Algumas dicas para entender melhor a Ilíada: comprem um bom dicionário de mitologia, evitem séries.
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A mitologia grega não está em nenhum lugar: era uma cultura oral que encontra-se espalhada, um pouco na Ilíada, um pouco nas tragédias, outro tanto nas poesias, etc.
É um pouco como o universo Marvel ou DC, no sentido de ser povoado de personagens que todo mundo conhece, que vivem num universo comum, que interagem, que são essencialmente iguais, mas também diferentes.
(Iguais e diferentes no seguinte sentido: o Batman do Frank Miller ou do Alan Moore, do Bruce Timm ou do Tim Burton, são diferentes o suficiente para reconhecermos o estilo de cada autor, mas próximos o suficiente para reconhecermos que todos são o mesmo Batman.)
Da mesma maneira, a gente conhece tanto esses personagens que quando alguém menciona, digamos, “o sobrinho da Tia May”, muitas de nós sabem imediatamente que está se falando do Homem Aranha, sem necessidade de maiores explicações.
A mitologia grega é mais ou menos assim. O Agamenon de Homero e de Eurípides são bastante diferentes entre si, mas são reconhecíveis como o mesmo Agamenon. Quando os gregos antigos ouviam falar do Pelida, ou dos Atridas, sabiam imediatamente que se estava falando de Aquiles, de Agamenon e de Menelau, respectivamente, sem necessidade de maiores explicações.
Tanto a Ilíada, quanto as tragédias que vamos ler presumem um público que já tem essas referências na ponta da língua. A leitora contemporânea, muitas vezes, não está tão bem-informada.
Então, uma coisa que ajuda, antes de tudo, é uma boa edição crítica, que informe, seja nas notas ou num glossário, que o Tideide sempre se refere a Diomedes, etc.
Além disso, minha melhor sugestão para quem quer o contexto de mitologia grega é comprar um dicionário de mitologia grega.
Porque vai servir para a Ilíada, vai servir para a Orestéia, vai servir para as Bacantes, vai servir para o resto da vida, para toda vez que alguém mencionar Antenor, ou Pantasiléia, ou Cassandra, e bater uma dúvida, vocês vão lá e veem quem é.
Meu dicionário preferido de mitologia, o que uso todo dia e resolve minha vida, é o da Jenny March, acima, dividido em verbetes, com o nome e a história de simplesmente todo mundo que é mencionado em todos os poemas, peças, livros. Ele é infinitamente útil, para a vida inteira, não poderia recomendar com mais empolgação.
A autora também escreveu um guia de mitologia, abaixo, narrativo e dividido em capítulos, publicado no Brasil. (Não gosto tanto, mas o capítulo da Guerra de Troia resolve todas as dúvidas.)
O melhor dicionário em português é o do Mario Gama Kury, que não é efetivamente bom: ele não fala de todo mundo, só das figuras principais. Para a maioria das leitoras, porém, o dicionário do Kury será mais que suficiente, foi escrito por um dos maiores experts em mitologia que já tivemo e está disponível em ebook.
Um bom livro recente, com uma perspectiva feminina, e trazendo todo o contexto da Ilíada, é A canção de Aquiles, de Madeline Miller, um romance narrado pelo fantasma de Pátroclo. (Não li ainda, mas é um dos favoritos da minha esposa, que sabe mais de mitologia grega do que eu. Ontem, ela me fez chorar só recontando o livro.)
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Não recomendo filmes, séries e livros derivados.
Por terem em mente um público contemporâneo, não presumem conhecimento prévio de mitologia e explicam todas as referências, o que é bom.
Mas é importante ter cuidado, pois fazem alterações importantes e profundas, quase nunca para melhor, tentando ficar mais afinadas com os gostos do presente. (Os comentários abaixo todos dizem respeito à série Tróia: A queda de uma cidade, de 2019.)
Diferenças entre a série e a Ilíada
Talvez a mudança mais importante da série é sobre o casamento de Helena.
Ela já era considerada a mulher mais linda do mundo (não é Páris que lhe “outorga” esse título) e, por isso, e todos aqueles grandes herois gregos foram seus pretendentes. Para evitar que guerreassem entre si, fizeram um pacto: deixariam Helena escolher livremente seu marido e todos se comprometiam a não só respeitar mas, mais importante, defender esse marido, caso um dos outros o atacasse.
Helena escolhe Menelau.
Por isso, quando Páris sequestra Helena, todos os grandes reis da Grécia estavam obrigados, por esse juramento, a guerrear para defender os direitos de Menelau.
Na série, a história é outra: os pretendentes lutaram, Agamenon vence e dá Helena para Menelau.
Essa história não faz nenhum sentido.
Agamenon venceu todos os maiores herois da Grécia em combate? Diomedes? Ulisses? Ajax? Aquiles? Difícil de engolir. Um Agamenon capaz de fazer isso não precisaria de Aquiles para vencer a guerra: ele venceria sozinho. (Troia resistiu a esses heróis por dez anos!)
Agamenon vence e cede Helena a Menelau? Assim cedido? Dado? De graça? E casa com Clitemnestra, sua irmã bem menos badalada? De novo, não faz sentido.
(Na mitologia, só depois de Helena escolher Menelau é que Agamenon, como prêmio de consolação, se casa com Climtenestra, irmã de Helena.)
A série tira tanto o mérito de Menelau (que foi escolhido pela mulher mais linda do mundo) quanto a autonomia de Helena (que escolheu livremente quem seria seu marido dentre os maiores heróis da Grécia e, depois, também livremente, o desescolheu e escolheu outro, provando que era uma mulher de opiniões fortes e atitudes decididas).
Parece pouco, mas essa alteração muda tudo: tanto Agamenon cresce, quanto todos os outros herois ficam diminuídos. A série, entretanto, parece não perceber isso, pois mostra um Agamenon vacilante e bobão, completamente distinto do novo Agamenon que eles mesmo inventaram.
Pra piorar, a série mostra Aquiles como um dos pretendentes de Helena derrotados por Agamenon.
Mais uma vez, isso não só não faz sentido, como quebra a narrativa do poema inteiro.
Em primeiro lugar, se Agamemnon fosse capaz de vencer Aquiles em combate, toda a história teria sido outra. Uma das premissas da Ilíada é que Aquiles era imbatível.
Em segundo lugar, Aquiles não era um dos pretendentes de Helena, por ser muito jovem. Logo, ele não estava obrigado a ir guerrear em Troia: ele vai por escolha própria, para ganhar honra eterna. Portanto, também está livre para ir embora a qualquer momento, se quiser.
(Se Aquiles fosse um dos pretendentes, se estivesse obrigado, por um pacto sagrado, a guerrear, ele não poderia nem parar de lutar nem ir embora sem sofrer insuportável desonra. Nesse caso, literalmente não haveria Ilíada.)
Outra mudança importante é sobre o status de Agamenon.
Todas as séries e filmes sobre a Guerra de Troia erram ao mostrar Agamenon como sendo “superior” aos gregos. Não era.
Na série, Odisseu chama Agamenon de “sir”, reconhecendo que estava acima dele, algo que não faz nenhum sentido.
Todos os heróis gregos da Ilíada são reis de suas cidades: Agamenon, Menelau, Odisseu, Aquiles, Ajax, Diomedes, etc. São iguais entre si. Como a guerra necessita de um comandante, elegem Agamenon.
Agamenon é o primus inter pares, ou o primeiro entre iguais, mas não está acima dos outros reis, não é mais reis que eles, não pode humilhá-los, não pode exigir obediência em assuntos que não digam respeito à guerra.
Aliás, todo o conflito da Ilíada vem justamente do fato de a liderança de Agamenon ser tão precária e depender sempre da aprovação e do consentimento dos outros gregos.
Se fosse um rei e eles, súditos; se fosse um general e eles, subordinados, etc, a relação seria totalmente diferente.
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Enfim, leiam a Ilíada, comprem um bom dicionário, evitem séries.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Gregos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Mitologia grega é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 17 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/mitologia-grega // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato