Quando uma participante do curso Introdução à Grande Conversa perguntou “de onde veio a expressão calcanhar de Aquiles?“, fiz uma distinção importante: esse mito está registrado em tal livro, mas esse livro não é a fonte do mito; a fonte do mito é a própria mitologia. (O texto completo está aqui.)
Outra pessoa perguntou leu o texto e perguntou:
“Entendi que o livro não é a fonte do mito, mas que a gente conhece o mito por causa do livro, certo?”
Na verdade, não. Essa é precisamente a diferença.
Se esse livro desaparecer, se nunca tivesse existido, provavelmente teríamos a expressão “calcanhar de Aquiles” do mesmo jeito.
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A mitologia é como se fosse um dicionário.
Pensem em um lago. Todas sabemos que um lago é uma extensão de água cercada de terra por todos os lados.
Se alguém me perguntar “de onde veio essa informação?”, a resposta não é “do dicionário”.
Pois o dicionário não é a fonte dessa informação: o dicionário apenas registra que essa informação existe.
O dicionário nunca é prescritivo, ou seja, ele não diz como as pessoas devem usar a língua: ele, por definição, é descritivo, ou seja, descreve como as pessoas de fato usam a língua.
(Quem decide o significado de “lago” somos todas nós, não o dicionário. O dicionário é uma ata da língua, que somente registra o que nós já decidimos e praticamos.)
Da mesma maneira, se todos os dicionários sumirem, a palavra “lago” não some, nem esqueceremos o significado dela.
Nós, nascidas e criadas em uma sociedade cada vez mais dependente da palavra escrita, perdemos um pouco a noção da importância da oralidade, da quantidade enorme de coisas que sabemos sem que precisem estar escritas em nenhum lugar.
Hoje em dia, a língua é praticamente o único grande exemplo que nos restou. Quando falamos, escrevemos, pensamos em português, estamos usando uma belíssima e eficiente tecnologia coletiva e anônima, orgânica e milenar. Quem inventou a definição de “lago”? Ninguém. Essa palavra, assim como a Ilíada, apenas chegou até nós porque, ao longo de todos os milênios desde a sua “invenção”, ela foi usada continuamente por milhões e milhões de pessoas.
A Ilíada e a Odisseia começaram a circular oralmente em uma época quando os gregos ainda não tinham nem alfabeto. Não se menciona a palavra escrita nos poemas, com uma breve exceção. Era um mundo sem livros e sem bilhetes, sem cartazes e sem relatórios. Todo o conteúdo, toda a sabedoria, todas as informações, dependiam da memória e eram transmitidas oralmente.
O que hoje chamamos de “mitologia grega”, essa expressão que nos parece tão acadêmica e erudita, essa “coisa” que pagamos cursos para aprender e lemos livros para entender, isso era o ar que essas pessoas analfabetas respiravam, era sua vida, era seu contexto.
Esse é o mundo que precisamos habitar ou, pelo menos, conceber, se quisermos minimamente entender e apreciar a Ilíada.
Os gregos antigos sabiam que Aquiles morreu em Tróia e que Tróia, na sequência, foi destruída, da mesma maneira que nós sabemos que lago é uma extensão de água cercada de terra por todos os lados.
Alguns comentários que surgiram aqui no grupo:
“Ué, mas Homero vai acabar a história sem mostrar a morte do Aquiles?”
“Na Odisseia o Aquiles está morto, isso “prova” que ele morreu na Ilíada ou livros diferentes, histórias diferentes?”
Homero, ou o bardo cantando a Ilíada naquele momento, não precisa mostrar a morte de Aquiles porque Aquiles sempre esteve morto. (Ninguém não-sabe que Aquiles morreu em Tróia.)
A morte de Aquiles não acontece em nenhum livro: para um grego antigo, que nem mesmo conhecia a escrita, quem dirá livros!, a morte de Aquiles é um fato da vida.
Aquiles sempre esteve morto. Aquiles sempre morreu em Troia. É isso que Aquiles fundamentalmente É: um guerreiro invencível que vai para Tróia, mata Heitor e morre lá.
O mesmo vale para todas as grandes histórias da tradição mitológica grega: a caça calidônia, Jasão e os argonautas, os sete contra Tebas, Teseu e o minotauro, Édipo e seus filhos, a gigantomaquia, todo esse gigantesco ciclo de histórias.
As pessoas sabiam a história de Aquiles como nós sabemos que os pais de Bruce Wayne foram mortos na saída do cinema, ou que Papal Noel desce pela chaminé na noite de Natal, ou que o Curupira tem os pés voltados pra trás.
Tanto o bardo quanto os ouvintes sabiam a história toda, sabiam o que tinha acontecido antes e o que iria acontecer depois.
É impossível ver o desespero de Agamenon em trazer Aquiles de volta à batalha sem pensar:
“Esse é um homem que sacrificou a própria filha por essa guerra.”
É impossível ver o jantar de reconciliação entre Aquiles e Príamo sem pensar:
“Em breve, o filho de Aquiles arrastará esse digno ancião pelos cabelos e o matará humilhantemente no altar de seu próprio palácio.”
Essas informações não estão na obra, mas nós lendo, o bardo cantando, o público ouvindo, todas sabemos.
Mais importante, a obra presume que sabemos. Essas informações adicionam camadas, complexidade, significado ao que está na obra.
Recomendação: dicionário de mitologia
Minha melhor sugestão para quem quer o contexto da mitologia grega é comprar um dicionário de mitologia grega.
Porque vai servir para a Ilíada, vai servir para a Orestéia, vai servir para as Bacantes, vai servir para o resto da vida, para toda vez que alguém mencionar Antenor, ou Pantasiléia, ou Cassandra, e bater uma dúvida, vocês vão lá e veem quem é.
Meu dicionário preferido de mitologia, o que uso todo dia e resolve minha vida, é o da Jenny March, acima, dividido em verbetes, com o nome e a história de simplesmente todo mundo que é mencionado em todos os poemas, peças, livros. Ele é infinitamente útil, para a vida inteira, não poderia recomendar com mais empolgação.
A autora também escreveu um guia de mitologia, abaixo, narrativo e dividido em capítulos, publicado no Brasil. (Não gosto tanto, mas o capítulo da Guerra de Troia resolve todas as dúvidas.)
O melhor dicionário em português é o do Mario Gama Kury, que não é efetivamente bom: ele não fala de todo mundo, só das figuras principais. Para a maioria das leitoras, porém, o dicionário do Kury será mais que suficiente, foi escrito por um dos maiores experts em mitologia que já tivemo e está disponível em ebook.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Gregos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Em qual livro Aquiles morreu?: conhecimento e oralidade é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 17 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/em-qual-livro-aquiles-morreu-conhecimento-e-oralidade // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato