Para muitas de nós, é difícil, quase impossível, ler a Bíblia como literatura.
Literatura, quase que por definição, é inofensiva: podemos gostar ou não gostar, mas ela não nos humilha, oprime, exclui.
A Bíblia faz tudo isso. Muitas de nós foram expulsas de casa, sofreram agressões, não puderam casar com quem queriam, diretamente por causa de palavras escritas nesse livro que, agora, queremos estudar como se fosse literatura.
E é? A Bíblia é literatura?
Na verdade, a pergunta não é essa.
Literatura é o que nós quisermos considerar literatura, ler como literatura. Podemos, se decidirmos, estudar a Constituição de 1988 como literatura.
A pergunta, então, é: queremos ler a Bíblia como literatura?
Ler a Bíblia como literatura, ou seja, como arte, é encararmos o texto ao mesmo tempo como menos e como mais.
Menos porque ela é rebaixada do posto de verdade divina ou de guia de conduta, ela perde o poder de nos obrigar a qualquer coisa: passa a ser apenas um texto, como qualquer outro.
Mais porque, ao tirarmos o poder do texto, ou melhor, ao percebermos que ele não tem poder sobre nós, ficamos liberadas, mental e emocionalmente, para apreciar sua beleza e seu estilo, sua caracterização e sua poesia, tudo aquilo que antes (quando estávamos subjugadas por ele) não víamos.
É a diferença entre o modo como enxergamos nossos pais aos 15 anos, quando são, de fato, os tiranos de nossas vidas, e aos 50, quando são velhinhos que já não tem mais poder nenhum sobre nós e podemos, talvez, pela primeira vez, ver as pessoas que realmente são, os seres humanos que sempre foram, com muitos defeitos e também com muitas qualidades.
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Em um dado momento da Ilíada, o grego Diomedes vê Afrodite entrando na batalha e corre para atacá-la.
Existem várias maneiras de ler esse episódio, de estudá-lo, de comentá-lo, mas confesso que nunca, em nenhuma discussão em sala de aula, vi ninguém levantar o braço para apontar que Afrodite não existia, ou que vai ver Diomedes comeu pouco, tomou muito sol na cabeça e, por isso, estava delirando a presença de deusas imaginárias. (Aliás, se Afrodite nunca existiu… Diomedes também não!)
Entretanto, nas discussões sobre a Bíblia como literatura, comentários assim são comuns. Por exemplo, que os profetas na verdade não falavam com Deus, mas apenas eram esquizofrênicos que ouviam vozes.
Se a Bíblia fosse um texto jornalístico descrevendo uma verdade objetiva, ok, poderíamos interpretar assim. Mas o fato de que o profeta está em contato direto com Deus está dado no texto.
Se estamos lendo a Bíblia como literatura, que é a premissa do nosso curso, e não como livro sagrado ou como livro de história, onde esse tipo de leitura nos leva? Qual é vantagem para nós de ler o livro assim? Ilumina algo que estava escondido? Nos adiciona algum conhecimento?
O Livro do Gênese, a Teogonia de Hesíodo, As metamorfoses, de Ovídio, são algumas das mais belas obras literárias da humanidade. Todas as três contam a criação do mundo, dos animais, da humanidade, etc, de maneira que está (segundo nosso conhecimento científico atual) completamente errada.
Nada nos impede de começar a ler um desses livros e imediatamente atirá-lo longe: “Me recuso a ler essas mentiras! Por que ler algo que sei que está errado? Onde se viu a mulher vir de uma costela do homem! etc”
O livro continuará lá, um clássico da humanidade, só eu que não terei tido contato com seu conteúdo. Naturalmente, não cabe crítica: cada uma de nós lê somente o que quer.
Mas é importante entendermos porque estamos lendo o que estamos lendo: lemos essas obras não pela precisão de suas afirmações científicas, mas por seu valor artístico, estético, literário. (Ou, pelo menos, essa é a premissa do nosso curso.)
Não vemos uma pintura do Chagall e depreciamos seu valor dizendo: “Esse cara é louco, pessoas não flutuam!” Não assistimos Jurassic Park gritando de nossas poltronas que jamais teriam conseguido extrair DNA do dinossauro daquele mosquito preso no âmbar.
Existe uma chave de leitura que não é nem da verdade (ou seja, não estamos lendo para encontrar a verdade verdadeira dos fatos) e nem da mentira (ou seja, não usando nossa racionalidade para cotejar o texto com a realidade e apontar discrepâncias factuais e mentiras intencionais), mas a da ficção, da literatura, da arte.
Quando estamos lendo literatura, quando estamos apreciando arte, não faz nenhuma diferença se o que está sendo representado é real ou irreal, verdadeiro ou mentiroso, possível ou impossível. A única obrigação de uma obra de arte é fazer sentido em si mesma. Cada obra de arte é um universo fechado.
Esse é um curso de literatura, onde estamos lendo textos literários, de forma literária, em uma chave literária.
A Bíblia foi usada e instrumentalizada de formas pavorosas, e muitos crimes foram cometidos em seu nome. Ler a Bíblia como literatura não significa apagar ou perdoar esses crimes, mas simplesmente termos contato direto com o texto em si, e podermos chegar às nossas conclusões.
Da mesma maneira que toda pessoa é, ao mesmo tempo, melhor do que a pior coisa que ela fez, e também pior do que a melhor coisa que ela fez, um texto, um livro, uma obra de arte, também.
A leitura de uma obra de arte não é para condenar a obra, nem para absolvê-la. Não é uma leitura ética ou moralista. Lemos uma obra literária para conhecê-la e, no processo, nos conhecer.
Quando vemos o quadro de Goya Saturno devorando o filho, não nos sentimos obrigadas a dizer: “Que coisa errada! Não é certo devorar um filho!” O fato de não falarmos isso não quer dizer que consideremos correto devorar filhos. Assim como gostar do quadro não quer dizer que agora estamos obrigadas a devorar nossos filhos. Só quer dizer que estamos apreciando a obra como arte, e a arte não nos obriga a uma posição moral em relação a ela.
Como a arte prescinde de julgamento, ela nos permite viver vidas diferentes, perspectivas diferentes, uma maneira diferente de articularmos nossas emoções e pensamentos. Ela nos permite nos conectar com o mágico e com o transcendental sem necessariamente acreditar nele. Ela nos permite ir além dos limites de nossa própria humanidade, de nossa moralidade, de nossa realidade fática.
Mas só se nós nos abrirmos a ela.
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O texto originalmente acabava aqui. Mas, em nosso grupo de whatsapp exclusivo para as participantes do curso, onde publico tudo primeiro, surgiram algumas questões adicionais, e escrevi o adendo abaixo para respondê-las.
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Quando ensinei O Estrangeiro, nenhuma aluna achou necessário levantar o braço e afirmar que era imoral matar árabes na praia. Mas, lendo o Gênese, já tivemos uma aluna que afirmou ser imoral Deus afogar o mundo inteiro.
Não é que uma leitura literária da obra deva se eximir de julgamentos morais.
Somos seres morais e não temos como não ser. Lemos a história de Davi e Betsabeia, no Livro de Samuel, e imediatamente sentimos, sabemos que Davi agiu de forma imoral.
A questão é que comentar “Davi agiu de forma imoral” (ou dizer é errado matar árabes na praia”) é um comentário raso e inócuo, pois literalmente não leva a nada. Davi é um personagem literário. Sim, ele agiu de forma imoral. Mais importante, e daí? Aonde isso nos leva na leitura do texto? Qual conhecimento isso suscita?
Uma discussão literária não é uma discussão que dispensa ou se exime de temas morais e éticos, mas é uma discussão que acontece dentro dos termos da obra, e não presumindo que os personagens são reais.
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Toda narrativa, em algum grau, mostra personagens cometendo atos errados e imorais. A questão é se a narrativa aprova ou desaprova esses atos.
De qualquer modo, nosso julgamento é sempre da obra, e nunca do personagem em si — que, vamos lembrar, não existe, então, pouca diferença faz ele ser moral ou imoral. Já a obra, ela sim existe.
E, mesmo assim, como já não consideramos que a função da arte é ensinar moralidade, não é mais necessário criticar obras de arte por sua suposta imoralidade.
A exceção, naturalmente, é no ensino de crianças, que ainda estão em fase de desenvolvimento. Uma diferença importante entre o Livro de Samuel e Reinações de Narizinho é que a voz narrativa do primeiro livro condena e pune a transgressão de Davi, e a do segundo, premia a fala de Emilia, mostrando-a como a personagem mais legal e inteligente. Por isso, em uma sala de aula com crianças, é necessário contextualizar que Emília está sendo racista.
Já a narrativa de O Estrangeiro, de Camus, nunca desaprova Mersault assassinar o árabe, mas, em uma turma de adultos, pessoais já formada, seria totalmente desnecessário o professor se dar ao trabalho de apontar: “Mas, ó, é errado matar árabes na praia, hein?” Igualmente, nenhuma aluna jamais se sentiu obrigada a mencionar esse fato.
Não é porque estejamos aprovando a ação homicida de Mersault, mas simplesmente porque a discussão de um texto literário não passa por aí. Se vemos Saturno devorando o filho, na pintura de Goya, e não precisamos afirmar que isso é errado, por que nos sentiríamos intimadas a fazer isso com Mersault matando o árabe, com Davi mandando Urias para morte, com Deus afogando o mundo?
Não faz sentido ignorar a moldura narrativa, como se fosse invisível ou inexistente, enxergar através dela, e ver Davi como pessoa. Davi não existe nem nunca existiu. Ele chega a nós como uma personagem fictícia dentro de uma narrativa criada com propósito e arte. O objeto de nossa visão, de nosso julgamento, de nossa conversa, não é Davi enquanto pessoa, mas a obra literária como um todo.
Naturalmente, nossa discussão literária pode partir da premissa que Davi agiu de forma imoral, ou, do contrário, pode ser uma defesa da moralidade de Davi: ela só não pode se esgotar nisso. Como se nosso objetivo fosse decidir se Davi é um cara legal ou não.
O objeto, o assunto, o tema de qualquer discussão literária é sempre o texto em si.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Ler a Bíblia como literatura é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 29 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/ler-a-biblia-como-literatura // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
2 respostas em “Ler a Bíblia como literatura”
Texto maravilhoso…
Na minha opinião a bíblia como literatura é de baixíssima qualidade, querer comparar o livro de Gênese com a Ilíada ou a Teogonia é como querer comparar o Paulo Coelho com o Mário de Andrade.