Como intérprete de sonhos, Freud se via como José; como líder de um movimento, se via como Moisés, libertando seu povo da ignorância e, como filho que renunciou a autoridade dos pais, se via como assassino de Moisés.
Às vésperas da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, em 1939, talvez no ponto mais baixo do povo judeu em cinco mil anos de história, um dos judeus mais famosos do mundo tem a audácia de publicar um livro, Moisés e o Monoteísmo, sugerindo que outro dos judeus mais famosos do mundo, Moisés, na verdade não era judeu, e sim egípcio, e tinha sido assassinado pelos judeus. Há de se admirar sempre a coragem de Freud.
Em O futuro de uma ilusão, a religião seria uma espécie de neurose cultural, uma ilusão perigosamente próxima da neurose delirante, a sobrevivência na idade adulta de um modo de pensar infantil.
Já em Totem e Tabu, Freud especula que o ser humano vivia em hordas sob o domínio de um pai primordial, até que os filhos se rebelam e matam o pai, para se libertar de sua tirania. Mas o projeto falha: o pai, morto, introjetado nos filhos, se torna ainda mais tirânico e mais poderoso. O que fora proibido pelo pai agora é proibido pelos próprios filhos. Essa interiorização das proibições do pai, entretanto, é para Freud o que possibilita a civilização.
Segundo ele, especialmente em O mal-estar da civilização, nossa capacidade de renúncia dos desejos era parte integrante do projeto de civilização. Nesse quesito, ele passa a ver as religiões abrâmicas como progresso em relação às mentalidades pagãs anteriores, pois seriam fundadas em um pensamento mais sofisticado e abstrato, um triunfo da intelectualidade sobre a sensualidade, da racionalidade sobre a percepção sensorial. Ao seguir o que Freud chama de “caminho masculino de renúncia edipiana do instinto para se submeter à lei do Pai”, os fieis dessas religiões teriam obtidos revolucionários avanços econômicos, intelectuais, sociais.
Voltando a Moisés e o Monoteísmo, o assassínio do egípcio Moisés por seus seguidores seria uma repetição inconsciente do assassinato do pai primordial, e com os mesmos resultados: seguiu-se a culpa moral que institui a civilização. E conclui Freud:
“Com o pecado original, a morte entrou no mundo. Mas, de fato, o crime merecedor dessa fama foi o assassínio do pai primordial, que depois virou Deus. Mas a memória desse assassínio se perdeu e, no lugar dele, ficou apenas a memória do filho desse Deus que se deixou morrer sem culpa e, assim, assumiu a culpa dos pecados de todos os homens.”
Esse foco no bode expiatório do Cristianismo será a chave de leitura de toda a obra de René Girard, aliás.
(Referência: capítulo “Crítica psicanalítica”, in A Bíblia pós-moderna, Bíblia e cultura coletiva, de David Jobling et al.)
* * *
Freud é um dos grandes autores de todos os tempos. Tudo o que sei sobre escrever textos argumentativos aprendi com ele e com Darwin: ambos escreviam com carinho e com vigor, sabendo que pisavam em terreno minado, se preparando para defender cada palavra, já antecipando todas as possíveis ressalvas e contraargumentos que poderiam estar passando na cabeça de suas leitores.
(O outro membro da tríade “gênios do século XIX que viraram nosso mundo de cabeça pra baixo” não era um grande escritor nem ensaísta: Marx, hoje, a gente lê pelas ideias. Já Freud e Darwin são deliciosos de ler inclusive pelo estilo.)
Conheci primeiro o Freud ensaísta da cultura, da religião, da história, autor das quatro obras-primas citadas acima: O mal-estar da civilização, Totem e Tabu, O futuro de uma ilusão e Moisés e o Monoteísmo. Mais tarde, empolgado, fui ler o resto da obra e levei um choque ao conhecer o Freud médico, cientista, fundador da psicanálise. Vejam, sou um blefador profissional, ficcionista desde criança, fofoqueiro por vocação: reconheço meus iguais. Freud oferece hipóteses com base em rigorosamente nada e, na página seguinte, já está tratando suas hipóteses como fatos: pra piorar, como era um ensaísta de gênio, ele vai nos levando, seduzindo, enredando, a tal ponto que é difícil de ver que nada daquilo faz nenhum sentido.
O método psicanalítico é um método de crítica literária: aplicado a uma obra de arte, como Freud fez diversas vezes, é genial. Aplicado a pessoas, nem tanto. Com certeza, não é ciência, como ele afirmava e pretendia. Se a psicanálise funciona, ela funciona da mesma maneira que a confissão católica: ou seja, funciona apesar de si mesma, simplesmente porque conversar funciona. Somos seres que conversam, que se autoelaboram na fala, no diálogo. Sobre a psicanálise, posso comentar a mesma coisa que um editor disse ao recusar um romance: “seu texto é bom e original. Infelizmente, a parte que é boa não é original, e a parte que é original não é boa.”
Não tenho interesse algum em chutar cachorro morto e polemizar sobre psicanálise. Como nós, pessoas brasileiras, vivemos em um dos poucos países onde a psicanálise ainda é universalmente levada a sério (os outros são França e Argentina), às vezes fica difícil de nos darmos conta como ela é uma piada no resto do mundo. Durante muitos anos, me incomodava não conseguir conciliar o Freud brilhante dos textos ensaísticos com o Freud blefador dos textos psicanalíticos, até que encontrei um livro que resolveu minhas dúvidas, ao detalhar todos os problemas metodológicos da psicanálise: Porque Freud Errou: Pecado, ciência e psicanálise, de Richard Webster, publicado no Brasil pela Record, em 1999. (Escrevi mais sobre esse livro aqui.)
Graças a Webster, fiz as pazes com Freud e, agora, posso apreciar com gozo os seus brilhantes ensaios. Harold Bloom incluiu Freud em sua seleção dos 100 maiores gênios da humanidade, elogiando-o nos mesmos termos que eu usaria:
“O gênio de Freud encontra-se, atualmente, obscurecido, porque suas asserções científicas são alvo de críticas, ou mesmo porque é defendido, como cientista, por um minguado número de fiéis seguidores. Tanto os que o difamam quanto os que o defendem me parecem irrelevantes; atacar Freud pelo seu cientificismo, em última instância, parece tão sem propósito quanto depreciar Goethe por suas pesquisas com plantas e cores. Ou, variando a analogia, a insistência de Freud de que a psicanálise faria uma contribuição à biologia é, a meu ver, tão interessante quanto as declarações de Dante de que a Divina Comédia é a pura verdade sobre Deus, Inferno, Purgatório e Paraíso. Lemos Dante com admiração e gratidão estética, ao mesmo tempo em que hesitamos diante da teologia do poeta. E assim lemos Freud, maior ensaísta do seu tempo, embora lhe descartemos a tendência de tornar literal as suas próprias metáforas. Freud é tão metafórico quanto Goethe ou Montaigne, e, como eles, é, antes de tudo, um escritor. … As minguantes sociedades psicanalíticas estarão extintas antes do advento da próxima geração. A expressão “o Freud literário” tomar-se-á redundante, tão estranha quanto dizer “o Montaigne literário” ou “o Goethe literário”. A ciência (ou cientificismo) era a defesa de Freud contra o antisemitismo.”
De Freud no Brasil, recomendo enfaticamente sua obra completa que está sendo lançada pelas Companhia das Letras, com tradução de Paulo César de Souza.
* * *
Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Bíblia Hebráica, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
* * *
Freud e a Bíblia Hebráica é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 25 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/freud-e-o-antigo-testamento // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
2 respostas em “Freud e a Bíblia Hebráica”
[…] adorno, brecht, freud, hoffmann, kafka, novalis, schnitzler, zweig. […]
Muito bom os comentários e estudos
Queria poder aprender mais sobro assunto a biblia na visão da psicanalise.
Muito obrigado