roberto e eu morávamos em nova orleans durante o furacão katrina, mas ainda não nos conhecíamos.
eu abandonei a cidade dois dias antes da tempestade e só voltei seis meses depois. ele passou o furacão cuidando de pacientes no hospital universitário, foi evacuado em helicópteros do exército e deixado em uma estrada deserta com as roupas do corpo. dez meses depois, respondeu a um anúncio meu procurando um colega de casa.
moramos juntos por um ano.
formado em cinema e concluindo sua residência médica, roberto me ensinou a malhar direito e comer melhor. ensinou ao oliver, meu poodle sem vergonha e também bravo sobrevivente do katrina, os melhores truques que ele usa até hoje pra seduzir as visitas. para se comunicar com o oliver, que não respondia bem ao inglês, roberto falava “blá blá blá” mas imitando meu sotaque, meu ritmo, minha cadência com tamanha perfeição que o oliver respondia empolgado aos seus comandos.
mais tarde, abrigou por dois meses a cachorrona de uma amiga sua que estava reformando a casa. ginger e oliver se deram muito bem.
ao terminar a residência, roberto decidiu que não queria mais saber de medicina, se candidatou a um posto de professor de inglês no japão e nos mandou procurar outro colega de casa. poucos dias depois de termos fechado com uma nova pessoa, ele soube que inexplicavelmente não tinha sido aceito. queríamos romper o acordo com o outro, para que ele continuasse morando conosco, mas roberto achou antiético. foi morar sozinho.
pelo ano seguinte, trabalhou de médico do trabalho por somente dois dias por semana (para pagar suas gigantescas e massacrantes dívidas estudantis) e, no resto do tempo, se dedicava a buscar um rumo. aprendeu piano, começou a fazer stand-up comedy, fotografou profissionalmente. minhas melhores fotos são dele. ninguém jamais me fotografou melhor, com um olhar tão generoso.
nos víamos com frequência, mas não tanto quanto deveríamos.
quando o furacão gustav forçou uma nova evacuação da cidade, em 2008, liguei para roberto e perguntei quais eram seus planos. evacuações forçadas são excelentes para recuperar contato com os amigos. soube que ele estava de mudança de volta ao texas justamente naquele dia: era uma despedida digna de nova orleans, sempre festeira e intensa, tempestuosa e caribenha.
em austin, decidiu adotar um cachorro e me citou como referência. avisou q talvez me ligassem pra perguntar se seria um bom dono. claro que seria, confirmei.
mas deve ter mudado de planos: dois meses depois, na véspera dos festejos do quatro de julho de 2009, formatou seu computador, doou quase todos seus objetos pessoais, dirigiu até a casa do lago do pai, parou o carro na garagem e ligou um pequeno forninho a gás. bem onde sabia que seria encontrado por toda a família durante o feriado.
roberto morava com a irmã nessa época e ela veio até nova orleans para me conhecer e visitar a casa. conversar e rememorar, aceitar e entender. trabalhar nosso luto. ela disse que eu tinha sido seu último contato humano importante. quando saiu da minha casa, roberto se tornara cada vez mais isolado e deprimido – algo que eu, cego e egocêntrico, não tinha visto nos nossos encontros esporádicos.
a irmã de roberto e eu passamos um fim-de-semana agridoce. comemos, bebemos, passeamos. foi bom ter alguém com quem conversar sobre ele. ninguém chorou.
voltei para o rio definitivamente há poucos meses, deixando para trás meu velho quarto de cortinas azuis.
alguns anos antes, enquanto passava as férias longas no brasil, subloquei meu quarto para uma moça chamada athena, de são francisco. os verões em nova orleans são quentes e batia muito sol no meu quarto de manhã. athena estava vulnerável, recém-saída de um mau relacionamento, e se apaixonou forte por roberto. ele não se apaixonou de volta, mas gostava dela e tentou não feri-la – óbvio que não deu certo. foram amantes de verão. transaram na minha cama e na dele. em algum ponto, talvez em um gesto másculo de carinho protetor, talvez em um gesto egoísta para salvaguardar seu sono, roberto instalou as cortinas azuis.
quando voltei para nova orleans, roberto já tinha se mudado da casa e athena (que nunca conheci) voltara para são francisco. durante os anos seguintes, nas minhas manhãs mais preguiçosas, as cortinas azuis continuaram sempre me protegendo do sol forte.
hoje, a casa tem novos moradores. eles comem e cozinham, dormem e decoram, brincam e brigam. e não fazem ideia que roberto um dia viveu. ainda assim, as cortinas azuis – penduradas com tesão ou egoísmo – os protegem igualmente do sol.
nunca conversei com roberto sobre as cortinas azuis: agora me ocorreu que podem também ter sido um presente pra mim.
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em memória de roberto josé rivera, nascido em 23 de junho de 1976, falecido em 2 de julho de 2009.