Algumas pessoas do curso Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do ocidente através da literatura fizeram diferentes variações de uma mesma dúvida:
“Em se falando de literatura ocidental, se a Idade Média não foi época das trevas… por que a grande literatura sumiu? O que houve com as grandes obras do cânone literário? Por que eram tantas na Antiguidade, tantas a partir do Renascimento, mas, de repente, existe um vazio na Idade Média? Na Alta Idade Media, não tem quase nada, só Beowulf e algumas sagas. Na Baixa, onde já existem algumas, Canção de Rolando, Cantar do meu Cid, Ciclo do Rei Arthur, e depois Divina Comédia, Contos da Cantuária, Decameron, etc, ainda assim não dá pra se comparar à Antiguidade e ao pós-Renascimento em quantidade e qualidade. Por quê?”
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Uma das coisas mais interessantes sobre o preconceito contra a Idade Média é a nossa tendência a chamar de “renascentista” o que consideramos bom e “medieval” só aquilo que é ruim.
Por exemplo, Dante (m.1321) e Petrarca (m.1374) são constantemente referidos como “renascentistas”. Já fenômenos modernos como a Inquisição espanhola (começa em 1478), as Guerras religiosas (começam em 1562) e a Caça às bruxas (fica quente mesmo a partir de 1580) são constantemente pensadas, faladas como medievais.
Em termos de filosofia, a Idade Média foi dominada pela Escolástica. Uma das teorias mais famosas da filosofia escolástica é justamente a navalha de Ockram: quando temos várias explicações, a mais simples geralmente é a verdade.
Por exemplo, um dos alunos compartilhou uma lista do Harold Bloom com as obras canônicas da humanidade e apontou para o enorme buraco que havia na Idade Média.
Considerando esse fato, qual é a explicação mais simples?
- Ter havido uma grande noite de mil anos na Europa onde não se escreveu literatura?
- Ou que o buraco é fruto lacunas da formação literária do Bloom, formação literária essa que é pautada pelos nossos interesses e preconceitos?
Em outras palavras: se a Igreja era a grande força que dava unidade cultural à Idade Média; se quase todas as produções literárias e filosóficas se davam dentro da Igreja; se nós hoje, em oposição, somos todas laicas, mundanas, antirreligiosas, etc…
… é de surpreender que a vibrante produção literária medieval cristã, feita por essa Igreja, dentro dessa Igreja, chancelada por essa Igreja, confirmando e reiterando suas prioridades e preconceitos cristãos, etc, nos pareça inferior em comparação à produção literária anterior e posterior que, pelo contrário, confirma e reitera os nossos preconceitos e prioridades?
Uma outra questão: literatura precisa ser escrita?
No começo da Idade Média, temos o fim de um Império Romano centralizado onde todos falavam e escreviam latim clássico. Ao seu final, o latim já morto e todas as grandes línguas ocidentais se encontram maduras e (quase) em seus estados atuais. Para nos movermos de um desses extremos a outro, passamos por mil anos de mudanças linguísticas excessivamente dinâmicas, com muita competição entre o latim clássico, o latim vulgar e as novas línguas românicas que começavam a surgir. Qual usar? Qual preservar?
Durante grande parte da Idade Média, a literatura mais poderosa e vigorosa era criada oralmente, na língua vernácula, e não era registrada por escrito, porque não se considerava que nada em vernáculo merecesse essa “honra”.
Enquanto isso, o que estava sendo escrito e registrado ainda em latim eram obras de cunho religioso, não por isso menos brilhantes, como a obra de Tomás de Aquino e Bernardo de Claraval, Mestre Eckhart e João Cassiano, para citar somente quatro dos meus favoritos pessoas, que hoje não são valorizadas justamente por serem tão cristãs.
Dentro da Idade Média, as obras mundanas mais famosas e mais antigas, da Alta Idade Média, como Beowulf, Canção de Rolando e Cantar do meu Cid, evidenciam, em seu próprio conteúdo, assim como a Ilíada, as marcas dos séculos de transmissão oral pelos quais passaram antes de serem finalmente postos por escrito.
Ou seja, não é porque ela não chegou até nós que não houve literatura.
Obras como a Divina Comédia, de Dante, Os contos da Cantuária, ou Troilo e Crisseida, de Chaucer, ou o Decameron, de Boccaccio, estão certamente entre as grandes obras da humanidade de qualquer época. O próprio Cantar do Cid, obra que praticamente inaugura o espanhol, me deixou impressionadíssimo por sua qualidade e decidi até traduzi-lo ao português.
Aliás, o Poema do Cid, apesar de termos muitas evidências de sua enorme popularidade por muitos séculos, por pouco não chega até nós: temos somente um manuscrito, bem pobre e mal-cuidado, sem a primeira folha e com duas grandes lacunas em seu conteúdo, claramente produzido não para a preservação do texto mas para apoio de performances orais — no final, a última marcação é um pedido por mais vinho.
Quantas outras obras tão boas quanto, ou melhores, não perdemos?
Em tempo, essa produção literária fortemente marcada pela oralidade também é extremamente desvalorizada até hoje. Obras como o Táin Bó Cúailnge (c.XII), na Irlanda, e o Mabinogion (c.XII-XIII), no País de Gales, ainda são praticamente desconhecidas.
Então, por fim, como sempre, as perguntas que fazemos sempre revelam mais sobre nós mesmas do que sobre aquilo que estamos perguntando:
Por que será que nós conhecemos tão pouco sobre a produção literária de uma época e tanto sobre outras? O que isso diz sobre nós e nossas prioridades?
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quinta aula, Idade Média, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Por que existem tão poucos clássicos medievais? é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 15 de outubro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/classicos-medievais // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato