Não é que essa época teve mais “gênios” do que a média: é que foi nessa época que escolhemos quem seriam nossos grandes autores, a medida do nosso bom escrever. E por que nessa época? Por causa da imprensa.
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Até a invenção da imprensa, as línguas mudavam muito, muito mais rapidamente. O dinamismo de uma grande massa iletrada era muito mais forte do que o conservadorismo estático de uma ultra minoria letrada.
O inglês muda mais nos duzentos anos entre Chaucer (m.1400) e Shakespeare (m.1616) do que nos quatrocentos anos entre Shakespeare e nós. (Qualquer falante de inglês consegue ler Shakespeare, ainda é a mesma língua; já Chaucer é como ler uma língua estrangeira cognata.) Igualmente, o espanhol muda mais entre o Cantar del mio Cid (1200) e Cervantes (m.1616) do que entre Cervantes e nós, etc.
Quando surgem os livros impressos, e eles se popularizam, e as pessoas começam a aprender a ler em massa, aumenta exponencialmente o público letrado para quem é importante “segurar” a língua na versão que conheceram, e que tem acesso a livros clássicos e canônicos que demonstram e exemplificam o que é, exatamente, essa língua correta que tanto defendem.
Em outras palavras, as línguas eram muito mais dinâmicas enquanto havia pouca gente dando piti pelos erros de gramática alheios.
Obviamente, como sabe qualquer um que lê Shakespeare ou Cervantes, as línguas continuam mudando, mas basta ler Chaucer e El Cid para ver que estão mudando em um ritmo muito mais vagaroso.
Hoje, quase todas as grandes línguas ocidentais são “instantâneos”, quase congelados no tempo, de como eram por volta do século XVI, XVII. Não é à toa que nossos grandes homens de letras paradigmáticos, que são o padrão de como nossas línguas devem ser usadas literariamente, são quase todos dessa época. Até hoje, ainda falamos:
- O italiano de Dante (m.1321) e Boccaccio (m.1375);
- O alemão da Bíblia de Lutero (1534);
- O francês de Rabelais (m.1553);
- O português de Camões (m.1580);
- O espanhol de Cervantes (m.1616) e dos poetas do Século de Ouro;
- O inglês de Shakespeare (m.1616) e da Bíblia King James.
É interessante notar que as primeiras línguas a, digamos, chegarem mais ou menos na forma que dura até hoje, são as que demoraram mais tempo para formarem suas unidades nacionais: Alemanha e Itália somente se unificam no século XIX. (Naturalmente, os recortes que peguei são aleatórios e idiossincráticos.)
Ou seja, não é que o período entre 1520 e 1620 teve mais “gênios” do que a média: é que escolhemos canonizar como nossos maiores gênios, como os exemplos do “bom português” ou do “bom inglês”, os melhores autores da época em que, graças à imprensa, nossas línguas desaceleraram, quase petrificaram.
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Toscano e castelhano, italiano e espanhol
Tanto o toscano quanto o castelhano foram naturalmente se impondo ao longo de séculos. Seja por motivos culturais, literários, políticos ou econômicos, essas línguas já eram a língua franca utilizada para a comunicação interna entre as diversas nações que se juntaram para formar a Espanha e a Itália. Quando chega a unificação, é só uma questão de sacramentar o que já era uma situação de fato.
Mesmo assim, até pouco tempo atrás, você jamais veria um veneziano chamando o toscano de “italiano” ou um leonês chamando o castelhano de “espanhol”. Era uma questão de orgulho nacional: esse último diria algo como “sou leonês, falo leonês e também falo castelhano, e somos todos espanhois.”
(Para os falantes dessas outras línguas nacionais, chamar uma delas, o castelhano, como se fosse a língua de todos, era quase como desmerecer sua própria língua.)
Chamar o toscano de “italiano” ou o castelhano de “espanhol” é algo que se popularizou muito mais fora do que dentro desses países. (Se você é um chinês, ou um alemão, ou um australiano, é muito mais fácil de você chamar de “espanhol” a língua que falam no país que você sabe que se chama “Espanha”.)
De modo geral, até hoje, os falantes das Américas, argentinos ou chilenos, tendem a dizer que falam “espanhol”. Já na Espanha, “castelhano” (Naturalmente, estou falando em linhas muito, muito gerais.)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quinta aula, Idade Média, e a sexta aula, Navegações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Por que existem tantos gênios da literatura no Renascimento? é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 14 de outubro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/genios-da-literatura // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato