Os profetas eram aquelas pessoas chamadas por Deus para profetizar em Israel, ou seja, para denunciar os abusos e pecados da população, para pregar que mudassem seus maus hábitos e para ameaçá-la com os castigos do Senhor.
Era um trabalho duro, duríssimo: precisavam profetizar horrores sem fim para as pessoas que amavam e, naturalmente, sofrer a terrível reação.
São talvez as figuras mais trágicas, mais atormentadas da Bíblia.
(Exemplo de profecia de Jeremias: “O cerco será tão terrível, que a gente que vive em jerusalém comerá a carne dos seus filhos e filhas e devorará os seus próprios vizinhos.” NTLH, 19, 9)
Se você acredita em Deus, são as pessoas escolhidas pelo senhor para tentar salvar o povo escolhido, mesmo a custa de sua morte social perante seus pares.
E, se não acredita, são figuras mais trágicas ainda. talvez esquizofrênicos que ouviam vozes que acreditavam ser de seu amigo imaginário no céu?
Na minha leitura, gosto de imaginar os profetas como filósofos moralistas que inventaram estar profetizando mensagens desse tal Iahweh (nominalmente adorado mas pouco obedecido) pois era a única maneira possível de, em um esforço heroico e altruísta, contra tudo e contra todos, enfrentando o escárnio e o ódio, desviar seu povo das práticas imorais e antiéticas que lhe estavam destruindo.
Ou seja, de maneira bem cristólogica, eram pessoas que sacrificaram a si mesmos, sua vida e sua paz de espírito, para salvar as outras.
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No trecho abaixo, o profeta se volta contra o próprio deus: amaldiçoa o dia em que nasceu; reclama de ter que discutir e brigar e, consequentemente, de ser odiado por todo mundo; acusa Deus de tê-lo seduzido e enganado (!), e de ser traiçoeiro quando ele mais precisa (!!); enfatiza como adorava ouvir as palavras de Deus e como elas só lhe trouxeram solidão e ódio; e, por fim, de novo amaldiçoa o dia em que nasceu.
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Das “Confissões” do profeta Jeremias:
“Ai de mim, minha mãe, que me geraste,
homem de pleitos e contendas
com todo mundo!
Não emprestei nem me emprestaram,
e todos me amaldiçoam. …[O]lha que suporto injúrias por tua causa.
Quando recebia tuas palavras, eu as devorava,
tua palavra era meu prazer e minha íntima alegria;
eu levava teu nome, Senhor Deus dos exércitos.
Não me sentei a desfrutar
com os que se divertiam;
forçado por tua mão me sentei solitário,
porque me encheste de tua ira.
Por que minha chaga se tornou crônica,
e minha ferida inflamável e incurável?
Tu és para mim arroio enganador
de água inconstante. …Tu me seduziste, Senhor, e me deixei seduzir,
tu me forçaste, me violaste.
Eu era o escárnio o dia todo,
todos caçoavam de mim.
Se falo, é aos gritos, clamando:
“violência, destruição!”
A palavra de Deus se tornou para mim
escárnio e caçoada constantes,
e eu disse a mim mesmo: Não me recordarei dele,
não falarei mais em seu nome.
Mas eu a sentia dentro como fogo
ardente encerrado nos ossos:
fazia esforços para contê-la e não podia.
Ouvia o cochicho da gente: “Cerco de pavor”,
vamos denunciá-lo, vamos denunciá-lo!
Meus amigos espreitavam meu tropeço:
Vejamos se ele se deixa seduzir,
nós o violaremos e nos vingaremos dele. …Maldito o dia em que nasci,
o dia que minha mãe me deu à luz não seja abençoado!
Maldito seja aquele que deu a notícia a meu pai:
“Nasceu um filho teu”, causando-lhe alegria!
Oxalá fosse esse homem como as cidades
que o Senhor transtornou sem compaixão!
Oxalá ouvisse gritos pela manhã
e alaridos ao meio-dia!
Por que não me matou no ventre?
Minha mãe teria sido meu sepulcro;
seu ventre teria me levado para sempre.
Por que saí do ventre
para passar trabalhos e sofrimentos
e acabar meus dias derrotado?”
(Jeremias, 15, 10-18; 20, 7-18. Bíblia do Peregrino – BP)
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“Terror por todos os lados”
A expressão “terror por todos os lados” é praticamente um bordão de Jeremias, repetida em vários dos seus oráculos:
“Não saiais para o campo, nem andeis pelo caminho, porque o inimigo carrega a espada, terror de todos os lados!” (1, 25, BJ)
Então, quando Jeremias reclama que seus desafetos fazem pouco dele, arremedando suas palavras e chamando-o de “terror de todos os lados”, é uma espécie de metacrítica ao próprio estilo catastrófico e repetitivo dos oráculos de destruição e terror profetizados pelo próprio Jeremias.
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Deus, enganador e sedutor
Em um dado momento, Jeremias acusa:
“Tu me seduziste, Iahweh, e eu me deixei seduzir.” (20, 7, BJ, uma tradução mais literal)
A palavra utilizada no hebraico era essa mesma: seduzir, no sentido sexual, negativo.
A belíssima e poética Bíblia do Peregrino enfia o dedo na ferida ainda mais fundo:
“Tu me seduziste, Senhor, e me deixei seduzir, tu me forçaste, me violaste.”
Mas, diante de uma acusação tão feia do profeta ao deus todo-poderoso, várias e várias traduções da Bíblia tentam suavizar a ofensa:
“Ó SENHOR Deus, tu me enganaste, e eu fiquei enganado.” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje – NTLH)
“Senhor, tu me enganaste, e eu fui enganado.” (Nova Versão Internacional – NVI)
“Persuadiste-me, ó SENHOR, e persuadido fiquei.” (Almeida Revista e Atualizada – RA, e Almeida Corrigida e Revisada, Fiel – ACF)
“Dios mío, con lindas palabras me llamaste, y yo acepté tu invitación.” (Traducción en lenguaje actual – TLA)
“O LORD, thou hast deceived me, and I was deceived.” (King James Version – KJV)
“O LORD, you have enticed me, and I was enticed.” (New Revised Standard Edition – NRSV)
Parabéns às Bíblias que tiveram coragem de verter para suas línguas de destino toda a força da acusação de Jeremias:
“Me has seducido, Yavé, y me dejé seducir por ti.” (Bíblia Latinoamérica, BL, não por acaso, uma bíblia esquerdista, criada pelos pessoas da Teologia da Libertação.)
“Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir.” (Bíblia Pastoral, BEP, a edição brasileira e mais esquerdista ainda da mesma bíblia acima.)
“Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir.” (Almeida Atualizada, AA, uma das versões corrigidas e atualizadas da tradução Almeida, a mais tradicional da língua portuguesa.)
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A Bíblia do Peregrino (BP) é uma Bíblia católica espanhola, cuja edição brasileira é não apenas a bíblia mais poética e literária que temos, como também é a bíblia brasileira com mais notas explicativas. sua tradução é idiomática, não literal, ou seja, ela se concentra mais em traduzir as imagens e símbolos e metáforas por trás das palavras do que as palavras em si.
A Traducción en lenguaje actual (TLA) é uma Bíblia ecumênica espanhola de 2003, cujo objetivo é traduzir a Bíblia para uma linguagem acessível e atual e que tem o mérito de fazer isso muito bem e, ao mesmo tempo, não perder a beleza, a poesia e o ritmo do texto. é uma das minhas Bíblias preferidas.
A Nova tradução da linguagem de hoje (NTLH) é uma bíblia brasileira protestante que tem o mesmo objetivo da TLA, ou seja, linguagem acessível e atual, mas cujo resultado, na minha opinião, é um pouco seco, simplista, nada bonito ou sonoro, ficando assim estilisticamente muito aquém da TLA.
A King James Bible (KJV) é a tradução inglesa mais tradicional, em um inglês do século XVII hoje difícil até para falantes nativos, mas totalmente insuperável em termos de beleza literária. uma delícia de ler.
A Bíblia de Jerusalém (BJ) é uma bíblia ecumênica francesa, em tradução brasileira, a mais popular entre estudiosos e teólogos, que busca uma tradução mais literal: às vezes literária, às vezes desajeitada. suas notas são excelentes e eu recomendo, embora prefira a do Peregrino.
As abreviações das versões da Bíblia não são minhas, mas são as consagradas dentro desse campo de estudo.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Os profetas bíblicos é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 27 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/os-profetas-biblicos // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato