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carta aberta a uma estudante que perdeu a vaga por causa das cotas

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racismo e imigração: de que cor devem ser nossos imigrantes?

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duas profissões esquecidas do rio antigo (conto)

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monges budistas que bebiam merda

do sempre delicioso e indispensável fernão mendes pinto, português que passou trinta anos perdido pela ásia no século 16 e escreveu uma das obras mais importantes da nossa língua, a peregrinação.

o trecho abaixo, retirado do capítulo 160, teoricamente descreve os muitos personagens de um festival religioso budista que pinto teria testemunhado em burma, em 1545.

(vale a pena lembrar que ele mentia tanto que seu apelido era “fernão, mentes? minto”.)

“Vinhão tambem outros que se chamauaõ Nucaramoẽs, muyto feyos & mal assombrados, vestidos de pelles de tigres com hũas panellas de cobre debaixo dos braços, cheyas de hũa certa confeiçaõ de ourina podre, misturada com esterco de homẽs, taõ peçonhenta & de fedor taõ incomportauel, que por nenhum modo se podia sofrer nos narizes, & pedindo esmolla ao pouo dezião, dame esmola logo nessa hora, & se não comerey disto que come o diabo & borrifarteey com que fiques maldito como elle; a que logo todos acudião a lhe darem esmolla muyto depressa, & se tardaua mais hum momento do que elle queria punha a panella à boca, & bebendo hum grande trago daquella fedorenta confeyção, borrifaua com ela aos que queria fazer mal, porque toda a outra gente que os via borrifados, auendoos já por malditos, saltaua nelles, lhes daua tão mao trato, que os tristes naõ sabiaõ parte de sy, porque nenhũa pessoa cataua cortesia que o naõ deshonrasse, & lhe desse muytas bofetadas & arrepeloẽs, dizendo que erão escomungados por serem causa de aquelle homem santo comer aquella çugidade como os diabos, & ficar sempre fedorento diante de Deos, para não poder yr ao parayso, nem ninguem o ver mais neste mundo.”

junto com a bíblia e o declínio e queda do império romano, de gibbon, a peregrinação fecha meu trio de livros favoritos. (clique aqui para baixar a peregrinação completa, em português antigo.)

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textos

fincar o pé na correnteza

de vez em quando, me acusam de ficar “reafirmando” meu estilo de vida, como se estivesse me gabando, como se fosse inseguro, como se quisesse convencer os outros.

mas todas as forças do mundo nos impelem a nos conformar. a nos transformar no padrão que exigem de nós. a nos moldar em pais de família, trabalhadores, consumidores, monogâmicos, heterossexuais, eleitores do psdb.

ser quem queremos ser é uma luta diária. um exercício constante de bater o pé, se recusar a ser coagido, articular quem se deseja ser — e, então, e essa é a parte mais difícil, efetivamente ser essa pessoa.

quem está sendo o que a sociedade espera que seja não precisa se auto-afirmar.

quem está na contramão precisa.

é necessário articularmos sempre o nosso caminho — justamente para não sair dele.

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ser bem-ajustado e bem-sucedido em um mundo escroto pode bem ser indicativo da sua própria escrotidão.

aliás, quem é você?

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textos

ônibus errado

ontem, um homem foi atropelado na saída da ponte rio-niterói.

ele tinha pego um ônibus errado, saltou no primeiro ponto de niterói e tentou atravessar a pista para pegar um outro ônibus no sentido rio. foi atingido por dois carros e um terceiro bateu na mureta para não atropelá-lo.

e eu, que também já peguei a ponte por engano, quando estava tentando chegar no fundão para a defesa de mestrado da minha melhor amiga, isabel, fiquei pensando nesse pobre moço atropelado por dois carros.

ninguém pega ônibus errado no trajeto casa-trabalho-escola. ônibus errado é para os dias especiais, para os dias fora da rotina, quando estamos indo a lugares diferentes, quando estamos fazendo coisas que nunca fizemos antes. boas ou ruins, estressantes ou relaxantes. uma entrevista de emprego, um exame médico, um encontro amoroso. algo que ocupa nossos pensamentos, nos desconcentra o foco, nos antecipa o futuro. será que é maligno? será que ela gosta de violetas? será que vão me contratar?

e assim, distraídos e felizes, ansiosos e talvez um pouco atrasados, atravessamos uma rodovia movimentada.

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zen

simplicidade voluntária

no programa capital natural, da bandnews, falando sobre simplicidade voluntária.

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rio de janeiro

mais uma história de horror, crime e violência no rio de janeiro

uma mesa de estudantes de direito. acabaram de sair de uma prova na estácio de sá da raul pompéia e vieram desanuviar na casa de sucos da minha esquina.

papo vai, papo vem, começam a falar da onda de violência no rio de janeiro. diz uma senhora muito bem arrumada:

“não dá mais pra andar na rua, não! outro dia de manhã, vocês nem sabem, eu fico arrepiada só de pensar, eu estava andando ali pelo leblon, em frente ao shopping leblon, sabe?, maior solzão, quando vi um grupo de uns quinze pivetes vindo na minha direção, tudo pequenininho, e eu já fiquei tensa, eu estava com um iphone num bolso e o ipad no outro, e fiquei pensando, quando me assaltarem, qual eu dou?, ipad ou iphone?, iphone ou ipad?, mas aí lembrei que um amigo meu, coronel da pm, me recomendou sempre encarar esses moleques, sabe?, mostrar que eu vi, que estou ligada, que estou atenta, porque eles são todos medrosos, só atacam em bando, então, eu fiz isso, fechei a cara e fiquei encarando, encarando, e eles lá, nada, passaram por mim e não tiveram coragem de me roubar, graças a deus, mas foi por muito pouco, deus me livre, essa cidade está impossível!”

e eu tive vontade de ir lá, cutucar seu ombro e perguntar:

“hmm. quer dizer que sua terrível história para ilustrar a onda de violência do rio de janeiro… é que você cruzou com um grupo de crianças em uma manhã de sol e olhou feio pra elas?”

* * *

um link: como morrem as jovens negras norte-americanas

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textos

não, eu não quero te convencer

acontece muito: escrevo sobre monogamia e algumas pessoas acham que estou tentando convencê-las a abraçar o poliamor; escrevo sobre ateísmo e acham que estou tentando convencê-las a abdicar de seus deuses; etc etc.

esse comentário é puro ego, um sintoma do narcissismo galopante do nosso tempo.

nem tudo que alguém escreve, ainda mais se a pessoa nem te conhece, é sobre você, gira a sua volta, quer te convencer de alguma coisa. repita comigo:

“o assunto não sou eu, o assunto não sou eu”

escrevo sobre estilos de vida alternativos não para convencer quem optou pela escolha da maioria (faz sentido tentar convencer alguém que deus não existe ou que a monogamia é castradora?) mas para mostrar às pessoas que pensam como eu que a escolha da maioria é somente isso: uma escolha.

que elas não precisam escolher o que todo mundo escolheu. que existem outras possibilidades, outros caminhos, outras opções.

que elas não estão sozinhas. que não são as únicas que pensam como pensam. que não são loucas por rejeitar o caminho mais trilhado. que são livres. livres.

se você está feliz com seus deuses e com sua monogamia e com as suas escolhas, então, eu fico sinceramente feliz por você. e te pergunto: por que veio se enfiar logo aqui, em plena conversa de uma pessoa insatisfeita com outras pessoas insatisfeitas? o assunto não é você. não é de você que estamos falando. não queremos te convencer de nada.

fica em paz. e, se as suas escolhas algum dia começarem a te oprimir, você sabe onde estamos. sinta-se sempre livre para juntar-se a nós.

* * *

leia também: o assunto não é você

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rio de janeiro textos

1711: eneida carioca

canto as lutas e o varão que,
forçado a fugir da pátria,
partiu das águas da guanabara
e subiu a serra rumo ao sertão.
muito o maltrataram
as forças humanas e divinas,
as chuvas e as ciladas,
os trovões e os tiros,
o ódio dos franceses huguenotes e
a covardia de um governador pusilânime.

vamos, ó ilustre hóspede, pedimos nós,
conta-nos, desde o princípio,
tuas desgraças e peregrinações,
da armadilha urdida pelos franceses e
da queda da mui-leal são sebastião,
e de como encerrou-se na américa
o domínio lusitano e católico.

calados, todos voltaram-se,
atentos, para o varão,
que do seu alto leito,
emocionado assim narrou:

manda-me, ó senhora, renovar um sofrimento nefando. ao relatar a queda do rio de janeiro e do seu reino pelos portugueses, dolorosos fatos que eu próprio vi e dos quais muito participei, qual marinheiro normando ou até mesmo o próprio tão cruel duguay-trouin não haveria de lançar dos olhos mares d’água? a noite úmida já desce do céu e os astros cadentes convidam ao sono. mas, se tanto deseja conhecer os nossos infortúnios e ouvir um breve relato da suprema desgraça lusa, ainda que me cause horror relembrar tais dores e que até hoje eu tenha fugido a esse sofrimento, começarei.

quebrantados por sua fracassada invasão do ano anterior e batidos pelo insucesso, decidem os franceses armar nova expedição contra a mui-leal e católica cidade de são sebastião do rio de janeiro.

* * *

trechinho de uma noveleta que estou escrevendo.

a narrativa faz um pastiche do segundo canto da eneida, de virgílio (um dos pontos altos da literatura ocidental, que conta a história da queda de tróia e da fuga de enéias), e se passa na noite de 21 de setembro de 1711, quando o rio de janeiro foi abandonado diante da invasão francesa.

como não leio latim, utilizei como base as traduções de domingos paschoal cegalla, tassilo orpheu spalding, manuel odorico mendes & joão franco barreto.

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se você gosta do que eu escrevo e quer acompanhar meus melhores textos, te sugiro assinar as atualizações do meu site.

é só colocar seu email aqui e pronto:
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e eu te agradeço.

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a raiva do betão

era uma vez, digamos, o betão.

betão queria fazer X da sua vida. mas o pai, a mãe, a sociedade, a mídia, o professor, o zé do 502, etc, disseram que betão iria se fuder se fizesse X, não iria ganhar dinheiro, não iria ter vida sexual, etc. aí, moço de bom-senso que sempre foi, betão sacrificou sua vida, recalcou suas vontades, fez tudo exatamente como mandaram e viveu a vida que projetaram pra ele e não a vida que queria viver.

um dia, apareceu o claudio gustavo.

claudio gustavo vivia exatamente a vida que o betão sempre quis viver e, pasmem, claudio gustavo não se fodeu, se sustentava, tinha uma vida sexual e amorosa, etc — nenhum daqueles medos que colocaram na cabeça do betão se realizou.

betão poderia tomar o simples fato da existência do claudio gustavo como um exemplo positivo para mudar sua vida, recuperar o tempo perdido, tentar fazer o que sempre quis.

mas mudar a vida dá um trabalho danado. além disso, betão agora já estava muito investido vivendo a vida que tinham mandado ele viver.

na verdade, aconteceu o contrário: betão tomou o simples fato da existência do claudio gustavo como exemplo negativo.

sem nem entender direito o motivo e de forma totalmente inconsciente, betão desenvolveu verdadeira ojeriza ao claudio gustavo.

agora, quando betão se senta entre outros homens que também viveram as vidas que lhes mandaram viver, exaustos de tanto trabalhar, cheios de dívidas e bebendo muito, a ojeriza geral ao claudio gustavo é tão auto-evidente que não precisa nem mesmo ser articulada ou justificada.

enquanto isso, o claudio gustavo continua lá, vivendo a vida que escolheu, sem nem se dar conta de estar agredindo tanta gente.

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textos

a nova economia colaborativa

não passa um dia sem que eu assista filmes ou escute música com o vlc; escreva com o libreoffice; ou consulte a wikipedia.

os três são parte integrante da minha vida. de modo bem real e concreto, adicionam valor à minha vida. os últimos dois, mais ainda, uso para o meu trabalho e para ganhar dinheiro.

por isso, eu faço doações periódicas para suas equipes criadoras ou mantenedoras.

elas merecem.

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tem gente que diz que lê todos os meus textos, que me cita pras amigas, que usa meus argumentos pra ganhar discussões, que mudei suas vidas, que lhes fiz ver o mundo de novas maneiras. e eu agradeço. e respondo o seguinte.

meus textos são disponibilizados gratuitamente pela internet. e fico feliz de serem úteis e apreciados por qualquer pessoa. ninguém precisa pagar nada para ler meus textos.

mas sou um artista pobrinho, que não tem renda nem emprego, e que sobrevive de vender livros e dar palestras e prestar pequenos serviços editoriais.

então, se meus textos fazem diferença e tiveram impacto na sua vida (e só você pode ser o juiz disso), e se não for fazer falta no leite das crianças, eu te peço para considerar a possibilidade de contribuir.

você pode:

– comprar meus livros:
www.alexcastro.com.br/livros

– ir às minhas palestras:
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– fazer uma doação ou assinatura:
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ou até mesmo, simplesmente, ajudar a divulgar meu trabalho e meus textos.

e eu te agradeço sempre, muito, muito mesmo.

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o baralho viciado

nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens (ênfase em “homens”), ao longo de muitos séculos, e obedece, em larga medida, aos interesses de quem a organizou – interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma “conspiração a portas fechadas”, mas de um longo processo social e político.

no caso do brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do estado de direito.

então, se todas as pessoas brasileiras magicamente deixarem de ser machistas (ou racistas ou etc) mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas e sem racistas continuará intrinsecamente machista e machista, e marcada pela mais profunda desigualdade racial e de gênero.

acredito nos bons sentimentos de todo mundo, mas não deixo de achar incrível que, mesmo ninguém sendo machista ou racista nessa nossa sociedade tão linda, o resultado final é que as pessoas brasileiras do sexo feminino ou de pele mais escura sempre acabam se fudendo.

o baralho que herdamos já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. não basta que os jogadores beneficiados simplesmente não trapaceem – pois, mesmo assim, vão continuar magicamente ganhando todas as partidas.

é necessário trocar de baralho.

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roberto freire

ninguém escreveu sobre sexo e liberdade, amor e alegria, como roberto freire. ele é meu mestre e um dos grandes inspiradores das prisões. abaixo, os trechos que mais me marcaram de suas obras mais libertárias.

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 desem tesão não há solução(1987):

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a felicidade é uma prisão:

“algumas das principais características da alma burguesa no regime capitalista são seus desejos, seus sonhos e suas promessas de felicidade. … em todos os sistemas políticos autoritários sempre se foi buscar a promessa de felicidade como algo a compensar aqueles que, pelas injustiças e violências desses próprios regimes, são obrigados a viver na miséria, na fome, no sofrimento físico e moral. …

em nossa forma de organização política, fica para mim evidente que a felicidade pessoal é produto direto e inevitável da infelicidade social. e mais: parafraseando proudhon, estou seguro de que assim como a propriedade, toda felicidade pessoal é também um roubo. …

existem pessoas cujo desejo de ser feliz as torna insensíveis e indiferentes à infelicidade geral que o acúmulo excessivo de dinheiro nas suas mãos está produzindo. …

o amor tem se demonstrado, através dos séculos e em todos os regimes políticos autoritários, tão impotente quanto incompetente para realizar os sonhos de felicidade da maioria das pessoas. …

esse tipo de prazer [o prazer consumista e possessivo dos poderosos] pode ser realmente considerado felicidade? refiro-me à felicidade fruto da compra pura e simples, da apropriação indébita e da expropriação autorizada e impune, como aquela do ladrão que rouba de ladrão. …

a grande decepção dos amantes que buscam a felicidade (estado de prazer permanente, institucionalizado) através do amor é produzida pela sua incapacidade em aceitar que, como todas as coisas vivas, o amor também tem um começo, um meio e um fim. …

a felicidade [é] algo impossível de se atingir sem a deformação biológica e psicológica do ser humano e, mesmo quando isso é realizado, não se trata de prazer saudável e libertário o que se conseguiu, mas, exatamente, a sua contrafação: o poder autoritário e patológico. logo, definitivamente, a felicidade é uma coisa impossível de ser alcançada. em verdade, acho que ela não existe e nem é, sequer, necessária. penso mesmo que sua ideologia deve ser fortemente combatida tanto como estratégia política ou como delírio religioso e patológico, produzidos ora pela fome e ora pelo desespero, tanto pela miséria quanto pela carência amorosa, mas sempre, em quaisquer situações, manipulados pela paranóia autoritária do poder.

afirmo que o sonho capitalista burguês de felicidade deve ser combatido de forma constante e efetiva, seja no plano político ou no plano psicológico, porque a sua ideologia nasce de pessoas incapacitadas para qualquer tipo de opção livre e que já se submeteram, voluntária ou involuntariamente, a uma vida de incompetência e de impotência orgástica vital. assim, a esperança de vir um dia a ser feliz transforma-se, para eles, numa espécie de droga que os torna dependentes.”

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a tirania da família tradicional:

“todas as atitudes das mães burguesas, as duplas linguagens, são todas justificadas como amor, quando na verdade são castradoras e repressoras. conheço casos de pais que batiam nos filhos dizendo que faziam isso para evitar que os filhos apanhassem da polícia. então a família, como a vejo atualmente, nada mais faz que formar pessoas para um mundo autoritário, onde o poder se apresenta das mais variadas formas dentro das mais diversas instituições. …

a família existe não só para garantir a reprodução da sociedade burguesa através da difusão do autoritarismo, mas também para manter funcionando — e como correia de transmissão e de suporte do capitalismo — a propriedade privada. o papel da família é tão forte neste sentido que seus membros acabam por se julgar proprietários uns dos outros. adquire-se o mesmo medo compulsivo de perder o outro, menos pela necessidade do amor e mais pela ‘tranqüilidade psicológica’ que ser proprietário (ou propriedade) nos dá. …

é que nessas relações de poder instaladas na família é que nascem os sintomas neuróticos. se queremos tratar a pessoa precisamos fazê-la consciente de que isto teve origem naquela luta de poder, no autoritarismo familiar. a pedagogia realizada via autoritarismo ou então a pedagogia feita via chantagem afetiva. esse tipo de atividade familiar gera a doença mental. quando fazemos a terapia não tentamos curar a pessoa daqueles mecanismos repressores da infância que não têm mais jeito, pois ficam marcados indelevelmente em suas vidas. vamos tratar o que a pessoa aprendeu de autoritarismo tipo família burguesa, porque ela vai produzir uma família igualzinha.”

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estamos acostumados a viver de migalhas de amor:

“amor e liberdade são duas necessidades semelhantes e paralelas, uma não vai sem a outra. assim, na sociedade burguesa e capitalista ninguém viverá o amor inteiro e completo, simplesmente porque nela ninguém vive o mínimo de liberdade que permitiria isso. tragicamente, o ser humano se habituou a viver migalhas do amor, porque na sociedade capitalista há uma regra infalível: quem ama não fica rico.”

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essas pessoas doentes que vivem as vidas que lhes mandaram viver:

“eu sou terapeuta e posso dizer que 80% dos meus clientes têm problemas psicológicos por não estarem fazendo o que gostariam de fazer. as pessoas fazem, convencidas pelas suas famílias, o que o meio social prefere; isto de fazer o que é imposto provoca nessas pessoas um grande sofrimento, que muitas vezes estoura fora do trabalho, estoura em sexo, em agressividade, em equilíbrio mental. observando estes casos você vai ver como a forma de vida dessas pessoas é imprópria para elas. numa sociedade como a nossa, com esta família autoritária e cumpridora das normas do estado, as pessoas sensíveis, cujo projeto de vida não está dentro do que espera o meio social, sofrerão muita repressão; e esta é uma repressão muito danosa, pois é castrativa. uma pessoa que não faz o que precisa fazer, tende a adoecer, perde, no mínimo, a identidade e o auto-respeito.”

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essas pessoas loucas que fazem o que querem fazer:

“[a pessoa que faz o que quer fazer] vai enfrentar uma luta duríssima, pela qual a maioria das pessoas é derrotada. porque se por um lado ela faz o que a família e o estado querem, será um castrado. se, por outro lado, vai lutar e fazer o que quer, se sentirá marginal. ela passará por imensos sacrifícios de vida e vai acontecer aquela coisa dolorosa e triste que a gente vê com muitos artistas e intelectuais no país, que é viver à margem e impotente. agora, se a pessoa consegue superar este vínculo psicológico e consegue não desperdiçar muita energia neste vínculo e jogar tudo naquilo que tem de original e único, eu posso afirmar com convicção que ela se torna absolutamente vitoriosa no meio, e o sistema passa a necessitar dela. só que nem todas as pessoas, por comodismo, estão dispostas a esta luta. eu acho que isso não se restringe à profissão. eu também estou falando de liberdade. uma pessoa que não sabe lutar pela sua liberdade de ser ou pela sua forma de amar, jamais vai poder lutar em sua profissão. a primeira coisa que eu recomendo a um jovem é ser marginal. é ser neurótico. nunca a fazer terapia. eu sou um terapeuta que não recomenda a terapia pra ninguém. enlouquecer é muito melhor que sobreviver a qualquer custo. só há dois tipos de loucura: a loucura branca (que é a luta) e a loucura negra (que é a entrega). qualquer um que esteja lutando e querendo as suas coisas passa por louco. mas esta loucura eu acho sadia. eu só faço terapia com a loucura negra. pego as pessoas que estão se entregando e tento trazê-las para a luta de novo. quanto ao louco branco, eu quero mais é que ele faça terapia em mim, que me ensine a lutar desse jeito. … você tem de se empenhar, você tem de lutar muito. é preciso muita coragem para viver só de nossa originalidade. o tesão e a energia para essa luta vêm da ideologia do prazer.”

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sobre os perigos de tornar-se livre:

“falo para a pessoa que sua terapia é perigosa e explico o porquê. porque você vai desenvolver nessa pessoa atitudes revolucionárias, antiburguesas. então ela realmente vai ter de passar por perigos maiores. ela poderá provavelmente ter de romper com laços que são antigos. terá que refazer a vida familiar, rever seu casamento e seu amor para ver se não é repressivo, ver o que há de autoritário nessas relações. tudo isso é feito com dor, não só na gente, mas nas outras pessoas que estão acostumadas ao relacionamento anterior e vão sofrer com as mudanças. então a gente precisa ter muito peito para levar isso adiante. quando chega ao fim é maravilhoso, porque essas pessoas começam a se libertar, a produzir, e fica visível a utilidade da terapia.”

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para terminar, viver é arriscado:

“não busco segurança, eu busco o risco, é arriscando que encontro prazer na vida.”

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de ame e dê vexame (1990):

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declaração do amante anarquista:

“porque eu te amo, tu não precisas de mim. porque tu me amas, eu não preciso de ti. no amor, jamais nos deixamos completar. somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.”

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essas tais pessoas que nos completam:

“em minha inocência e ignorância, eu atribuía a algumas pessoas o poder de liberar, produzir, fazer exercer-se e se comunicar o amor em mim e de mim. esse amor pertencia, pois, exclusivamente a essas pessoas, ficando eu delas dependente para sempre. se, por alguma razão, me deixassem ou não quisessem mais produzi-lo em mim, eu secava de amor e — o que é pior — ficava em seu lugar, na pessoa e no corpo, uma sangrenta ferida, como a de uma amputação, que não cicatrizaria jamais.”

* * *

os obstáculos ao amor livre são externos, não internos:

“o ciúme, sentimento natural nas relações amorosas, transformou-se em instrumento do poder a partir do momento em que o homem passou a se sentir proprietário da terra, do que ela produz, dos animais e, depois, dos outros homens. …

a dificuldade para a realização plena do amor entre as pessoas não é um problema do amor em si, mas do ambiente social, dos preconceitos, do moralismo laico ou religioso, do autoritarismo, da luta de classes, dos interesses econômicos e políticos. …

quando o amor acaba por ele mesmo, quando existe incompatibilidade entre as personalidades dos amantes, suas reações à perda não chegam nunca ao desespero trágico dos desfechos produzidos de fora para dentro, do social para o pessoal, do desamor geral contra o amor possível. …

numa sociedade autoritária como a nossa, sermos o que somos, deixarmos o nosso amor ser o que ele é sem dúvida alguma é a coisa mais difícil de se realizar. por outro lado, é a mais emocionante também porque, uma vez vencida a barreira neurótica de origem política, passamos a nadar a favor da correnteza da vida e do amor.”

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nossos instintos são contrários à educação repressora e possessiva que recebemos:

“parece ser muito difícil e arriscado para os jovens conciliar seus impulsos e desejos libertários com a realidade dos resíduos da formação burguesa em si mesmos e nos parceiros. esses resíduos, estimulado pelo ambiente social, opõem-se radicalmente aos impulsos e desejos libertários, parecendo aos jovens impulsos e desejos também naturais quando, na verdade, não passam de deformações de caráter incutidas pela educação autoritária e capitalista que receberam e que estimula neles o desejo de poder e só lhes dá segurança na apropriação, na dominação, tanto no plano material quanto no afetivo. … a gravidade e a seriedade do amor burguês apenas escondem o objetivo de transformá-lo em instrumento de poder.”

* * *

o verdadeiro amor não é egoísta:

“quando se ama, não se está pensando em segurança, duração, controle, posse, pois isso corresponde à forma com que o autoritarismo capitalista familiar ou de estado se expressa no plano pessoal e afetivo. se sou um libertário, desejo que tanto eu quanto o meu parceiro vivamos o amor em liberdade, na emoção, no espaço e no tempo.”

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saber respeitar a liberdade da outra pessoa:

“para mim essa é a maior descoberta: quando o parceiro desiste de nos seguir nessa viagem, por medo dos riscos ou porque descobriu melhores companheiros para viajar, aprendi a aceitar, embora de início a contragosto, o seu direito a essa liberdade (como a desejo igualmente para mim).”

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a dor da perda é parte da vida:

“a dor pela perda de alguém que se ama … é um tipo de dor perfeitamente suportável e superável, porque é apenas dor de perda, coisa a que temos de nos habituar estando sujeitos permanente e impotentemente ao jogo limpo, porque natural, entre a vida e a morte. porém, quando se sabe que o jogo não foi limpo, mesmo aquele entre a vida e a morte (perda de alguém que se ama por acidente ou crime), é algo quase insuportável e, às vezes, insuperável.”

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não é vergonha amar de forma diferente:

“descobri … não ser vergonha nem humilhação alguma não viver de forma machista, não querer morrer de amor e nem precisar enlouquecer e matar meu objeto de amor de tanto ciúme. finalmente, me sentia capaz de sofrer toda a dor possível no amor sem envolver a morte nisso. estava, assim, podendo sentir a dor do ciúme sem precisar perder a razão nem destruir a mim e aos outros. enfim, eu já estava preparado para me defender dos riscos de aprisionar o amor, e não dos riscos do próprio amor. …

agora, felizmente, acredito estar podendo sentir meu ciúme à vontade, sem tirar a liberdade de ninguém, porque desejo ter essa liberdade de gozar e de sofrer o meu amor como bem entender ou precisar. o mais difícil, e é só isso que me faz falta aprender antes que seja tarde demais, é guardar só para mim a dor do ciúme e não utilizá-la como instrumento para ferir e chantagear quem, no exercício pleno de sua liberdade, preferiu, ao meu, outro tipo de amor.”

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essas pessoas de bem, de caráter, coerentes…

“fritz perls tem uma frase de que gosto muito: “deus me livre das pessoas de caráter.” é que as pessoas de caráter são únicas, não mudam, não evoluem, têm obsessão pela coerência. e a vida não é assim. na vida você tem de aparentar muita incoerência para poder viver todos os seus lados. eu me sinto uma incoerência só, hoje em dia. e assim vivo muitas experiências, amo de mil maneiras mil pessoas, e sigo o que a natureza me impõe.”

* * *

queremos a liberdade de poder experimentar todas as formas de amor:

“a natureza nos deu toda uma gama de possibilidades de exercer o amor que vai da genitalidade à espiritualidade. é muito bom poder viver toda essa gama de possibilidades amorosas com toda a gama de possibilidades de pessoas que vamos encontrando por aí…”

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amor livre e responsabilidade:

“cada um tem o direito de usar o seu corpo da maneira que lhe der mais prazer e poder atender assim a seus impulsos naturais. importa é que todos os atos humanos sejam de inteira responsabilidade de quem os pratica.”

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medo, vergonha e sacrifício:

“o anarquista somático não se sacrifica por nada e por ninguém, simplesmente porque nada ou ninguém precisa disso. todo sacrifício é feito com segunda intenção, é um pacto de mediocridade, algo que se cobra com juros bem altos. logo, a ideologia do sacrifício é fruto do autoritarismo. …

não há nada mais incômodo, desagradável e perturbador para uma sociedade autoritária, e sob a ideologia do sacrifício, do que um homem alegre. a alegria é uma agressão e ofende porque provoca inveja e rompe pactos de mediocridade. o homem saudável é revolucionário e alegre. a beleza pode ser, ao mesmo tempo, raiz e fruto do prazer. só o prazer nos dá (com o contraponto da dor) o sabor da vida. …

“[o] pacto de mediocridade: não serei sincero com você; em paga, não seja sincero comigo, assim encobriremos nossas verdades e o fracasso da relação não será atribuído a ninguém. enfim, um jogo medíocre, doente, neurótico, nivelando as pessoas por baixo e boicotando a dinâmica e a liberdade no amor. …

o medo é o contrário do orgasmo. sem vexame não há tesão. sem tesão não há solução.”

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para terminar:

“ser livre é muito mais difícil do que alcançar o prazer sexual.”

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obrigado, roberto. por essas palavras.

obrigado, vanessa, amiga e amante querida, por ter me apresentado a roberto freire, entre beijos e orgasmos, em 2002.

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do balé ao funk, entre nazistas e aiatolás

faz cem anos da primeira apresentação do balé sagração da primavera em paris. com música de stravinski e coreografia de nijinski. um dos eventos que inauguram o século vinte nas artes. houve brigas na platéia. testemunhas dizem que nem se conseguia ouvir a música. talvez o ponto alto da história do balé, em uma época na qual balé ainda conseguia causar escândalo.

nos nossos dias, balé virou sinônimo de balé clássico. palavra odiosa essa. clássico. clássico nada mais é que um outro nome para algo morto e estático, que não cresce e que não muda, que imita um passado longínquo sem conseguir nem alcançá-lo, nem criar algo diferente. uma diversão segura e refinada para burgueses bem-alimentados aumentarem seu capital cultural — ao mesmo tempo em que apoiam a decisão da polícia militar de proibir os bailes funk nas comunidades pacificadas.

no ocidente de hoje, beethoven pode até ter virado música de elevador, mas suas obras ainda são proibidas no irã. claramente, os aiatolás vêem uma força transgressora em beethoven que já não enxergamos.

talvez apenas entendam mais de arte do que nós.

nijinski

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essa noite, vou assistir sagração da primavera no teatro municipal. tentando ter em mente todo o seu potencial escandaloso. tentando vê-lo pelos olhos de quem formou sua consciência artística no século xix. tentando vê-lo como meus amigos hoje veem o funk.

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um dos mais brilhantes livros de história que já li: “a sagração da primavera: a grande guerra e o nascimento da era moderna“, do historiador canadense modris eksteins.

começando com a primeira apresentação de sagração da primavera em 1913, passando pelo trauma da primeira guerra mundial, e culminando na ascensão do nazismo, eksteins traça a criação da nossa consciência artística moderna.

para eksteins, o nazismo é antes de mais nada um movimento artístico. e tudo começa com a sagração da primavera e nijinski dançando ao som de stravinski.

a genialidade da obra está na maneira como eksteins faz essa ponte.

recomendo.

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o único dedo que aponto é para mim mesmo

quando critico o narcissismo e proponho exercícios de empatia, não é porque me considero um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado e agora está pontificando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.

pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma pessoa rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa.

o único dedo que aponto é para o meu próprio reflexo no espelho. sempre.

meus textos são, antes de tudo, para mim mesmo. uma desesperada tentativa de finalmente me tornar a pessoa que quero ser.

entretanto, se a carapuça que escrevi para mim também servir em você, melhor ainda. quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?

não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso.

sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.

mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre.

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Uma pessoa boa

A distração que me faz esquecer não é o que me justifica: é o que me condena.

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a ambição dos escravos

O que é pior: a ambição dos escravos ou a falta de ambição dos escravos?

Palavras da Condessa de Merlin, uma nobre escravocrata cubana, escritas em 1841.

Reparem como ela passa de condenar a preguiça e falta de ambição dos negros (e por isso devem ser escravizados) para logo em seguida condená-los pela suposta ambição que demonstrariam assim que libertos (e por isso devem continuar escravizados).

“Suponhamos que os ingleses consigam obter, sem transtornos e sem desordens, a emancipação dos escravos de nossas colônias. Seu primeiro sentimento, sua primeira necessidade, qual será? Não fazer nada. O trabalho lhes é insuportável e só se consegue obrigá-los a trabalhar a força. Um negro indolente e selvagem, desprovido de todo desejo de progresso, de ambição, de dever, preferirá substituir sua vida vagabunda e sensual pelos rigores de um trabalho voluntário e de um sustento adquirido com o suor de sua testa? Mas suponhamos que, por um milagre, a educação moral dos escravos libertados se desenvolvesse de repente e os trouxesse a amar o trabalho. [Adoro esse “trouxesse”: a Condessa de Merlin nunca trabalhou um dia sequer em sua vida.] Caso se convertessem em trabalhadores, os negros não demorariam em se ver atormentados pelo desejo de ser proprietários; pela rivalidade, pela ambição, pela inveja contra os brancos e suas prorrogativas. Sob um regime político constitucional, em um país governado por leis equitativas, não exigiriam participar destas mesmas instituições? E vocês lhes concederiam os seus mesmo direitos e os seus mesmos privilégios? Fariam deles os seus juizes, os seus generais, os seus ministros? Dariam-lhes suas filhas em matrimônio? Não é isso que queremos, exclamarão os amigos dos negros: que sejam livres, mas que se limitem a trabalhar a terra e a conduzir a cana como bestas de carga. Não consentirão: se hoje ocupam-se dessas atividades e consideram-se felizes em seu estado imperfeito de homens selvagens, no dia em que se acenda para eles a luz da inteligência perceberão que são homens como vocês, e o campo de batalha ficará com o mais forte. Reflitam: quando estalar o primeiro sinal de combate, não haverá piedade possível entre duas raças incompatíveis.”

O discurso da Condessa tem o grande mérito de desmascarar a hipocrisia dos abolicionistas, esses brancos bondosos que queriam a liberdade dos negros mas que sinceramente não podiam nem conceber um juiz negro ou, pior, muito pior, um genro.

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zen

zazen

assim que assumo a posição de meia-lótus, cruzo as pernas e pouso as mãos em frente ao umbigo, é nessa hora que meu nariz coça.

primeiro, vem a negação, imediatamente seguida pela revolta. caralho, não acredito que meu nariz escolheu coçar justo agora. putaqueopariu.

quanto mais tento esvaziar a mente, mais a coceira aumenta. em breve, a coceira está do tamanho do mundo. a coceira é maior do que eu, do que a vida, do que kafka, do que o sol, do que a vacuidade, dp que a morte.

a coceira é o universo. ali. na ponta do meu nariz.

mas não posso me mexer.

aí, vem a barganha.

que besteira!, penso. ninguém vai me ver. estão todos sentados, voltados pra parede, concentrados na prática. e, afinal, o que tem de mais coçar o nariz? o nariz não está coçando mesmo? não sou livre? não estou no templo praticando zen por vontade própria? não posso me levantar e ir embora a qualquer momento? por que não poderia coçar o nariz?

mas não. vai fazer barulho. o cotovelo vai estalar. o tecido da minha roupa vai farfalhar. naquele silêncio absoluto, esses sons seriam quase ensurdecedores.

então, a coceira some.

como tudo no universo, como nossas vidas, como as árvores, como o próprio sol, a coceira também passa.

porque se eu sinto coceira e não preciso coçar, então eu posso sentir fome e não preciso comer. posso sentir cansaço e não preciso sentar. posso sentir ira e não preciso gritar. posso sentir desprezo e não preciso humilhar.

porque a fome, o cansaço, a ira, o desprezo também passam.

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fogo na palha

a agressividade na comunicação é contagiosa. ela se espalha de uma pessoa para a outra como fogo na palha. quase sempre, não temos como controlar a agressividade da outra pessoa. mas podemos sempre não devolvê-la e nem passá-la adiante. uma caneca de cada vez.

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a holandesa que pintava sorrisos

"the jolly troper" (1629) de judith leyster

sobre o quadro acima, “jolly troper” (1629), e os sorrisos na pintura:

This last painting — this plump, gregarious man — it struck me. It looks like a bad Photoshop job. It looks like a botched anachronism. The man’s tunic, hat and vessel look early modern, but his face looks like a caricature from the 20th century. I half-expected him to be some 1940s character actor, a face grafted onto a 1620s body.I think it has to do with his smile. You don’t see smiles like that in portraits. … But I’m not used to seeing smiling subjects set in the past to be, truly, envoys from and creations of the past. Without ever planning it, smiles became little historical wayfinding aids: A big, happy, drunk dude like this, his face like a stylized photograph, has to be post-1900. (fonte)

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sobre a vida e os quadros de judith leyster:

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depois de casar e ter filhos, a pintora de pessoas felizes não pintou mais.

como tantas outras mulheres talentosas ao longo da história, judith não tinha (na expressão de virginia woolf) “um teto só para si”.

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um beijo em você, judith.