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aforismos (XXXIV)

cabe a cada um segurar sua própria onda.

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retroalimentação

quanto mais eu escrevia sobre privilégio e desigualdade racial, mais débora fazia questão de soltar os piores comentários racistas e elitistas – ao mesmo tempo em que colocava a mão em minha virilha, para sentir meu pau subindo por entre seus dedos só de ouvir suas palavras.

quanto mais eu me envolvia nesses temas politizados, mais eu considerava seus comentários especialmente cruéis e desalmados

quanto mais seus comentários me pareciam perversos, com mais tesão eu ficava de ouvi-la falar tamanhas malvadezas.

quanto mais tesão eu tinha em ouvir suas maldades, mais débora se empolgava em falar coisas cada vez mais cruéis e egoístas, muito piores do que falaria normalmente.

as mães do bairro estavam todas certas: eu sou mesmo uma péssima influência.

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872 maneiras de emascular seu homem

manhã de sábado. linda mulher dormindo na minha cama. eu a acordo com um beijo. ela sente meu bafo de listerine e debocha:

“alex, em qual número da revista nova você aprendeu esse truque de levantar antes do outro e escovar os dentes?”

é duro ser a mulher da relação.

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you probably think this song is about you

se você lê alguma coisa e pensa que é com você, pode ser que esteja certo, pode ser que esteja errado.

mas, com certeza, estará sendo ridículo.

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aforismos (XLI)

estar cercado de pessoas que me admiram é o que me força a me tornar essa pessoa que admiram.

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confiamos na sua apatia

confiamos na sua apatia
confiamos na sua apatia
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termo técnico

a gente se diz romancista, nos chamam de escritor, às vezes até jornalista, mas isso é tudo jargão, palavras bonitas pra pôr no currículo.

na calada da noite, diante do espelho, sem ninguém por perto, precisamos ter coragem de admitir (ao menos para nós mesmos!) quem realmente somos:

uns belos duns fofoqueiros.

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zen

poesia zen

Alguns poemas que fui encontrando em minhas leituras. A versão para o português é minha, a não ser quando assinalado. Naturalmente, não é uma tradução, pois não falo nem chinês nem japonês. Conheci esses poemas em inglês e espanhol, em diferentes versões, às vezes muito distintas umas das outras, e, do alto da minha ignorância, meu instinto de escritor me levou a ficar futucando, melhorando, brincando, ouvindo seu ritmo interno. Minhas versões, abaixo, com certeza já não tem mais nada a ver com os originais, mas significam muito pra mim. E me ajudam.

* * *

Debaixo dos pés, o céu; por cima da cabeça, o chão.
Não existe nem dentro, nem fora, nem meio.
Uma pessoa sem pernas caminha.
Uma pessoa sem olhos enxerga.
A montanha do norte se mantem em silêncio,
Voltada para a montanha do sul.

Hanshan // China, século IX // verbete na Wikipédia

* * *

Não há necessidade de atacar os erros dos outros
Não há necessidade de ostentar suas próprias virtudes
Aja quando for reconhecido
Retire-se quando for ignorado
Grandes recompensas querem dizer grandes provas
Palavras profundas se encontram com mentes superficiais
Pense no que ouviu
As crianças devem ver por si mesmas

Hanshan // China, século IX // tradução de Marcos Beltrão

* * *

Comemos, cagamos, dormimos, acordamos.
Esse é nosso mundo.
Só o que temos que fazer depois
É morrer.

Ikkyu // Japão, 1394-1491 // verbete na Wikipédia

* * *

A sombra do bambu varre as escadas,
Mas o pó não se levanta.
O luar penetra as profundezas do lago,
Mas não deixa traços na água.

autor desconhecido

* * *

Eles se revoltam, eu fico imóvel.
Desejos me atiçam, eu fico imóvel.
Ensinam os sábios, eu fico imóvel.
Só me movo por conta própria.

Lu Yu // China, 1131-1162 // verbete na Wikipédia

* * *

Budas despedaçados.
Espada sempre afiada.
Onde a roda gira,
O vazio range os dentes.

Shûhõ Myõchõ, mestre Daitõ Kokushi // Japão, 1282-1337 // Segundo a lenda, esse mestre passou seus últimos anos meditando na posição de lótus por ter uma das pernas aleijadas. Sentindo a morte chegar, ele quebrou a perna com as próprias mãos, assumiu a posição de lótus, escreveu as linhas acima e morreu ao desenhar o último pictograma. // fonte: Manual de Zen Budismo, de D.T.Suzuki

* * *

velha lagoa
o sapo salta
o som da água

Bashô // Japão, 1644-1694 // verbete na Wikipédia // tradução de Paulo Leminski

* * *

A cigarra. Ouve.
Nada em seu canto revela
Que está pra morrer.

Bashô // Japão, 1644-1694 // verbete na Wikipédia

* * *

De mãos vazias, seguro a pá.
Ando a pé, montado no touro.
Cruzo a ponte, e ela flui,
Mas a água não.

Bodisatva Fudaishi // também conhecido por Jinie, Fu Ta-shih, Shan-hui // fonte: Introdução ao Zen Budismo, de D.T.Suzuki

* * *

A morte existe,
Mas não há quem morra.

O sofrimento existe,
Mas não há quem sofra.

O feito existe,
Mas não há quem faça.

O nirvana existe,
Mas não há quem busque.

O caminho existe,
Mas não há quem siga.

Visuddhimagga, ou Caminho da Purificação, cap.16 // na Wikipédia

* * *

Se você tiver um cajado,
Eu lhe darei um cajado.
Se você não tiver um cajado,
Eu lhe tomarei seu cajado.

Mumonkan, ou A Porta sem Porta, koan 44 // na Wikipédia // O Mumonkan (não sei qual é ou se existe um nome consagrado em português) já entrou na seleta lista dos três livros mais importantes da minha vida. Os outros dois são A Bíblia e Declínio e Queda do Império Romano. Todos os outros estão muito abaixo.

* * *

Trinta raios convergem para o meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.
Molda-se o barro para fazer um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.
Fazem-se portas e janelas para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.

Por isso, a vantagem do que está lá
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está.

Tao Te Ching, capítulo 11 // escrito por Lao Zi // China, século VI AEC // naWikipédia // tradução de Waldéa Barcelos

* * *

Para atingir um determinado objetivo,
você precisa tornar-se um tipo de pessoa.

Uma vez que se torne essa pessoa,
O objetivo não vai mais parecer importante.

Dogen // Japão, 1200-1253 // verbete na Wikipédia

Para aprender a morrer,
observe as cerejeiras,
observe os crisântemos.

Anônimo // Japão, c.1700

* * *

Sem começo,
Sem fim,
A mente nasce,
Para lutas e dores,
e então morre.
O vazio é isso.

* * *

Como o orvalho efêmero,
a aparição súbita,
ou o lampejo fugaz do raio
– mal aparece, já sumiu –
assim somos todos nós.

* * *

A lua é uma casa
onde a mente é mestra.
Observe:
Só a impermanência dura.
Esse mundo também vai passar.

* * *

Ir só.
Vir só.
Tudo ilusão.
Lhe ensinarei
A não ir nem vir.

* * *

Queria oferecer
Algo pra você.
Mas no zen
Não temos.

Ikkyu // Japão, 1394-1491 // verbete na Wikipédia

* * *

Abandone toda fala.
Nossas palavras expressam
mas não seguram.
Letras não deixam rastros,
mas revelam o ensinamento.

Dogen // Japão, 1200-1253 // verbete na Wikipédia

* * *

Na estrada para Tien-tai

Cercado por dez mil montanhas,
Bloqueado, sem ter para onde ir…

Até chegar aqui,
não há como chegar aqui.
Uma vez aqui,
não há para onde ir.

Yuan Mei // China, 1716-1798

* * *

No portão de pedra, há neve, e nenhum traço da jornada.
A neblina do vale dos pinheiros é cheia de fragrâncias.
Pássaros frios caem sobre as migalhas de nossa refeição no pátio.
Um robe rasgado balança nos galhos da árvore. O velho monge está morto.

Wei Ying-Wu // China, 736-830

* * *

Os pássaros sumiram do céu.
Agora a última nuvem se escoa.
Sentamos juntos, a montanha e eu,
Até que resta apenas a montanha.

Li Po // China, 701-762

Aqui existe o vazio

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aceitar o diferente

os conservadores falam muito sobre não querer ter que explicar a homossexualidade às crianças.

meus amigos liberais parece que não entendem esse comentário, pois respondem argumentando que as crianças aceitam muito bem a homossexualidade.

mas será que não vêem que é justamente isso que assusta os conservadores?

o que assusta os conservadores não é a dificuldade de explicar a homossexualidade às crianças, mas a dificuldade de transmitir às crianças o horror que sentem pela homossexualidade.

o que assusta os conservadores é justamente o fato das crianças aceitarem o diferente.

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a alegria do reserva

eu e a Outra Significativa nos conhecemos numa quarta feira, no arpoador. naquele árabe novo ali do lado da centaurus. na rua onde morou fernando sabino.

ela estava no rio só de passagem e me contou seus planos de sair do nordeste e ir morar em são paulo, sabe como é, onde estão os trabalhos, as pessoas interessantes, a grana, essas coisas.

no domingo, depois de cinco dias de todo um intenso trabalho de sedução e sightseeing, ela voltou pra casa já decidida a vir morar no rio.

e veio.

* * *

vista do parque das ruínas.

ontem, no parque das ruínas, dia lindo de sol, vendo a noite chegar na enseada de botafogo lá embaixo, pensei:

coitado de mim! queria muito assumir todo o crédito por essa mudança de decisão, mas só poderia fazer isso se morasse em pirapora do mato dentro, né?

senão, é como ganhar a partida jogando no mesmo time do neymar e me iludir que a vitória foi minha.

mas não quero nem saber. jogo nesse time também. visto essa camisa com garra. fui a todos os treinos. estava lá no banco pronto pra entrar em campo.

vou celebrar a conquista do campeonato junto com os artilheiros e foda-se!

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rê bordosa

feriado de primeiro de maio, itaúcultural na avenida paulista. casal abraçadinho na exposição do angeli. toca o telefone em frente a um painel da rê bordosa, e ela atende. oi filhão. o ralador está na segunda gaveta. vai fazer pizza? ah, salada de cenoura? que legal. desliga, guarda o telefone e volta aos braços do homem.

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varrendo a piscina em frente à senzala

fazenda cachoeira grande, vassouras, rj.
fazenda cachoeira grande, vassouras, rj.
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Não Há Camelos Nessa Peça: Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues

Em 2007…

Semana que vem, estréia aqui em Nova Orleans uma montagem de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues. Não é sempre que se monta teatro brasileiro por essas bandas. Minha turma de português está lendo “O Beijo no Asfalto” e vou levá-los para ver “Vestido de Noiva” também – apesar do espetáculo ser em inglês, naturalmente. O diretor da peça me convidou para assistir aos ensaios e escrever o programa, apresentando a obra e o autor para um público que provavelmente nunca ouviu falar deles. Aqui vai:

There Are No Camels in This Play

There are no camels in the Koran, writes Jorge Luis Borges; this absence alone proves the authenticity of the Arabian book. Borges was pulling his readers legs, of course (there are several camels in the Koran!), but his point stands.

In “The Wedding Dress”, you will find none of the stereotypes you might (rightly or wrongly) associate with Brazil: there are no mulatas, slums, beaches, soccer, slavery, coffee or supermodels. Not even biofuel or Brazilian wax.

And, nevertheless, you are about to watch what is arguably the best Brazilian play of the twentieth century, written by its arguably best playwright. The double “arguably” is no accident: both Nelson Rodrigues and his ouvre are still being hotly debated as we speak.

Usually set in the conservative suburbs of mid-century Rio de Janeiro, most of his plays, novels and short-stories (one could almost say all) deal with his relentless idée fixe: adultery, sometimes accompanied by incest, bestiality, pedophilia, necrophilia and, of course, generous servings of murder.

Who was Nelson Rodrigues himself? The title of his most recent biography captures his many ambiguities and contradictions: “The Pornographic Angel”. In an artistic establishment almost unanimously liberal, he had the temerity of proclaiming himself a reactionary and supporting the right-wing military dictatorship. His artistic goal, or so he said, was to write moral plays denouncing the sins and vices of society.

But society, apparently, was not convinced. Nelson Rodrigues was considered to be an immoral pornographer, the greatest enemy of the Brazilian catholic family, an author who did his best to promote deviant, unacceptable sexual behavior. Despite his support of the regime and his well-connected friends in high places, his works were constantly censored and prosecuted.

The Nelson Rodrigues you are about to meet, however, is considerably younger and more well-behaved than his older self. He wrote “The Wedding Dress” in his late 20s and it was only his second play. There is adultery and murder, of course, but almost naively when compared to later works. Most of all, “The Wedding Dress” is his most avant-garde play: its revolutionary, complex structure is certainly not what most viewers would expect from Latin American drama of the 1940s.

The action takes place simultaneously in three planes: reality, memory and hallucination. We follow the main character Alaíde through her real life (being hit by a car and undergoing surgery), her past history (stealing her sister’s love interest and finding the diary of a known prostitute) and her disconnected, agonizing rambles as she fights for her life on the operating table.

The performance you are about to watch includes one important deviation from the original play: two actresses playing the role of Alaíde instead of just one. From the actor’s point of view, it breaks an almost impossible role into two: the original, “unified” Alaíde had to constantly change clothes and hop from one stage to another, making it both physically and mentally demanding. To the audience, most importantly, having two Alaídes allows them to interact and argue between themselves, heightening the dramatic potential of the play and, ultimately, improving it.

Nelson Rodrigues would probably have approved.

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teoria

a gente não ama quem quer.

a gente ama quem pode, quando dá, da maneira que é possível, apesar de nossas melhores intenções e mais elaboradas teorias.

e ainda lambe os beiços.

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notas de leitura

Perigoso perguntar pra mim o que estou lendo. É quase sempre muita coisa.

Estou sempre lendo alguma coisa sobre budismo. Atualmente, avanço devagar pelo novo de Dzongsar Jamyang Khyentse, Not for Happiness. É assunto que não domino, que tenho que ler com cuidado e concentração, mas fascinante. Confesso que sempre tive um certo pé atrás com essas pessoas que querem muito “ser felizes”. Selecionei alguns dos meus trechos preferidos do começo do livro. Um deles:

[I]f you are only concerned about feeling good, you are far better off having a full body massage … [D]harma is tailored specifically to turn your life upside down … [I]f you practise and your life fails to capsize, it is a sign that what you are doing is not working.

Estou desde final do ano passado lendo uma das obras-primas da língua portuguesa de todos os tempos, a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, o livro mais caro que já comprei na vida, edição caprichadíssima da Casa da Moeda de Portugal.

Uma obra gigantesca e cósmica, que nunca consegui acabar de ler e que sempre levo em minhas viagens. Fernão passou trinta anos peregrinando pela Ásia em meados do século XVI, no auge do poder marítimo português. Enquanto quase todos os outros autores escreveram sobre o lado oficial da conquista, Fernão deixou testemunho sobre a ralé que ia nos porões dos navios. Foi o primeiro homem branco a ver, registrar, testemunhar incontáveis países, povos, culturas, cerimônias asiáticas. Quase morreu várias vezes. Se salvava sempre por sua lábia e por suas mentiras, nunca pela força ou por proezas militares. É o nosso maior pícaro, precursor de Pedro Malasartes, malandro carioca antes mesmo de existir o Rio de Janeiro.

Como todo grande livro, a Peregrinação contem em si o seu próprio contra-discurso. Mendes Pinto aproveitava seus personagens estrangeiros para fazer críticas nada sutis ao projeto colonialista português. Eis um diálogo que ele põe na boca do Rei dos Tártaros e seus conselheiros, ao encontrar portugueses (e ocidentais!) pela primeira vez:

[E] bulindo três ou quatro vezes com a cabeça, [o Rei] disse para um homem velho que estava junto dele: “Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria, dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça.” A que o velho respondeu: “Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas, para adquirirem o que Deus lhes não deu; ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus pais.” (Cap.122)

Os duros e corajosos podem baixar e ler de graça a versão integral em português antigo, mas a Nova Fronteira acabou de lançar uma bela edição na ortografia brasileira atual. Para saber mais, dê uma olhada em alguns textos meus sobre o Mendes Pinto: uma sólida ficha corrida de decisões catastroficamente erradas, os mercadores de esterco da china & somos mesmo filhos dos portugueses.

Em termos de literatura nacional, o último livro que de fato terminei de ler, faz poucos dias, foi o lindíssimo Sonhei que a neve fervia, da minha querida amiga Fal Azevedo, lançado agora em maio e já devorado. A Fal parece um rockstar da literatura: a Livraria Prefácio, em Botafogo, estava praticamente interditada, teve fã esperando duas horas na fila. Já recomendei o livro para vários amigos e todos me ligam comovidos, agradecendo.

Sonhei que a neve fervia é um novo tipo de livro. Não é estritamente não-ficção, mas não tem nada de ficção. Depoimento? Documentário? Tico-tico no fubá? Só sei que é lindo.

A “história” é simples, tão simples como são as piores dores: em agosto de 2007, Fal perde seu marido, Alexandre, uma morte súbita e sem aviso. Sonhei que a neve fervia é a narrativa dos doze meses seguintes. Do processo de luto. Da tristeza. Da presença dos amigos. Do desespero. Da felicidade. Da volta.

Recomendo para qualquer um que já sofreu uma perda devastadora. E aproveito para indicar Drops da Fal, blog da autora.

Por fim, o que estou lendo mesmo, o que acabei de ler ontem a noite e li um pouco hoje de manhã, são livros sobre a guerra de Tróia. Estou relendo a Ilíada, uma das obras mais sensacionais da literatura mundial, o livro mais duro, mais violento, mais másculo de todos os tempos. E, enquanto vou prosseguindo na leitura, eu vou lendo ou relendo peças gregas relacionadas.

Ontem, por exemplo, li Filoctetes, de Sófocles e reli Ifigênia em Aulis, uma das minhas preferidas do meu dramatugo grego favorito, Euripides. São, também, duas peças duras, que não deixam pedra sobre pedra.

O personagem-título de Filoctetes é um herói grego que, no caminho para a Guerra de Tróia, é picado por uma serpente sagrada e fica com o pé pustulento e fedido, provocando dores atrozes que o fazem urrar de desespero. Incapazes de lidar com isso, os gregos gente-boa o abandonam numa ilha deserta e seguem para a guerra. Dez anos depois, um profeta revela que Tróia só cairá com a ajuda de Filoctetes. Agora então cabe a Ulisses, o sacana que decidiu abandonar o herói, e ao jovem Neoptólemo, o filho de Aquiles, a ingrata tarefa de convencer aquele homem amargo, abandonado por dez anos, a voltar com eles e ajudá-los em sua vitória.

Uma duríssima descrição de Filoctetes, em belíssima tradução de Gregory McNamee, de 1986, disponível pelo Projeto Gutenberg:

But I have seen or heard of no other man whom destiny treated with such enmity as it did Philoktetes, who killed no one, nor robbed, but lived justly, a fair man to all who treated him fairly, and who fell into evils he did not deserve. It amazes me that he, alone, listening to the rushing waves pounding on the shore, could cling to life when life brought him pain, and so many tears. He was crippled and had no one near him. He was made to suffer, and no one could ease his burden, answer his cries, mourn with him the savage, blood-poisoning illness that was devouring him. He had no neighbor to gather soft leaves to staunch the bleeding, hideous sore that ran, suppurating, maggoty, on his foot. He writhed and scrawled upon the hard ground, crying like a motherless child, to wherever he might find relief when the spirit-killing illness attacked him.

Ontem à noite, li também Ifigênia em Aulis, de Euripides, outra peça sobre o alto custo da Guerra de Tróia. Todos os exércitos da Grécia estão reunidos em Aulis, mas não conseguem nunca vento favorável para rumar em direção à Tróia. Até que um profeta (sempre esses malditos profetas!) revela que os deuses somente deixarão a frota partir se Agamenom, líder dos gregos, sacrificar sua filha Ifigênia. E agora? Vale a pena sacrificar a própria filha para ir travar uma guerra que, basicamente, é sobre um marido corneado? Por outro lado, todos os exércitos da Grécia já estão ali, concentrados, com sangue nos olhos, todos com séculos de desfeitas entre eles. Se a frota não partir logo, vão começar a se trucidar entre si, ou pior, vão trucidar Agamenom e sua família. E então? O que fazer?

Talvez a grande moral da Ilíada, e de todas as obras sobre a Guerra de Tróia, seja justamente essa: uma vez iniciado o ciclo da violência, jamais sabemos onde ele vai parar.

Do quarto canto da Ilíada, em tradução brasileira de Carlos Alberto Nunes (1962):

O Ódio semeava exicial pelo meio da turba guerreira
multiplicando por onde passava os gemidos dos homens.
Quando os imigos exércitos vieram num ponto a encontrar-se
lanças e escudos se chocam bem como a coragem dos homens
com armaduras de bronze; broquéis abaulados se chocam
uns contra os outros; estrépito enorme se eleva da pugna.
Dos vencedores os gritos de júbilo se ouvem e as queixas
dos que tombavam vencidos; de sangue se encharca o chão duro.
Como dois rios oriundos dum grande degelo dos montes
numa bacia somente o volume das águas despejam
para reuni-las depois nas entranhas do côncavo abismo
donde o barulho vai longe ao pastor que num monte se encontra:
tal era a grita e o trabalho dos dois combatentes exércitos.
Foi o primeiro a prostrar a um dos Troas guerreiros Antíloco
que na vanguarda a Equepolo matou de Talísio nascido.
Na crista do elmo ondulante certeira pancada lhe assesta
que fez o crânio partir-se-lhe entrando até ao cérebro a ponta
aénea da lança potente; cobriram-lhe as trevas os olhos.
Como se efunde uma torre tombou na batalha terrível.
No mesmo instante o puxou pelos pés Elefénor gerado
por Calcodonte magnânimo chefe dos fortes Abantes
para tirá-lo do alcance dos dardos e mais facilmente
o despojar da armadura; contudo a intenção foi fugaz
pois Agenor de alma nobre notou que ao querer debruçar-se
sobre o cadáver o escudo um dos flancos deixara visível:
fere-o com a ponta de bronze solvendo-lhe a força dos joelhos.
A alma o deixou; em redor ainda mais se incrementa a batalha
entre os guerreiros Troianos e os fortes Aqueus; como lobos
uns contra os outros se atiram travando-se luta corpórea.
O grande Ájax Telamónio feriu a Simoésio florente
o Antemiónio garboso que a mãe deu à luz junto à margem
do Simoente num dia em que fora com os pais ao Monte Ida
para ajudá-los no afã de vigiar os vistosos rebanhos.
Daí lhe chamaram Simoésio; aos pais não lhe foi pois possível
retribuir os cuidados na curta existência que teve
pois deveria cair sob a lança de Ájax de alma grande.
Quando avançava na frente o feriu junto ao seio direito
o Telamónio na espádua sair indo a lança de bronze.
Ei-lo que tomba na poeira tal como se abate um grande álamo
que se criara e crescera na beira dum lago espaçoso
de tronco liso que em ramos inúmeros no alto se alarga. …
Diores o filho do herói Amaríncio foi presa do Fado.
No tornozelo da perna direita se viu atingido
por uma pedra pontuda que o Imbrásida Píroo atirou-lhe
chefe dos homens da Trácia que de Eno chegara de pouco.
Os tendões ambos e os ossos a pedra angulosa de todo
esmigalhou; cai de costas na areia e a vida ali deixa
quando ainda súplice os braços tentava soerguer para os sócios
fiéis companheiros. Mas Píroo que o tinha ferido saltando
junto do umbigo lhe a lança enterrou; pelo solo derramam-se
os intestinos; cobriram-lhe as trevas os olhos brilhantes.
Mas ao recuar Píroo foi atacado por Toante da Etólia
junto do seio com fúria indo o bronze o pulmão alcançar-lhe.
Aproximando-se dele o guerreiro da Etólia arrancou-lhe
do peito a lança; em seguida sacando da espada cortante
fere-lhe o ventre com o que mais depressa o privou da existência.
Mas espoliá-lo não pôde que os sócios da Trácia de tufos
no alto do crânio o cercaram armados de lanças compridas
os quais conquanto soberbo e de grande estatura ele fosse
o repeliram dali. Cede à força do número Toante.
Dessa maneira ficaram deitados na poeira os dois chefes
um dos guerreiros epeios de vestes de bronze; outro Trácio.
À volta de ambos inúmeros outros heróis pereceram.
De forma alguma dissera tratar-se de feitos somenos
quem sem se ver atingido por golpes do bronze cortante
atravessasse a batalha levado por Palas Atena
que pela mão segurando-o o livrasse da fúria dos dardos
pois numerosos guerreiros troianos e acaios naquele
dia se achavam sem vida na poeira uns ao lado dos outros.

Quando era criança, li a Ilíada primeiro na tradução de Samuel Butler, de 1898, que era a única que tinha na minha casa, como parte da coleção Britannica Great Books. Depois, enquanto dirigia os mil e quinhentos quilômetros entre Miami e Nova Orleans, uma semana antes do furação Katrina, ouvi o audiobook da tradução de Robert Fagles, de 1990, por achar que um poema oral tem que ser mais ouvido do que lido. Agora, estou lendo primordialmente a tradução de Stanley Lombardo, de 1997, que é excelente, feita para o palco, em inglês contemporâneo, sem arcaísmos, emocionante mesmo. (O tom do livro já é dado pela capa: uma foto de desembarque da Normandia.) Mas, como sou bibliófilo e doente, a cada canto que termino, eu comparo também com outras traduções, especialmente as minhas preferidas citadas acima, Butler e Fagels, mas também a tradução em verso de Alexander Pope, de 1720, lindíssima, e as brasileiras de Fernando C. de Araújo Gomes e a citada de Carlos Alberto Nunes.

Para quem está chegando agora, minha sugestão: arrume um kindle, ou baixe pro seu computador o programa gratuito kindle for pc, e compre na amazon esse livrinho por $2.99 e que contém quase todas as traduções em domínio público de todos os clássicos da literatura grega para o inglês. Se você só fala português, ó, difícil, hein. Suas opções são limitadas. A única tradução brasileira em domínio público é a do Odorico Mendes, publicada em 1874, mas antiquada ao ponto de ser ilegível. O melhor mesmo é folhear várias traduções e ver qual é mais confortável pra você.

Estou no meio do quinto canto. Hoje à noite, chego no sexto.

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copacabana

rua almirante gonçalves.

e três textinhos meus sobre copacabana: gentileza em copacabana, a história deixa marcas, hora marcada.

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viver de amor numa cabana

lúcia ganhava seis paus por mês num emprego chatérrimo, fora da sua área de estudos, em uma parte distante da cidade, perdia três horas no trânsito todo dia e vivia estressada, mal aproveitava o salário.

mas, quando conversávamos sobre ter uma vida juntos, sempre usava a fatal expressão:

“alex, não dá pra viver de amor numa cabana!”

e é engraçado isso, porque eu achava a vida dela uma bela merda: teria sido mais feliz ganhando pouco, sem pegar trânsito, morando comigo em uma cabana.

mas cada um é cada um.

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as marcas da parada gay flutuam pelo céu do rio de janeiro

as marcas da parada gay flutuam sobre o rio...

as marcas da parada gay flutuam pelo rio...

fotos tiradas do mirante dona marta.

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omissão

borges escreveu:

omitir siempre una palabra, recurrir a metáforas ineptas y a perífrasis evidentes, es quizá el modo más enfático de indicarla.

fim de semana com amigos em angra. fabiana abraçava, beijava, pedia massagem, sentava no colo de todos. menos de gustavo.

meses depois, a revelação bombástica: fabiana e gustavo estavam apaixonados e eram amantes há meses.

 

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lei da resposta (ou “exijo que me responda agora!”)

qualquer resposta que você precise exigir nunca vai ser a resposta que você deseja.

(ou vai ser a resposta que você não quer ou vai ser que a que você quer, mas dita falsamente, por pena ou por intimidação. se a resposta fosse realmente aquela que você deseja, teria sido dada espontaneamente. existem exceções, mas poucas.)

leia as outras leis de alex castro