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aula 02: escravistas & escravizados casa-grande & senzala grande conversa brasileira

Gilberto Freyre, historiador

Gilberto Freyre coloca a si mesmo como parte do objeto de sua análise: ele se faz personagem de seu próprio livro

Gilberto Freyre não era e não se considerava historiador, mas usava uma abordagem histórica para explicar problemáticas sociológicas. Ele estuda seu objeto de dentro, colocando-se ele mesmo como parte do objeto de análise: ele se faz personagem de seu próprio livro (Benzaquen). Enquanto historiador, ele realiza uma transposição, uma transferência de si mesmo ao passado brasileiro, para revivê-lo empaticamente, usando um estilo sugerido, instintivo, incompleto, etc, que o impede de ser definitivamente rotulado.

Os conceitos centrais à obra de Gilberto Freyre são, sem dúvida alguma, os relativos à miscigenação. Quando Freyre pensa cultura, raça e meio, esses três conceitos também fundamentais sempre acabam sendo articulados em torno da idéia de miscigenação.

Por um lado, ele afirma, como Boas, recusar o conceito de raça e de determinismo social; o conceito de cultura teria abolido o conceito de raça. Essa afirmação, aliás, é um dos sustentáculos da argumentação de Freyre. Mas, apesar disso, o autor ainda desliza aqui e ali: o conceito de raça nunca some por completo. Afinal, ser branco é uma etnia? É uma raça? É uma cultura? Se há uma coisa que não encontraremos em Casa Grande & Senzala são definições precisas.

Por isso, o regime de causalidade de Freyre é impreciso. O sucesso da empresa colonizadora de Portugal é ora atribuído à etnia de sua população, ora ao seu clima, história ou localização geográfica, ora à sua tolerância religiosa.

(Gilberto Freyre tem uma formação basicamente norte-americana: foi educado na Escola Americana de Recife, graduou-se pela Universidade de Baylor, no Texas, e pós-graduou-se pela Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque – onde foi orientado por Franz Boas.)

Por outro lado, parece utilizar o conceito neolamarckiano de raça, baseado na aptidão dos seres humanos em se adaptarem às mais diferentes condições ambientais e de incorporarem e transmitirem a seus descendentes as características adquiridas em sua interação com seu meio. Nessa perspectiva, o conceito de raça é histórico. Uma cultura é um corpo marcado pelo meio geográfico. A raça é mais efeito do que causa. Há uma diversidade racial e cultural marcada pelo meio.

De certo modo, Freyre inaugura a história do cotidiano no Brasil. Conscientemente, ele se afasta da história econômica, política ou militar e centra-se no dia-a-dia, na sexualidade, na vida privada. Não é imerecida a popularidade de Freyre entre os praticantes da Escola dos Annales.

Ao fugir da história dos grandes eventos, Freyre também é obrigado a fugir dos documentos oficiais. Suas fontes ele encontra-as em outro lugar: Freyre lamenta a falta de diários escritos por brasileiros do período colonial. Não só a maioria dos colonos era analfabeta como também a instituição da confissão servia para que os católicos daqui desabafassem a seus padres confidências que pessoas de outra religião teriam confiado a seus diários.

Finalmente, Freyre parece encontrar um perfeito meio-termo: as transcrições tomadas pelo Tribunal do Santo Ofício. Seria daí que tirou a maioria de suas informações sobre a vida sexual da colônia. Mas Freyre, religioso, parece acreditar demais no conteúdo dessas confissões, como se o fiel fosse sempre totalmente sincero ao confessar perante o Santo Ofício – ignorando, naturalmente, a natureza coercitiva das situações nas quais tais confissões eram adquiridas.

A própria natureza incompleta, aberta e coloquial de Casa Grande & Senzala faz com o que livro abunde hipóteses e teses, algumas estudadas a fundo, outras meramente mencionadas.

Primeira hipótese: o encontro das três raças constituidoras do povo brasileiro deu-se de modo “fraterno, solidário, generoso, democrático, viabilizado pela miscigenação.” Mas como nada nunca é definitivo em Freyre, essa idéia que ele transmite é matizada por diversas referências ao sadismo e crueldade do branco, militarmente vitorioso.

Segunda hipótese: a predisposição psicofisiológica do português foi o que tornou possível a miscigenação no Brasil. Do contrário, a tendência normal seria o vitorioso isolar-se dos perdedores, das raças inferiores. Mas tudo no português – essa é a discussão da segunda parte do livro – desde sua história até seu clima, o predispunha à miscigenação.

Terceira hipótese: é na casa-grande que se dá o encontro das três raças sob a égide do português; nessa casa grande que também inclui, dentro de si, a senzala e onde acontece a vida doméstica, privada e rotineira que, segundo Freyre, define o Brasil.

Quarta hipótese e, talvez, a que mais se aproxima de ser a tese central de Casa Grande & Senzala: a miscigenação não é a causa dos males do Brasil. Se o mulato brasileiro é mondrongo, isso não se deve à miscigenação, mas à má alimentação, à sífilis, e etc.

Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é, com certeza, um dos maiores livros de História do Brasil já escritos. Reconhecido no exterior e premiado. Escrito em uma linguagem bela, coloquial, aparentemente simples. Ambicioso e ambíguo. Aliás, como diz, Benzaquen, uma ambigüidade que é “ponto central, decisivo mesmo, de sua reflexão.” O tema de Freyre parece sempre ser a junção de dois objetos que não podem se juntar: casa grande & senzala, sobrados & mucambos.

O estilo do livro já é diferente: o autor não parece estar tentando provar nenhuma tese específica. O livro, ao contrário dos trabalhos acadêmicos de hoje, não está todo voltado e planejado em direção ao um fim. Em Casa Grande & Senzala, o meio parece ser mais importante do que os fins. Como diz Reis: “Freyre parece escrever para si mesmo, para dizer-se o que já compreendeu. Parece livro produzido de um só jato, possuindo todas as vantagens da intuição criadora mas sofrendo da falta de uma elaboração mais consistente.” O livro não é um argumento, é uma conversa de varandão de casa grande.

Esse mesmo estilo intuitivo e gostoso de ler causa, porém, grandes problemas à análise do livro. Tudo leva a crer, por exemplo, que Freyre concordava com a idéia de substituir raça por cultura. Vários de seus argumentos baseiam-se nisso. Mas, mesmo assim, a noção de raça aparece aqui e ali no texto, verdadeiros deslizes. Em um trabalho acadêmico e direcionado, esses deslizes teriam sumido. Mas aqui, em uma conversa de varandão, as contradições e ambigüidades continuam, como parte da linguagem oral, das idas e vindas de quem conta, sossegadamente, uma história no varandão de sua casa.

Não é a toa o livro ter esse ar de inacabado. Ele termina tão brusco que pega o leitor quase que de surpresa. Ou melhor, o livro não acaba. Nas palavras de João Ribeiro, citado por Benzaquen:

“[Gilberto Freyre] é desses escritores que não sabem acabar. O seu livro, conquanto grande (mais de quinhentas páginas), não conclui: as paredes esboçam uma cúpula que não existe. Convergem para uma abóbada que fica incompleta e imaginária. É um livro que nunca acaba.”

Referências

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz. Casa Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 1ª ed.

DAMATTA, Roberto. “A Originalidade de Gilberto Freyre.”, BIB, nº24, 1987.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: Editora Record, 1992. 29ª ed. [1ª ed: 1933]

REIS, José Carlos. Anos 1930: Gilberto Freyre. O Reelogio da Colonização Portuguesa.in As Identidades do Brasil, de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1999. 1ª ed.

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Escravistas & escravizados, do meu curso A Grande Conversa, a ideia de Brasil na literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 1º de abril de 2021 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Gilberto Freyre, historiador é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 18 de abril de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/gilberto-freyre-historiador // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: NewsletterInstagramFacebookTwitterGoodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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