Os Estados Unidos, enquanto país, tem uma relação única com seus próprios ideais fundacionais.
Talvez a coisa mais dificil de entender sobre os EUA é que eles são, verdadeiramente, um caso único de nação fundada em torno de um ideal abstrato universalista que as suas habitantes ainda levam muito a sério.
Por um lado, isso dá origem à uma teoria belíssima, que vai desde a Declaração de Independência até o discurso da Amanda Gorman na posse do Biden, passando pelo discurso de Gettysburg e pelas Folhas de Relva.
Por outro, dá origem à uma prática canalha ao extremo, pois ela constantemente se refugia na belíssima teoria para escapar aos horrores que comete.
Não é à toa que, nos últimos 150 anos, o maior inimigo da paz mundial tem sido os Estados Unidos. Não só é o único país a jamais ter usado bombas nucleares, mas também certamente é o país que mais países invadiu, que mais governos derrubou, que mais bases militares estrangeiras fundou, etc. (O segundo lugar está tão distante que não imagino nem quem seria.)
Os EUA são como aquele marido que bate na esposa mas diz, sustenta, acredita, para as outras pessoas e, mais importante, para si mesmo, que, no fundo no fundo, ele tem um coração bom, é uma boa pessoa, que os tapas foram lapsos, que as surras aconteceram “para o bem dela”, etc. Existe sempre uma dita bondade inerente, profunda e escondida, que justificaria a prática criminosa aqui na superfície.
O problema é que não existe marido bom e carinhoso que bate na esposa. Um marido bom e carinhoso que bate na esposa não é um marido bom e carinhoso: é só um marido que bate na esposa.
Outros países, necessariamente, se fundam em bases mais práticas. Não menos sangrentas, claro. Como disse Benjamin, “Não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie.”
De modo geral, em outros países que não os EUA, e aqui podemos usar o Martin Fierro e a Argentina como contraponto, não existe uma teoria abstrata ideal da “argentinidade”. Ser uma pessoa argentina (ou brasileira, ou australiana, ou chinesa) é uma prática, uma construção, um projeto: é um processo de entender o que somos e fizemos até agora e o que queremos ser e fazer no futuro. Crimes são cometidos, como sempre são, e eles podem ser encarados, esquecidos, punidos, etc, mas pelo menos não se tem o alvejante do “ideal abstrato universalista” para lavá-los e justificá-los.
Aqui, alguém poderia argumentar que não faltam nações que cometem crimes em nomes de “ideais abstratos universalistas”, como os jacobinos durante a Revolução Francesa, ou os expurgos da União Soviética, etc, e infinitos exemplos. Justo.
Mas, nesses casos, a nação não foi fundada nesses “ideais abstratos universalistas”. Pelo contrário, a nação já existia enquanto coletividade plenamente formada quando esses ideais surgem, triunfam, se implementam.
Dito de outra maneira, o governo cubano revolucionário, para se legimitar e por sinceramente acreditar nisso, passou os últimos 60 anos falando de “Revolução Cubana” e de “Cuba” como se fossem sinônimos perfeitamente sobrepostos. Mas existem milhões de cubanos conservadores que discordam com toda a força e toda a sinceridade. Para eles, Cuba, a essência da cubanidade, é outra e, pelo contrário, a Revolução (e seus ideais abstratos) foi algo feito contra essa cubanidade, imposto sobre essa cubanidade.
Um cubano conservador considera que Cuba é muito mais do que a Revolução Cubana, que a Revolução Cubana foi um crime impetrado sobre a cubanidade. Assim como um francês ou um russo pode dizer o mesmo sobre as Revoluções Russa e Francesa.
Uma estadunidense jamais dirá isso em relação ao Sonho Americano.
Modificar as frases acima para aplicá-las aos Estados Unidos (por exemplo, dizer que os Estados Unidos são muito mais do que o Sonho Americano, ou que o Sonho Americano foi algo que foi feito contra, sobre a essência do país, etc) resultaria em frases que, aos ouvidos de uma pessoa estadunidense, soariam, no mínimo, non-sense, na pior das hipóteses, ofensivas.
A maior concessão que uma estadunidense fará é admitir que a prática do Sonho Americano foi diferente da sua teoria, que ele talvez precisa ser mais inclusivo no século XXI, etc, mas o Sonho Americano não tem como ser separado da idéia do país, sob risco do país se desfazer junto.
Porque os ideias abstratos universalistas que definem os EUA até hoje, que estão na Declaração de Independência e na “Canção de Mim Mesmo”, não são ideais aplicados posteriormente à uma coletividade já formada mas, pelo contrário, são a própria cola fundacional que, desde o primeiro minuto, formou essa coletividade.
Se existe algum “excepcionalismo americano” é justamente esse: de ser talvez a única nação não apenas fundada a partir de ideais abstratos universalistas, mas que (apesar da prática muitas vezes criminosa) de fato leva esses ideiais a sério e os traz sempre na ponta da língua, reafirmados, rearticulados.
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Lembrando nossa aula sobre Revolução Francesa.
Não foi à toa que as mesmas pessoas que elaboraram a mais bela, mais humana, mais democrática Constituição de todos os tempos, colocando a felicidade como direito humano fundamental, também foram as mesmas pessoas que, nos meses seguintes, elaboraram também pela primeira vez uma ideia única na humanidade: de que a eliminação física dos adversários era um programa de governo aceitável e possível e adequado e que isso, a medio e longo prazo, levaria à felicidade geral da nação.
Talvez seja isso. Quanto mais alto seu ideal, mais alto é o prêmio. Se o objetivo é apenas a vitória de um país, posso conceber pessoas razoáveis sendo contra isso. Mas se o objetivo é a felicidade geral de todos, quem poderia ser contra isso? Só um malvado irredimível.
E malvados irredimíveis a gente elimina, e, pior, elimina de consciência limpa e tranquila, para o bem geral da coletividade.
Por isso, no meu livro Atenção., e em tudo q escrevo, o meu foco é sempre no que fazemos, não no que falamos.
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Existe um mito, muito querido pelos estadunidenses, que os EUA eram um país pacífico e isolacionista, que, no século XX, foi arrastado quase que à força para o cenário mundial, para resolver problemas que os europeus não conseguiram resolver sozinhos.
Não é verdade.
A primeira aventura imperalista além-mar dos EUA acontece em 1898, quando eles tomam Cuba, Porto Rico, Filipinas, da Espanha por causa de uma provocação inventada.
Antes disso, eles já tinham, com base também em outra provocação inventada, tomado mais da metade do território do México — em uma guerra que Whitman celebrou mas Thoreau teve o bom-senso de lamentar.
Meu TCC de graduação foi justamente comparando a retórica imperialista estadunidense de 1898, durante a conquista de Cuba, com a retórica imperialista dos Pais Fundadores, em 1776, para demonstrar que era essencialmente a mesma retórica: o projeto sempre foi imperialista e expansionista.
A diferença é que, em 1776, eles não tinham os meios para fazer o que fizeram em 1898.
Abaixo, um trecho da introdução desse TCC:
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Os Pais Fundadores Teriam Ficado Orgulhosos: A ‘Independência’ Cubana Vista Através da Independência Norte-Americana
“Como pôde aquele povo que, em 1776, promoveu tão democrática e igualitária revolução ter sido o mesmo que, pouco mais de um século depois, comportou-se de maneira tão colonialista e imperialista ao fomentar e se aproveitar da “independência” de Cuba?
Se eu achasse que a mudança de comportamento ianque foi conseqüência de um ou mais acontecimentos decorridos durante este intervalo de tempo, a comparação perderia o sentido. Mas, pelo contrário, comparo a independência norte-americana à cubana pelo motivo simples de tentar provar que todos os elementos filosóficos, culturais e políticos que justificaram e instigaram a intervenção no Caribe em 1898 já existiam em 1776, apesar das aparências em contrário. Os eventos cruciais da história norte-americana entre 1776 e 1898 – a verbalização da Doutrina Monroe, a cunhagem do termo Destino Manifesto, a “Era of Mixed Feelings”, a conquista de metade do território mexicano e a própria Guerra Civil e Reconstrução – não serviram para alterar substancialmente o pensamento estratégico nacional em relação ao Caribe e a Cuba, ambos cobiçados desde muito.
Tentarei dar consistência ao meu argumento de que tudo o que os norte-americanos fizeram em 1898, os Pais Fundadores também teriam feito, de forma apavorantemente similar, se apenas tivessem tido os meios e a motivação. Em suma: demonstrar que o imperialismo ianque de 1898 não foi uma desvirtuação dos ideais de 1776, mas uma conseqüência natural deles.
E quando me refiro à Doutrina Monroe e ao Destino Manifesto, não uso os termos “verbalizar” e “cunhar” por acaso. Pois acredito que muito antes de ser oficializada como política de governo em 1823, o conceito de “América para os [Norte-] Americanos” já existia, exercendo forte influência no processo revolucionário. Assim como a idéia de Destino Manifesto não surgiu nos editoriais de John O’Sullivan para o “Democratic Review”, em 1845, mas apenas foi uma verbalização especialmente feliz e duradoura de outro conceito que definia a nação norte-americana desde seu nascimento.
O ensaio, portanto, consiste de quatro partes. A primeira, mais longa, é um panorama geral da Guerra Hispano-Americana. Esse conflito funcionará como meu estudo de caso e será a análise do comportamento e da retórica norte-americana durante ele que provará minha hipótese. Também serão introduzidos, nessa parte, alguns dos conceitos-chave utilizados na análise posterior, como Destino Manifesto, Isolacionismo e Navalismo. Por fim, dado que a maioria das teorias explicativas dessa guerra centra-se ou no lado norte-americano (quando feitas por eles) ou no lado cubano (quando feitas por latino-americanos em geral), procurei fazer um esforço para resgatar as motivações e contradições dos esquecidos espanhóis.
A segunda parte é um breve resumo da independência norte-americana, tendo-se sempre em mente o subtítulo dessa monografia: “a ‘independência’ cubana vista através da independência norte-americana”. Ou seja, a descrição da última será breve pois procuro nela apenas por parâmetros e tendências através dos quais observar a primeira.
A terceira parte é um breve resumo da ‘independência’ cubana. Ao contrário do que pode parecer, não se trata de mera repetição da primeira parte. Enquanto a primeira busca fornecer um panorama geral de todo o conflito, a terceira é um olhar mais dirigido para o processo de independência em si, um olhar que se beneficia dos subsídios estabelecidos na primeira parte.
Finalmente, na quarta e última parte, a narrativa da metamorfose da Emenda Teller em Emenda Platt será o fio condutor da análise que buscará provar a hipótese proposta.”
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a nona aula, Nações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso aconteceu entre julho de 2020 e março de 2021 — quem se inscrever depois dessa data tem acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Estados Unidos, nação abstrata é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 27 de março de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/estados-unidos-nacao-abstrata // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato