O francês René Girard (1923-2015), partindo da crítica literária e transitando por áreas tão diversas quanto a psicologia e a religião, a antropologia e a filosofia, foi o último pensador a tentar uma grande teoria explicativa da humanidade. Como toda grande teoria explicativa generalista, ela é polêmica e combativa, soa óbvia e tautológica quando resumida, é vulnerável a críticas por especialistas de todos os lados, não consegue explicar tudo com a amplitude que talvez seu autor desejasse, mas é rica o suficiente para nos permitir enxergar os mesmos fatos, os mesmos fenômenos, a mesma realidade de maneiras diferentes, subversivas, inovadoras.
Em Totem e Tabu, Freud teorizava que o assassinato do pai tirânico pela horda primordial — que então introjetava em si mesma a tirania do pai, criando assim o nosso SuperEu — era a origem da civilização. Girard especulava a existência de um momento parecido na origem de todo mito: o sacrifício ritual de um bode expiatório inocente, que seria morto para resolver alguma crise social e, depois disso, retroativamente transformado em mito e, então, ritualmente honrado, adorado, temido, lembrado.
Como exemplo, Girard utilizava outra metáfora preferida de Freud: no meio de uma crise em Tebas (a peste), o rei acabava descobrindo que era ele mesmo o culpado (mesmo que não intencionalmente), aceitava sua culpa, se entregava ao sacrifício e abandonava a cidade, resolvendo assim a crise. Édipo seria o perfeito de bode expiatório girardiano.
Em A rota antiga dos homens perversos, uma longa e sustentada crítica literária do Livro de Jó, Girard defende que Jó seria um dos primeiros bodes expiatórios a se insurgir contra o seu processo de vitimização e a clamar sua inocência do início a fim. Édipo valida o processo que lhe vitima e aceita que a causa da peste é ele. Jó nunca.
Grande parte da obra girardiana se dedicou a explorar as ramificações dessa teoria do bode expiatório, tentando estabelecer sua aplicabilidade universal, especialmente em relação às sociedades pagãs. Uma das características fundamentais desse mecanismo é ser inconsciente: a comunidade não sacrifica o bode expiatório para resolver a crise, mas por sinceramente acreditar que ele é o culpado pela crise.
Para Girard, o cristianismo inverte a lógica do bode expiatório. A novidade dos Evangelhos seria tornar consciente aquilo que antes era inconsciente: explicitar esse processo, trazê-lo à luz, ser abertamente o sacrifício de um bode expiatório inocente do começo ao fim.
Jesus e Édipo se sacrificam voluntariamente em prol das comunidades que pedem por suas cabeças: a diferença é que Édipo se considera culpado e Jesus sabe que é inocente. Todos conspiraram para sacrificar Jesus, dos judeus aos romanos, passando até pelos apóstolos que lhe renegam três vezes, mas a sua inocência está sempre posta acima de qualquer dúvida pela voz narrativa. Jesus vai para o sacrifício declarando sua inocência e denunciando o mecanismo perverso que lhe matava.
Pela primeira vez, o assassinato ritual do bode expiatório era contado do ponto de vista da vítima que se declara inocente, e não mais dos perseguidores que presumem sua culpa. (Da mesma forma, os amigos de Jó podem até presumir sua culpa, mas ele, Deus e nós, pessoas leitoras, todas sabemos que é inocente.)
Somente Nietszche, em O anticristo, teria enxergado essa novidade fundamental do cristianismo, mas interpretando-a numa chave negativa, chamando-a de “moralidade do escravo”. Girard, pelo contrário, considera que esse foco em dar voz às vítimas e denunciar a violência é a maior contribuição ética do cristianismo à humanidade.
Eu, como ateu criado em família católica, sempre tive uma visão muito negativa do monoteísmo judeu-cristão, naturalmente repressor e limitador, em comparação à diversidade e pluralidade da experiência religiosa politeísta pagã. Quatro livros e inúmeros artigos de René Girard finalmente me convenceram, com enormes ressalvas pontuais, da validade de sua tese principal.
O cristianismo, e seu foco em dar voz às vítimas e olhar pelos mais fracos, fez de nós uma civilização melhor e mais generosa, mesmo para quem não é cristão. Os gregos jamais teriam inventado os direitos humanos.
(Algumas pessoas amigas leram esse texto e disseram: “Sei lá, Alex, você não me convenceu.” Mas eu nem estava tentando: só afirmei que Girard convenceu a mim. Quem quiser se abrir para ser convencido por ele, ou não, pode começar pelos livros abaixo: A violência e o sagrado, 1972; O bode expiatório, 1982; A rota antiga dos homens perversos, 1985; Eu via Satanás cair como um relâmpago, 1999.)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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O bode expiatório de René Girard: Édipo, Jó, Jesus é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 30 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/bode-expiatorio-girard-edipo-jo-jesus // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
2 respostas em “O bode expiatório de René Girard: Édipo, Jó, Jesus”
[…] autor anônimo da canção de rolando, barthes, chrétien de troyes, descartes, duras, foucault, girard, houellebecq, hugo, lafayette (madame de), la mettrie, maupassant, potocki, simenon, villon. […]
Excelente!! Muito simples sem ser simplista. Didático e objetivo, mas sem negar o caráter interpretativo. Parabéns!!