Pessoas que nos olham
Hoje, no metrô lotado. Em pé, ao meu lado, um casal. Conversam se olhando nos olhos, sorrindo, se abraçando. Ela conserta sua gola, a gola entorta, ela conserta de novo.
Na muvuca do desembarque, todo mundo empurrando todo mundo, se separam.
De repente, já na plataforma, ela olha para o lado, esperando vê-lo.
Não foi um super olhar. Não foi um olhar mega romântico. Não foi nada de mais.
Foi apenas um olhar rápido de quem olha para o lado esperando ver a pessoa amada, a pessoa com quem escolheu passar a vida, a pessoa que estava colada no seu corpo até dez segundos antes.
Mas quem estava ao seu lado era eu.
Não foi um olhar de horror. Não foi um olhar de desprezo. Não foi nada de mais.
Foi apenas um rosto humano, transicionando rapidamente entre o olhar que damos para a pessoa que amamos e o olhar que damos para pessoas aleatórias com quem cruzamos os olhos na plataforma do metrô.
Ainda assim, que privilégio ser olhado com tanto amor, nem que apenas por uma estranha, por um engano, por um segundo.
O problema de quem não nos ama mais é que, sem esse olhar nos olhos, mal conseguimos reconhecê-las: parecem mesmo outras pessoas.
Cultivar a excentricidade
A filha de uma de minhas melhores amigas iria fazer aniversário e, por isso, perguntei a outra amiga:
“Eu não entendo nada de criança. Tem problema se eu der um vale-presente?”
E a amiga colocou uma mão carinhosa em meu ombro e respondeu:
“Imagina. Vindo de você, não tem problema nenhum!”
Mas esqueci de dar o vale-presente.
* * *
Ser artista é sofrer em público para o benefício das outras pessoas e se abrir ao seu julgamento — às vezes impiedoso, muitas vezes surpreendentemente generoso.
Se perguntamos a uma turma de jardim de infância, quem é artista, todos os braços se levantam. Ao longo dos anos, os braços vão minguando. Lá pela sexta série, as autodeclaradas artistas são apenas uma ou duas, levantando o braço de maneira bem hesitante, olhando em volta, temendo o julgamento de seus pares, não querendo nunca se tornar as esquisitas da turma.
Mas ocupar esse lugar da pessoa excêntrica e fora-do-padrão, pode ser salvador: ele nos permite transgredir as regras com uma liberdade que teria custado socialmente muito caro às outras pessoas.
* * *
Cultivar uma reputação de excentricidade foi uma das melhores coisas que fiz por mim mesmo.
Na adolescência, o peso das regras de conformidade social da minha escola teria me esmagado. Ser excêntrico, ser artista, ser esquisitão, salvou minha vida e minha sanidade.
Continua salvando até hoje.
Menino de dezesseis anos, namorando menina de dezessete, relacionamento super complicado, brigas com pai dela, maior drama, e eu ouvindo aquilo tudo, e ele me pede um conselho:
“Alex, me diz, o que eu faço?”
E eu, Deus que me perdoe, mas, sinceramente, a única coisa que pude dizer foi:
“Dezoito.”
Ter dezesseis anos é uma merda. O único consolo é que, se você resistir firme e conseguir não morrer, o problema se resolve sozinho.
Tipos de pessoas
existem dois tipos de pessoa no mundo: as que dividem as pessoas em dois tipos e as que não.
existem dois tipos de pessoas no mundo: as que entendem a premissa das coisas e fazem tudo certinho, sabe?, tipo eu, e não sei porque tudo dá errado na minha vida, caramba, eu já te contei como fui demitida do meu último emprego?
existem três tipos de pessoas no mundo: as que sabem contar e as que não.
existem catorze tipos de pessoas no mundo: as pertencentes ao Imperador, as embalsamadas, as amestradas, as leitoas, as sereias, as fabulosas, as cadelas vira-latas, as que estão incluídas nesta classificação, as que se agitam feito loucas, as inumeráveis, as desenhadas com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, as et cetera, as que acabaram de quebrar o vaso e as que de longe parecem moscas.
existem dois tipos de pessoas no mundo: as que sempre terminam o que estão fazendo e as qu
De quem são as minhas opiniões?
Quantas opiniões eu tenho só porque são as opiniões do meu grupo?
* * *
A direita afirma que a Reforma da Previdência é necessária e a esquerda, que o rombo da Previdência é uma mentira — simplificando grosseiramente.
Eu não sei nada sobre o assunto e não tenho tempo para me informar adequadamente.
Então, como me auto-identifico como uma pessoa de esquerda, adoto a postura majoritária do meu grupo: sou contra.
Mas sou realmente contra?
Sei realmente do que estou falando?
É intelectualmente sustentável ter uma posição em um debate tão importante somente por tribalismo?
Não duvido que as pessoas que se tornam coaches queiram realmente ajudar, mas, para quem sente que precisa dessa ajuda, tenho uma sugestão um pouco mais radical.
Esperando a amiga perfeita
A relação de uma pessoa com qualquer outra é sempre pautada pelos limites e possibilidades de ambas.
Minha orientação política
Sempre voto, apoio, milito em prol de movimentos, partidos, pessoas que se propõem a lutar por grupos, classes, categorias que não conseguem lutar por si mesmas.
Porque um Estado que atua em prol da classe alta é um Estado redundante.
A classe alta sabe se defender com seus próprios recursos: o Estado justifica sua existência defendendo os direitos daquelas pessoas que não conseguem.
As fodas perdidas de Machado de Assis
Dom Casmurro não é feito de letras e palavras, papel e tinta: Dom Casmurro é feito de tudo que uma pessoa chamada Joaquim Maria deixou de fazer.
Joaquim Maria era uma pessoa como nós: ele fazia coisas como comer e cagar, beber e mijar, transar com a esposa e ler Shakespeare. Ele deixou de fazer muitas, muitas, muitas dessas coisas para ficar brincando com Dom Casmurro, escrevendo e cortando, burilando e acrescentando.
Um dia, Joaquim Maria morreu, como vai acontecer com todas nós: ele nunca mais vai poder fazer nenhuma daquelas coisas que, enquanto escrevia Dom Casmurro, ele deixou para fazer depois. Finis. Kapputt.
Mas nós, enquanto ainda estamos vivas, podemos ler Dom Casmurro, que é quase que a manifestação concreta de todas as fodas perdidas que ele não fodeu.
* * *
A matéria-prima de toda obra de arte é sacrifício. Não só as grandes. Especialmente não as grandes.
A artista medíocre sacrifica tanto quanto a genial — e não obtém nem mesmo a satisfação de ter produzido uma obra de qualidade, uma obra reconhecida.
A guerra de Nova Troia
Nova Troia é o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, há décadas dominada pelo tráfico. Em preparação para um grande evento esportivo mundial, o poder público decide finalmente invadir, ocupar e pacificar Nova Troia. O que se segue é um massacre, documentado em uma série de quatro peças e um monólogo.
Por ela ter se recusado a transar com ele, a profetisa Cassandra recebeu do deus Apolo a seguinte maldição:
1) que suas profecias estariam sempre corretas e
2) ninguém nunca acreditaria nelas.
Escritores e bonecas
Amiga engenheira me conta um dos momentos mais definidores de sua vida:
“Então, eu tinha uma daquelas bonecas que fazia alguma coisa, sabe? Falava, mexia, não lembro. Aí, um dia, de repente, ela parou de funcionar. Eu era bem pequena ainda mas consegui abrir a boneca, dei uma fuçada lá dentro, mexi alguma coisa e, pimba, ela voltou a funcionar. Aquilo pra mim foi poderossíssimo. Eu tinha agência, eu tinha autonomia, eu tinha poder. Quando as coisas paravam de funcionar, paravam de agir como eu queria que agissem, eu tinha poder de intervir, de reparar, que moldar o mundo à minha vontade, por força do meu intelecto, da minha habilidade. Claro que eu não conseguia articular isso naquela idade, mas foi uma sensação fortíssima que nunca me abandonou, uma sensação que me sustentou na escola, em cinco anos de faculdade de engenharia onde eu era uma de cinco mulheres entre quinhentos homens e, bem ou mal, me sustenta profissionalmente até hoje.”
E respondi:
“Que história linda. E como são incríveis nossas diferenças! Quando eu era pequeno, aconteceu a mesma coisa comigo, um boneco parou de funcionar, e nunca, jamais, teria me ocorrido abrir o boneco e mexer lá dentro!”
Perguntou minha amiga:
“O que você fez?”
E lá fui eu:
“Bem, eu cavei um buraco no jardim, depositei o boneco ali dentro e coloquei todos os meus outros bonecos de pé em volta do buraco. Então, cada um deles fez um elogio fúnebre do defunto. O Falcon (alguém lembra do Falcon, meu Deus?) relembrou uma batalha impossível onde o falecido tinha salvo sua vida. A Barbie relembrou seu namoro com o falecido, com quem apenas rompeu porque ele teve que ir a guerra com o Falcon e só por isso ela tinha conhecido o Ken. (“Ainda bem pela guerra”, disse ela, em voz baixa.) O Ursinho Carinhoso disse ter conhecido o falecido assim que voltou da guerra, transformado por suas experiências militares em um lutador incansável pela proteção do meio ambiente e dos animais. Etc etc. Naturalmente, várias narrativas entravam em conflito e se contradiziam. Uma boneca dizia: “O Fulano que eu conheci jamais faria isso!” E outra gritava: “Você não sabe de nada! Comigo fez muito pior!” E caíam se atracando em cima do cadáver do outro. Etc etc. O fato de um boneco ter parado de funcionar me deu a oportunidade de criar várias biografias possíveis para ele, e também de criar vários outros personagens, e todas as maneiras diferentes através das quais eles se conheciam e interagiam. Foi muito legal.”
E minha amiga engenheira, me olhando como se eu fosse um ET:
“De fato, somos muito muito diferentes!”
“Escritor obscuro prevê a própria morte”
Um experimento artístico-midiático-sociológico.
Sempre que vou embarcar em um voo, envio uma mensagem pra minha namorada dizendo que tive um mau pressentimento, que sonhei que o avião iria cair, que senti um cheiro de morte a bordo. Mas, ok, tudo bem, estou embarcando mesmo assim: “se cair, é porque era o meu destino.”
Amar é cuidar
Nada pode ser mais poderoso, mais apavorante, mais necessário do que estarmos sozinhas com nossas mentes, sem intermediários e sem desculpas.
Se uma colega de trabalho me feriu hoje à tarde no escritório, essa foi uma ação dela sobre mim e, mais dia menos dia, ela vai pagar o preço: afinal, ela me fez sofrer.
Mas, se hoje à noite, fritando na cama sozinha com meus pensamentos, eu ainda estou remoendo esse insulto e mastigando essa ofensa, então essa é uma ação minha sobre eu mesma e o preço eu já estou pagando agora, em tempo real: eu estou me fazendo sofrer.
Mesmo em um universo tão cruel e tão aleatório, o meu maior algoz quase sempre sou eu mesma: meus pensamentos obssessivos, minha mente desordenada, meu apego à minha identidade.
Não precisa ser assim.
Narrativas
Millôr dizia: “Às vezes, você está discutindo com um idiota… e ele também!”
Sempre que alguém vem me falar mal de ex-cônjuge, penso uma variação disso:
“Às vezes, você casou com uma pessoa horrível… e ela também!”
Meditar não é pra se acalmar, pra se tranquilizar, para relaxar: pelo contrário, é pra nos darmos conta de que não somos calmas, tranquilas, relaxadas.
É para descobrirmos, muitas vezes para nossa surpresa, que ainda estamos obcecadas por aquele velho namorado, que ainda estamos sofrendo a dor daquela velha ofensa, que já estamos vivendo a angústia da morte que um dia morreremos.
Basta tentarmos habitar o momento presente para percebermos o quanto moramos no passado e no futuro.
sempre desconfio de qualquer texto ou colocação, pensamento ou comentário
(especialmente partindo de mim!)
cuja moral da história seja
“olha como sou bonzão”