo // Japão, c.1700

* * *

Sem começo,
Sem fim,
A mente nasce,
Para lutas e dores,
e então morre.
O vazio é isso.

* * *

Como o orvalho efêmero,
a aparição súbita,
ou o lampejo fugaz do raio
– mal aparece, já sumiu –
assim somos todos nós.

* * *

A lua é uma casa
onde a mente é mestra.
Observe:
Só a impermanência dura.
Esse mundo também vai passar.

* * *

Ir só.
Vir só.
Tudo ilusão.
Lhe ensinarei
A não ir nem vir.

* * *

Queria oferecer
Algo pra você.
Mas no zen
Não temos.

Ikkyu // Japão, 1394-1491 // verbete na Wikipédia

* * *

Abandone toda fala.
Nossas palavras expressam
mas não seguram.
Letras não deixam rastros,
mas revelam o ensinamento.

Dogen // Japão, 1200-1253 // verbete na Wikipédia

* * *

Na estrada para Tien-tai

Cercado por dez mil montanhas,
Bloqueado, sem ter para onde ir…

Até chegar aqui,
não há como chegar aqui.
Uma vez aqui,
não há para onde ir.

Yuan Mei // China, 1716-1798

* * *

No portão de pedra, há neve, e nenhum traço da jornada.
A neblina do vale dos pinheiros é cheia de fragrâncias.
Pássaros frios caem sobre as migalhas de nossa refeição no pátio.
Um robe rasgado balança nos galhos da árvore. O velho monge está morto.

Wei Ying-Wu // China, 736-830

* * *

Os pássaros sumiram do céu.
Agora a última nuvem se escoa.
Sentamos juntos, a montanha e eu,
Até que resta apenas a montanha.

Li Po // China, 701-762

Aqui existe o vazio

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textos zen

nem todos vão te amar

existem poucas atitudes mais vaidosas do que autorizar sua própria biografia.

são sempre pessoas públicas que já enfrentaram escândalos, ataques e polêmicas. e parecem pensar: ah, fulano me odiava porque não me conhecia; fulana fez campanha pra me destruir porque não entendeu minha mensagem. pois, acreditam, ninguém que realmente as conheça, ninguém que realmente as entenda poderia odiá-las, confrontá-las, atacá-las.

só essa certeza tão vaidosa justifica autorizar uma biografia e entregar todos seus arquivos ao escrutínio de um terceiro.

a vaidade está em acreditar que se o biógrafo ler todas as cartas, consultar todos os documentos, falar com todos os amigos, então, será impossível não amar o biografado.

a vaidade está em não perceber que ninguém está ou esteve ou estará a altura dessa presunção. que ninguém é ou foi ou será amado por todos.

que as pessoas não nos entendem e talvez nos odeiem não porque não nos conhecem direito ou porque não ouviram com cuidado nossa mensagem, e nem mesmo porque são escrotas, cretinas ou mal-intencionadas, mas sim porque são outras pessoas, que fizeram outras escolhas, que tem outras prioridades, que viveram outras vidas.

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ao léu

estou na casa de uma amiga faz uma semana e estou há uma semana sem sair de casa.

acordamos, ela sai pra trabalhar, fico escrevendo, ela volta, ficamos juntos, dormimos. no dia seguinte, bis.

quase tudo que gosto realmente de fazer, faço em casa: ler, escrever, cozinhar, transar, fumar, tomar vinho, meditar, ver os amigos, usar a internet.

na prática, só saio de casa pra fazer três coisas: ir ao teatro, remar, levar o oliver no banheiro.

aqui, não tem teatro, não tem onde remar e estou sem o oliver – que ficou na casa de uma amiga.

resultado: sem nem perceber, passei uma semana inteira dentro de casa. completamente feliz.

minha inércia é cósmica.

quando estou fora, minha tendência é ficar fora pra sempre. preciso de muito pouco, tenho excelentes amigos, vou pulando de casa em casa, lavando a louça alheia, dormindo onde caio, trabalhando do meu laptop. então, vou ficando fora… (não visito meu próprio apartamento há mais de um mês.)

quando estou dentro, minha tendência é ficar dentro pra sempre. preciso de muito pouco, tenho tudo em casa, os amigos sempre aparecem pra visitar. então, vou ficando dentro….

percebo que a função do oliver em minha vida é justamente quebrar esse círculo.

quando estou fora, nunca posso ficar fora por muito tempo, porque o oliver está lá dentro sozinho, coitado, tem que sair pra passear, etc.

quando estou dentro, nunca posso ficar dentro por muito tempo, porque o oliver tem que sair pra ir no banheiro, tem que passear, etc.

sem o oliver, sou um ser que se movimenta completamente de acordo com as marés. ao léu.

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antizen

amiga: “ah, alex, se você soubesse o quanto sou antizen, nem falaria mais comigo.”

eu: “mas o zen também é antizen.”

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de mãos vazias, seguro a pá

De mãos vazias, seguro a pá.
Ando a pé, montado no touro.
Cruzo a ponte e ela flui,
Mas a água não.

tradução livre do poema de Bodisatva Fudaishi, também conhecido como Jinie, Fu Ta-shih, Shan-hui (China, 497–569)

(outras versões: “Observai a pá nas minhas mãos vazias. / Enquanto montado num touro vou andando a pé. / Quando passo sobre a ponte não é a água que corre, e sim a ponte.” // “Empty-handed, I hold a hoe. / Walking on foot, I ride a buffalo. / Passing over a bridge, I see / The bridge flow, but not the water.” // “Empty-handed I go and yet the spade is in my hands; / I walk on foot, and yet on the back of an ox I am riding: / When I pass over the bridge,/ Lo, the water floweth not, but the bridge doth flow.” // “Ando con las manos vacías y con todo la espada está en mis manos; // marcho a pie, y con todo a grupas de un buey voy cabalgando; // cuando paso por sobre el puente, // el agua no fluye, pero el puente si.”)

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paradoxo de narciso

quando eu era mais jovem, eu me achava especial. que tinha um destino. que realizaria grandes feitos.

os anos passaram, a vida aconteceu, e me dei conta que eu era apenas mais um bichinho sem alma, nessa pedra girando pelo espaço, sem nada que me distinguisse.

narciso.

entretanto, em nossa época narcisista, cercado de pessoas que se acham a última coca-cola do deserto, cada um protagonista do filme da sua vida, todos brigando por mais amigos no facebook, me dei conta que nada pode ser mais especial do que alguém que sabe sinceramente que é apenas mais um.

* * *

a coisa mais difícil de exercer a arte em público é não deixar os elogios subirem à cabeça. é preciso encarar com naturalidade o fato de as pessoas gostarem da sua arte e, ocasionalmente, terem suas vidas mudadas por ela, sem que isso queira dizer que o artista é mais importante do que o bombeiro hidráulico que lhes possibilita uma boa descarga na privada. elogios são como o meu cachimbo: só fazem mal se você tragar.

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se você está em busca da felicidade, já está fazendo errado.

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você é o que você faz

Em resposta ao texto do roommate e da caneca, muitos amigos me disseram:

“Alex, não adianta nada você ficar se estressando com isso, essa coisa ficar te remoendo por dentro, e você não falar nada com seu roommate! O que importa de verdade é que isso te incomoda, te faz mal. O que importa é o que você SENTE!”

Eu amo meus amigos, mas deixa eu discordar: o que importa é o que eu FAÇO.

* * *

A Lei Não Tem Espírito: A Lei É a Lei

Outro dia, eu estava conversando com um amigo judeu ortodoxo sobre os truques para burlar o shabat. Para quem não sabe, no shabat (que vai do pôr-do-sol de sexta ao pôr-do-sol de sábado), os judeus não podem exercer nenhuma atividade produtiva ou criadora: o dia deve ser dedicado ao lazer com a família, ao estudo da Lei, à renovação das forças. Em princípio, a regra é essa, mas como a lei foi escrita há milhares de anos, os exemplos específicos incluem acender fogo, raspar couro, agrupar feixes, etc. (Lista completa.) Mais tarde, ao longo dos séculos, painéis de rabinos e sábios foram atualizando as regras. Por exemplo, como “cortar” é proibido, entende-se que é proibido cortar papel higiênico de um rolo ou separar lenço de papel quando um está preso ao outro! Não é à toa que, no sábado de manhã, em São Paulo, se veem tanto judeus ortodoxos por todos os lados: eles estão caminhando para a sinagoga, pois não podem dirigir automóveis. Também não podem fazer coisas como acender a luz ou apertar o botão de um elevador. Para burlar essas regras, surgiram uma série de truques: elevadores que funcionam continuamente, parando em todos os andares, e luzes acionadas por timers ou sensores de movimento. Esse texto, muito completo, comenta todas as 39 proibições e suas aplicações contemporâneas.

(Exemplo de um debate rolando no Parlamento Israelense hoje: grupos ortodoxos de direita querem proibir os computadores do governo de aceitarem pagamento de contas públicas durante o Shabat; grupos seculares de esquerda argumentam que é um absurdo impedir os cidadãos cristãos e muçulmanos de pagar sua luz pela internet no sábado! E por aí vai. Leia matéria completa na The Economist: That Wobbly Balance: Another Row Between the Religious and the Secular in Israel)

Para mim, do alto de minha imensa sabedoria e borbulhante conhecimento da tradição judaica, tudo aquilo era muito estranho e um pouco cínico. Pra começar, os sábios tinham se preocupado mais com a letra da lei do que com o seu espírito. Ok, quando a lei foi escrita, atividades como acender um fogo e escrever (pensem plumas, tintas, pergaminhos, vela) eram muito trabalhosas, etc. Para um judeu de hoje, acender uma luz elétrica, escrever um bilhete ou dirigir não é trabalho nenhum. Mais importante, se você pode dirigir e acender a luz, é provável que possa se divertir muito mais com sua família no Shabat – e não é essa a idéia? Qual é o sentido de continuar proibindo coisas que, hoje, já não dão mais trabalho algum? E, por outro lado, com seus truques sabáticos, me parecia que os judeus estavam tentando ser mais espertos que deus. Mas como se pode burlar a lei de um ser onipotente e onipresente, que tudo sabe e tudo vê, inclusive dentro do seu próprio coração?

Meu amigo riu e disse que eu estava com uma mentalidade muito greco-romana-cristã. Quem se interessa pela intenção do criminoso, ou pelo que passa no coração dos homens, é o sistema jurídico romano baseado em uma moralidade cristã. No judaísmo, o que importa é o que você faz. Deus não está interessado em minúcias. Ele disse que não pode acender fogo nesse período, mas nunca disse que eu não podia acender o fogo antes e deixá-lo aceso. Ponto. O que não foi proibido está potencialmente permitido. Se eu consegui acender o fogo e ainda assim obedecer à lei, melhor pra mim. Não existe “intenção” ou “espírito” da lei. A lei não tem espírito. A lei é a lei. Somos o povo do livro justamente porque, pela primeira vez na história, valia o ESCRITO.

* * *

A Existência Precede a Essência

Sartre ensina que nossa existência precede nossa essência. A frase é difícil de entender a princípio, e é muito mal citada, mas quer dizer somente o seguinte: ao contrário do que dizem as religiões (que temos uma essência, a alma, que é eterna e existe antes e vai existir depois da nossa existência terrena), Sartre diz que nós primeiro começamos a existir e, então, através de nossas escolhas, de nossos gestos, de nosso comportamento, lentamente construímos nossa essência. Ou seja, nossa essência não nos é dada, não é pré-determinada: ela é uma construção DIÁRIA nossa:

“… se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significa então que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer.”

A frase consta da palestra “O Existencialismo é um Humanismo“, dada por Sartre em Paris, em 1946 – logo após a guerra, após a ocupação, após tanta tragédia. É um dos textos mais lindos, mais inspiradores, mais otimistas, mais humanos que o nosso triste século XX produziu. No meu mundo ideal, seria leitura obrigatória pra todas as pessoas. Clique aqui e baixe o texto em um PDF gratuito: é curtinho e muito mais acessível do que os textos filosóficos mais rigorosos de Sartre.

* * *

Homem É Quem se Comporta como Homem

Judith Butler também afirma que não existe essência masculina ou essência feminina. Não existe “ser mulher” ou “ser homem”: nós construímos nossa identidade sexual diariamente, através de nossos atos. Desse modo, “ser homem” nada mais é do que simplesmente se comportar como a sociedade espera (ou determina) que homens se comportem. Não é à toa que muitos pais surtam quando veem seus filhos homens brincando com boneca: de um modo bem real e concreto, não é nem que brincar com bonecas pode fazer com que ele desenvolva tendências homossexuais no futuro, mas sim que brincar com bonecas faz dele, na prática, uma menina hoje, agora! “Ser menina” é exatamente isso.

Em “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão de Identidade” (1990), Butler ensina que atributos de gênero não são expressivos mas sim performativos e, portanto, esses atributos constituiriam de fato a identidade que pretendem expressar ou revelar. Em outras palavras, para Butler, ser homem ou ser mulher, ser heterossexual ou homossexual, não são categorias imanentes, pois não existiria uma essência, digamos, masculina que precederia a existência do indivíduo do gênero masculino: masculino seria quem se comporta de acordo com os padrões de comportamento culturalmente definidos como masculinos. Mais ainda, se não existe uma natureza pré-existente das identidades de gênero, então não existem atos sexuais verdadeiros ou distorcidos, e a própria noção de “gênero verdadeiro” revela-se uma manobra destinada a impor a dominação masculina e a heterossexualidade compulsória.

Mais uma vez, pouco importa essa sua tal “essência verdadeira” que ninguém nunca viu. O que determina quem você é são os seus ATOS.

* * *

Slave Is As Slave Does

No século XIX, a Constituição e o Código Civil brasileiros não definiam com clareza o que era um escravo – na verdade, nem o mencionavam, nem reconheciam sua existência. Sem isso, como poderia funcionar uma sociedade complexa e sofisticada como o Brasil oitocentista, uma cultura completamente bacharelista, uma economia totalmente dependente do escravo?

Se não existia definição de escravo, então também não existia essência de escravo. Ou seja, a escravidão não era um SER, era um FAZER. Não existia teoria, somente a prática. Escravo é quem agia como escravo, escravo é quem era escravizado. Consequentemente, quem não agia como escravo, quem não se deixava escravizar… não era escravo! Pois, afinal, tirando o agir como escravo, de que outra maneira saberíamos quem era escravo e quem não era?

Em outras palavras, ecoando Judith Butler, ser escravo era “uma performance”. Como diz Maria Helena Machado, em O Plano e o Pânico:

“a única prova cabal do ser escravo restringia-se ao fato básico de sua condição”.(27)

Ou, como diríamos em inglês, slave is as slave does.

Todas essas contradições vieram à baila em 1882, durante um processo judicial acontecido na Comarca de Caçapava, interior de São Paulo, onde os 80 escravos do falecido Major Francisco Alves Moreira entraram na justiça alegando não ser escravos… porque o dono não os tratava como escravos!

Leiam a história completa no texto: Definindo a Escravidão: Afinal, O Que É um Escravo?

* * *

O Tratamento Não É pra Você, É para os Outros

Por fim, narcisismo e ego são dois dos temas principais de um dos meus blogs favoritos, The Last Psychiatrist. No final de mais um texto sobre o assunto (“The Other Ego Epidemic“), ele responde ao pedido desesperado de um leitor:

“Help me, please, I think I’m a narcissist. What do I do?”

There are a hundred correct answers, yet all of them useless, all of them will fail precisely because you want to hear them.

There’s only one that’s universally effective, I’ve said it before and no one liked it. This is step 1: fake it.

You’ll say: but this isn’t a treatment, this doesn’t make a real change in me, this isn’t going to make me less of a narcissist if I’m faking!

All of those answers are the narcissism talking. All of those answers miss the point: your treatment isn’t for you, it’s for everyone else.

If you do not understand this, repeat step 1.”

Talvez seja simplesmente o melhor conselho que já ouvi na vida.

* * *

Luto diariamente contra duas forças: por um lado, narcisismo, vaidade, ego e, por outro, preguiça, omissão, inércia, apatia. Quase tudo o que faço na vida, eu faço por vaidade. Quase tudo o que eu não faço, não faço por preguiça. Antes de fazer qualquer coisa, eu me pergunto: estou fazendo isso só pra satisfazer meu ego? Antes de recusar qualquer coisa, eu me pergunto: estou deixando passar essa chance por pura preguiça? Gosto de pensar que tenho melhorado com a idade mas, é claro, só estou falando isso pra massagear meu próprio ego. A luta é inglória e não tem cura. “Bom dia, meu nome é Alex Castro e eu não faço nada por pura vaidade há doze horas” – e ninguém aplaude, senão estraga tudo.

Havendo ou não havendo deus, tanto os sábios do judaísmo quanto os ateus existencialistas, tanto as feministas pós-modernas quanto os abolicionistas militantes, parecem concordar em um ponto fundamental. Você será julgado pelos seus atos. Sua essência, sua personalidade, sua sexualidade, vão ser construídos pelas suas ações. Você é o que você faz, pois é através dos seus atos que você interage com o mundo.

E, como no sábio conselho do Last Psychiatrist, ninguém está muito interessado no que você pensa, no que você sente, em toda essa linda complexitude borbulhando dentro de você. Pouco importa se você odeia seu vizinho ou se sonha em comer o cú da própria filha. O que importa é o que você FAZ.

Então, voltando à pergunta inicial, com licença, mas eu posso até ser uma pessoa que se incomoda do roommate usar sua caneca preferida, mas eu não vou ser a pessoa que reclama com o roommate de ele estar usando sua caneca preferida. The treatment isn’t for you, it’s for everyone else. Amém.

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“alex, como faço para ser uma pessoa melhor?”

Muitos leitores admiram o meu “jeito de ser” – ou o jeito que digo que sou. Me escrevem dizendo que tentam ser menos mesquinhos, ciumentos, invejosos, e que é uma luta muito difícil. E me perguntam onde melhorar, o que fazer, como agir!

Eis algumas perguntas que me fazem:

eu quero passar por cima de toda a inveja que sinto de pessoas que conseguem o que eu não consigo. eu sempre acho que tou pra baixo, que sou menos… a partir de agora, vou aprender a sonhar meus próprios sonhos… obrigada.

Não consigo me desapegar da opinião dos outros com leveza. Se eu ficar nervoso consigo me desligar, mas aí não adianta. Só piora. Isso está me deixando louco. Fico com dor de cabeça. Alguma ideia de como fazer isso numa boa?

O que mais me irrita hoje é minha dificuldade de viver o momento, de vive-lo com leveza, bom humor, e de cagar pra opinião dos outros. Isso me deixa fisicamente doente, as vezes. Alguma idéia de como resolver isso?

O que fazer com os preconceitos que tenho e detesto, mas não consigo evitar?

E eu, que não escrevo livro de auto-ajuda, não sou guru e não tenho nenhuma resposta, conto a seguinte historinha.

* * *

Moro com dois roommates. Faz algum tempo, comprei uma caneca térmica transparente na loja da Tabasco – pra quem não sabe, Tabasco é uma marca aqui da Louisiana. Adoro minha caneca da Tabasco. Só bebo café nela.

De uns tempos pra cá, começou a sumir. Fui procurar e descobri que um dos roommates estava usando.

Me irrita bastante querer usar minha caneca e não poder. Afinal, não foi pra isso que eu a comprei? Para poder utilizá-la?

Toda vez que procuro minha caneca e não encontro, fico puto. Fico puto de verdade. Faço diálogos mentais de marchar quarto adentro do meu roommate e dizer coisas como:

“Olha só, vamos fazer um trato? Sim, todo mundo pode usar tudo de todo mundo, mas vamos combinar que cada um tenta usar prioritariamente as SUAS coisas e, se não estiverem disponíveis, as dos outros, ok?”

Com certeza, grande parte dos leitores concorda com minha irritação.

* * *

Pena que ela está errada. É babaca, pequena, mesquinha, egoísta.

O roommate não sabe que a caneca é minha, que eu me irrito que ele a use, que eu só bebo café nela: ele só sabe que não foi ele que comprou mas que ela está no armário junto com outras dez canecas que ele também não comprou. Como ela só some de vez em quando, ele não a usa sempre: deve simplesmente pegar a primeira que aparece e pronto.

Não, eu não uso nada dele. Teoricamente, os objetos de cozinha são de uso comum (facas, panelas, tupperware, canecas, etc), mas eu já tenho as minhas próprias coisas, não preciso usar as de ninguém.

Meu roommate é uma pessoa ótima, linda, aberta, carinhosa, generosa. Um cara realmente desapegado. Trabalhava em uma financeira, num emprego pacato e seguro, largou tudo pra ir fazer escola de culinária, e depois, veio pra Nova Orleans trabalhar no melhor restaurante da cidade, trazendo apenas a bagagem que cabia no seu carro. Ele usa minha caneca porque nem tem a dele.

Imagino que não haveria nenhum problema em falar sobre isso. Tenho certeza absoluta de que ele não teria nenhuma reclamação. Ele é americano, respeita a propriedade privada!

“Olha, sabe como é, eu gosto dessa caneca, só tomo café nela, de vez em quando eu procuro e não encontro, você poderia tentar usar as outras antes de usar essa? Na boa?”

Mas eu não vou falar nada. Porque o problema sou eu.

O problema não é meu roommate (gente boa pra caralho, que outro dia quase deu 50 dólares pra uma velha trambiqueira numa cadeira de rodas) abrir o armário e pegar a primeira caneca que vê pela frente. O problema sou eu ter qualquer tipo de apego a um objeto de plástico vagabundo, que custou 6,99 dólares mais taxes, sem qualquer valor intrínseco ou sentimental.

Eu não quero ser a pessoa que regula uma caneca. Eu não quero chegar pro meu roommate, com a mão das cadeiras e voz irritada, e pedir pra ele por favor não usar a MINHA caneca! Eu não quero aparecer no Passive-Agressive Notes, com um bilhetinho “vamos cada um usar suas próprias canecas?”

Eu não quero ser essa pessoa. Eu não sou essa pessoa. Eu não sou essa pessoa porque eu não quero ser essa pessoa. Eu não sou essa pessoa porque 99,99% de tudo o que acontece no universo (provavelmente mais) está fora do meu controle, mas eu pelo menos ainda tenho controle sobre algumas coisas: eu é que decido se eu vou ser a pessoa babaca e cri-cri que vai reclamar de estarem usando sua caneca.

Poucos conselhos são mais canalhas do que o clássico “seja você mesmo”. A maioria dos problemas do mundo veio de gente que estava simplesmente sendo si próprio. Mais importante do que “ser você mesmo” é ser quem você quer ser. Todas as forças do universo nos impelem a nos conformarmos, a aceitarmos as regras do mundo, a cedermos, nos moldarmos. Ser a pessoa que você quer ser é uma das tarefas mais difíceis do mundo. É uma luta diária, surda, interna, contra seus próprios preconceitos, suas mesquinharias, seus egoísmos.

Quer ser menos invejoso, menos ciumento, menos egoísta? Então, seja.

Ser quem você quer ser é o mínimo que deve a si mesmo. Se você não é nem isso, então você não é nada.

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O texto continua em Você É o que Você Faz