Cada obra de arte só pode ser julgada e fruida em relação a si mesma, suas premissas, seus objetivos.
* * *
Uma crítica comum a trabalhos de ficção é “não é realista”, “não é inverossímil”, “ninguém reagiria assim”, etc.
De fato, algumas vezes a falta de realismo foi erro de quem escreveu. Muitas vezes, entretanto, é proposital.
Talvez a maioria das pessoas não reagisse à situação A do jeito X. Mas o fato de a protagonista dessa história reagir… comunica justamente que estamos acompanhando a história de uma pessoa excepcional, do tipo que (justamente!) reage à situação A do jeito X. A história é essa.
Não posso, por exemplo, em um texto sobre História, extrapolar que o travestismo era comum no Segundo Reinado com base em um punhado de homens que se travestiam. Mas super posso escrever um romance inteiro sobre um desses homens. E, se alguém falar:
“Peralá, isso é inverossímil! Quase ninguém se travestia no Segundo Reinado”
Posso afirmar:
“Esse romance não é sobre o que todo mundo está fazendo, mas sobre uma dessas poucas e raras pessoas.”
É impressionante a força do poder ideológico de uma certa ideia de realismo. (Vamos lembrar, por definição, as leitoras, o público, nunca está errado: esse texto é apenas sobre as premissas que norteiam essas leituras.)
As pessoas leitoras falam coisas como “está igualzinho à realidade”, “é assim mesmo que acontece”, “as pessoas falam bem assim”, etc, como se fossem elogios, como se a função máxima da ficção fosse espelhar e reproduzir a realidade, e falam coisas como “isso aqui foi grotesco”, “ninguém faria assim”, “isso aqui está ambiguo”, etc, como se fossem críticas, como se a ficção não tivesse muitas vezes o objetivo de ser grotesca, ambigua, irrealista, ou de retratar pessoas que não se comportam como a média das pessoas.
Na prática, se tivesse que dar um conselho prático de leitura, seria: Um texto literário é um mundo fechado e, idealmente, só deve ser julgado em relação a si mesmo e aos seus objetivos.
E quais são esses objetivos? Um exemplo.
Se eu assistir uma peça de Tchecov e uma de Brecht como se ambos estivessem tentando atingir os mesmos objetivos, vou seriamente não entender uma delas.
Enquanto Tchecov, grosso modo, seguia uma pegada mais realista e naturalista, Brecht tentava o oposto: ele lutava contra uma certa tirania do realismo e buscava um teatro mais povoado por arquétipos, um teatro que continuamente lembrava ao público que ele estava em uma peça de teatro.
Naturalmente, qualquer pessoa tem todo direito a preferir Tchecov a Brecht, ou vice-versa. (Amo os dois, mas Tchecov é, isolado, meu autor preferido de todos os tempos.)
O que não dá é assistir uma peça de Brecht esperando uma peça de Tchecov. O que não dá é criticar Brecht por não ter feito justamente as coisas que estava lutando para não fazer, por não seguir o manual que ele estava tentando destruir.
E digo “não dá” não porque quebra alguma pretensa regra artística transcendental blá blá blá. (fodam-se essas regras) mas porque quebra a própria experiência estética de quem está assistando e lhe impede de aproveitar a obra em seus próprios termos.
Enfim, voltando ao meu conselho, cujo único objetivo é permitir que você aproveite cada obra de arte em sua plenitude:
Cada obra de arte só pode ser julgada e fruida em relação a si mesma, suas premissas, seus objetivos.
* * *
Como consumir arte narrativa é um texto no site do Alex Castro, publicado originalmente no dia 12 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/como-consumir-arte-narrativa // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato