Por mais que as pessoas pareçam iguais a nós, por mais que nós todas superficialmente sejamos parecidas umas com as outras, somos muito, muito diferentes, às vezes de maneiras insólitas, às vezes de maneiras incoerentes, o que não impede essas outras pessoas de serem incríveis e brilhantes, o que não nos impede de admirá-las e de aprender com elas.
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Apesar de ateu, a religião é uma parte importante da minha vida.
Vou ao meu templo todos os dias, onde inclusive me ordenei, sou voluntário em uma série de tarefas e doo parte da minha renda. A Bíblia é meu livro preferido, lido e relido, inclusive vários outros livros sobre ela. Adoro o circuito de livrarias cristãs do centro do Rio: Vozes, Paulus, Paulinas, CPAD. Passei os últimos dias lendo sobre técnicas de meditação cristã. Hoje, considero que as melhores críticas ao capitalismo e à globalização são feitas por pensadoras religiosas, tanto a partir do budismo como do cristianismo. Ocasionalmente, vou à missa na igreja do meu bairro.
Ainda assim, sempre fui, sou e continuo sendo ateu/agnóstico. A religião é fascinante, como fenômeno sociopolítico e literário, mas eu jamais conseguiria, nem quero, acreditar em um “grande amigo imaginário no céu”. A religião que pratico é não-teísta.
Dito isso, acontece comigo de vez em quando uma coisa engraçada.
Estou lá, lendo algum livro de uma pensadora cristã, uma análise literária brilhante sobre a Bíblia, uma denúncia fortíssima da injustiça inerente ao capitalismo, pessoas brilhantes desenvolvendo argumentos contundentes e impecáveis, e eu tendo orgasminhos intelectuais… até que…
Aparece uma referência a Satanás como se ele tivesse existência concreta, alguém cita exorcismo como método válido para resolver problemas, a homossexualidade e o aborto são considerados pecados autoevidentes, e eu tomo aquele súbito choque de realidade:
“Ah é, tinha esquecido. Essa pessoa parece normal e racional e talz, mas, na verdade, no íntimo, ela é bem louca!”
Digo isso sem medo de parecer politicamente incorreto ou soar ofensivo.
Em grande parte dos livros cristãos que leio, em especial os místicos, que são os meus preferidos, essa loucura fundamental, esse mistério divino, esse salto de fé, é um dado. Para Kierkegaard, o cristianismo só faz sentido se for um absurdo salto de fé. Para São João da Cruz, Deus nos isola em uma noite escura para, entre outras coisas, dar curto circuito em nossos processos mentais racionais e abrir caminho para o amor a Ele, etc.
O próprio padre Geovane, da igreja aqui do Largo do Machado, carioca nascido e criado na Favela da Maré, autor de sermões realmente muito bonitos e interessantes, sobre sermos menos egoístas, menos consumistas, menos acumuladores, etc, também é o único exorcista oficialmente em atividade no estado do Rio de Janeiro.
Enfim, falei muito para comunicar uma sensação bastante simples:
Por mais que as pessoas pareçam iguais a nós, por mais que nós todas superficialmente sejamos parecidas umas com as outras, somos muito, muito diferentes, às vezes de maneiras insólitas, às vezes de maneiras incoerentes, o que não impede essas outras pessoas de serem incríveis e brilhantes, o que não nos impede de admirá-las e de aprender com elas.
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Perguntaram ao padre John Main porque ele tinha decidido se tornar monge e se internar em um mosteiro. A resposta:
“Porque eu queria ser o mais livre possível.”
Talvez eu também tenha sido infectado pela loucura, mas faz total sentido para mim.
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Quanto mais conheço mais e mais pessoas que dedicam suas vidas a idolatrar o deus-consumo, mais e mais respeito as pessoas que dedicam suas vidas a idolatrar os deuses de antigamente.
Minhas amigas meio-intelectuais meio-de-esquerda gostam de fazer pouco de padres, esses adultos que fizeram voto de castidade e dedicam suas vidas a cumprir as pretensas vontades de seu amigo imaginário no céu.
Mas, hoje em dia, me parece muito pior, muito mais infantil, muito mais indefensável, dedicarmos nossas vidas a fazer outras pessoas consumirem mais e mais produtos, em troca de salários com os quais compraremos mais e mais desses mesmos produtos.
(Sobre isso, dê uma olhada na Prisão Religião.)
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O meu tema principal é desconstruir o senso-comum.
Muitas pessoas leitoras gostam muito de mim quando estou desconstruindo o senso comum das outras pessoas, das pessoas que elas não gostam, das pessoas de quem discordam.
Um belo dia, porém, desconstruo alguma coisa do senso-comum delas e lá vem:
“Peralá, Alex! Quequeisso, Alex! Não seja radical, Alex! Deixa de ser louco, Alex!”
Mas raramente aprendemos com as pessoas de quem discordamos de tudo — pois já lemos na defensiva, contraargumentando, refutando.
Também raramente aprendemos com as pessoas com quem concordamos em tudo — porque é uma leitura confortável, que só confirma nossos próprios preconceitos.
As maiores oportunidades de aprendizado são quando, subitamente, discordamos de alguém de quem sempre tínhamos concordado. Pois essa é a hora da pane.
Como pode essa pessoa que eu respeito tanto (afinal, ela concorda comigo em tudo!) falar um absurdo desses?
Por um lado, talvez essa pessoa não mereça tanto respeito assim. Por outro lado, talvez esse absurdo não seja tão absurdo assim. Talvez ambos!
De qualquer modo, seja qual for a conclusão, será sempre um importante momento de aprendizado, um momento de questionar certezas e de questionar gurus.
Não desperdicem esses momentos.
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O encontro “As Prisões”
É uma instalação artística, indefinível e improvisada, onde exploramos os limites e as possibilidades de nossa atenção, de nossa generosidade, de nosso cuidado. Um espaço de prática, sempre imprevisível, onde pessoas se juntam e se chacoalham, compartilham vivências e trocam histórias e, no processo, criam novos tipos de interação. Um evento que só pode ser presencial pois foi criado para só poder ser presencial, justamente para fazermos aquilo que é impossível de ser feito através de textos.
Foi nesses encontros, realizados desde 2013 nas cinco regiões do Brasil, no contato energizante e polifônico com milhares de pessoas, que os Exercícios de Atenção foram sendo lentamente criados e aprimorados e são, até hoje, praticados.
Tudo o que faço é sempre fundamentalmente gratuito, e os encontros não seriam a exceção. Existe um preço sugerido mas paga quem quer, o quanto quiser.
Hoje, eu literalmente vivo da generosidade alheia: graças às pessoas mecenas, que me sustentam com suas contribuições, não preciso ganhar a vida. Então, o mínimo que posso fazer com essa vida que me foi dada ganha é passar adiante a generosidade: promovo esses encontros como um serviço para as pessoas que precisam dele.
Os próximos são no Rio de Janeiro, esse domingo agora, 9 de julho, e, depois, em São Paulo, no domingo, 23 de julho. Além disso, temos três imersões marcadas por todo Brasil: Nordeste (6 a 8 de outubro), Sudeste (20 a 22 de outubro) e Sul (19 a 21 de janeiro).
Você vem?
2 respostas em “O absurdo da religião”
o que eu gosto desse texto é que eu começo lendo como
“ai, lá vem alex criticar o cristianismo, ‘esses atrasados’, passando um ar de ‘I know better’, além de eu não concordar plenamente pois há no budismo possibilidades de grandes seres de compaixão, ‘deuses’ contanto que não sigam a definição de criadores, onipotentes, separados, etc.”
para chegar no meio e ver o a citação do padre John Main.
o texto é pontuado por essas pequenas contradições. é o que me fez achar ele tão bonito.
Sobre religiões , sinto alívio quando leio textos como esse q. fala com propriedade sobre um assunto tão profundo e amedrontador , porque cada vez + sinto isso em se tratando de crenças . Infelizmente existem coisas tão intrínsecas dentro da gente q. por + q. eu diga não acredito + , sempre algo la dentro de mim diz q. ainda não estou preparada , afinal passei a vida inteira indo á igreja , confessando com o padre e de repente minha vida da um giro de 90 graus . Meu pai faleceu em 2009 e de lá pra cá não frequento + a minha igreja . É como se morresse algo dentro de mim em relação á crença , mesmo continuando espiritulizada , isso é mto forte em mim , sinto q. preciso de paz , de refletir de confiar numa força maior . Grata Alex . por me conceder + conhecimento e aliviar a minha culpa q. sinto matas vezes ainda por deixar a religião de lado.