Pergunta de uma das participante do curso Introdução à Grande Conversa:
“Os gregos conheciam mesmo todas essas pessoas citadas na Ilíada?”
Todas nós conhecemos nome, biografia, breve descrição, etc, de uma quantidade assustadora de pessoas, seres, bichos, personagens, reais e mitológicos. Na nossa fala cotidiana, fazemos referência a Napoleão, Ana Maria Braga, Saci Perere, Odete Roitman, Homem Aranha, Zé Colméia, etc, sempre sem se preocupar em explicar e contextualizar quem é, já confiando que a outra pessoa também sabe.
Sim, para nós, no século XXI, muitos desses nomes citados na Ilíada são estranhos e nos remetem continuamente ao Dicionário de Mitologia.
Mas eram tão familiares aos gregos, e precisavam de tão pouca introdução, quanto Mussolini, Homem de Ferro, Ross & Rachel, Curupira, Carla Perez, Peter Pan, etc, para nós.
(Na verdade, é provável que, como viviam em um mundo menos complexo que o nosso, que guardassem muito menos nomes em suas cabeças que nós.)
Toda autora, quando escreve, não se preocupa em explicar e explicitar cada referência: ela confia que seu público tem as mesmas referências que ela. Entretanto, com o passar dos anos, essas referências mudam, algumas somem, e é justamente por isso que precisamos de boas edições críticas e anotadas para ler obras antigas. Uma boa edição não explica aquilo que a autora escolheu deixar misterioso ou indefinido, mas sim aquilo que seria óbvio e autoevidente para a leitora contemporânea, mas não mais para nós.
Quando Machado de Assis (que morava aqui no meu bairro e viveu praticamente ontem, comparado à Ilíada) compara o amor de um casal de personagens ao amor de Paulo e Virgínia, ele não precisa dizer mais nada, pois o romance Paulo e Virgínia foi um dos maiores best-sellers no Brasil do século XIX, todo mundo conhecia a história. Hoje, quando esse romance já foi completamente esquecido, uma leitora não tem como entender o quanto a comparação é funesta: Virgínia morre em um naufrágio diante dos olhos de Paulo, incapaz de salvá-la.
(Um escritor contemporâneo talvez dissesse “um amor de Jack e Rose“, uma comparação que, quem sabe, precisará de nota de rodapé para ser entendida pelas leitoras do século XXIII.)
Uma boa regra geral, que vale para a Ilíada e para praticamente qualquer outra obra, é a seguinte: os personagens que a autora se preocupa em apresentar são ou aqueles que ela inventou ou que presume que público não conhece. Aqueles aos quais se refere sem maiores explicações ela provavelmente presume que são familiares.
Os nomes citados na Ilíada basicamente podem ser divididos em três grupos:
Personagens menores:
Muitos desses personagens que surgem somente para morrer nunca mais são citados em nenhuma outra literatura grega. Não sabemos se foram inventados somente para adicionar pateticidade ou profundidade às suas mortes, ou se eram personagens conhecidos e somente perdemos os outros textos onde eram mencionados. (A primeira hipótese é bem mais provável.)
Personagens maiores:
Todos os personagens mais importantes da Ilíada, assim como das tragédias gregas, já eram figuras conhecidas pelo público: Aquiles, Agamemnon, Menelau, Odisseu, etc, etc.
(Não como figuras mitológicas, pois não havia esse conceito de “mitologia”: embora houvesse céticos, a maioria dos gregos da época clássica, até mesmo escritores importantes como Heródoto, falam desses heróis como nós hoje falamos de Napoleão, ou seja, como figuras reais de seu passado.)
A diferença entre as obras está no tratamento que dão a esses personagens: na Ilíada, por exemplo, Agamemnon é um personagem muito mais simpático do que na Orestéia; a Ilíada também nunca menciona que ele sacrificou sua filha pela guerra, etc.
Assim como o Batman do Frank Miller e do Christopher Nolan são bastante diferentes entre si, mas reconhecíveis como o mesmo personagem, também o Agamemon de Homero e de Ésquilo.
(Aliás, nosso conhecimento é tão limitado que nem mesmo sabemos, por exemplo, se a Ilíada escolhe não mencionar a invulnerabilidade de Aquiles, fazendo a opção de retratá-lo de forma mais humana, ou se essa invulnerabilidade foi uma invenção ou acréscimo da tradição posterior, à qual Homero nunca teve acesso.
Personagens alterados:
No Canto 9, talvez o ponto alto da Ilíada, Fênix conta à Aquiles a história de Meleagro. Mas a Ilíada propositalmente altera a história para fazer Meleagro muito mais parecido com Aquiles do que era em todas as outras fontes, ao ponto de inventar pra ele uma esposa “Cleopatra” que era quase anagrama de “Pátroclo”: assim como Meleagro amava Cleopatra, Aquiles ama Pátroclo.
Nesse caso, sabemos, ou presumimos, que a Ilíada alterou propositalmente a tradição porque seria muita coincidência todas as alterações serem no sentido de aproximar Meleagro de Aquiles, de acordo com os interesses retóricos de Fênix.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Gregos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Todas as pessoas da Ilíada é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 15 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/pessoas-da-iliada // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato