O Apocalipse não é apenas um livro, ele é todo um gênero literário.
O livro que fecha a Bíblia cristã, o Apocalipse de João de Patmos, é um apocalipse entre centenas de outros: sua distinção maior é a de ter sido canonizado.
O gênero apocalíptico floresceu no Oriente Médio, nos séculos I e II AEC, e aparece nas literaturas judaica, cristã, gnóstica, grega, persa e latina. A palavra “apocalipse” quer dizer “revelação” em grego, e essa é a essência de um apocalipse: não o fim do mundo, como geralmente se pensa, mas uma revelação do futuro glorioso que aguarda os escolhidos do Senhor.
Naturalmente, para tanto, o mundo anterior, como era antes, dos velhos e hereges poderosos, precisará ser destruído — mas esse é somente um detalhe operacional. O mais importante é a vitória total, incontestável e eterna do povo de Deus — aliás, o público-alvo da história. (Collins, 7)
O conflito no qual termina o mundo anterior e começa o novo opera em nível cósmico — o céu se enrola sobre si mesmo, estrelas caem como figos de uma figueira, povos inteiros são destruídos. Diante desse pano de fundo cósmico, em geral digladiam-se duas forças poderosas pelo controle do universo. Não deixa de ser irônica a pretensão de um pequeno povo oprimido de causar tremenda movimentação cósmica. (Gabel, 156)
Outra característica do gênero apocalíptico é sua relação problemática e contraditória com a História. Por um lado, cada apocalipse se escreve em resposta a uma situação histórica concreta, via de regra a submissão a algum conquistador mais forte. Entretanto, os apocalipses não se preocupam com a história passada e sim com a que virá, com a enumeração dos fatos históricos que ainda acontecerão antes do fim dos tempos e da vitória final dos escolhidos. De um modo ou de outro, a história, pregressa ou progressa, está sempre presente nos apocalipses. (Gabel, 155-8)
Aliás, apocalipse não é sinônimo de desastre mas também não é sinônimo de revelação, apesar da sua etimologia. Ao invés disso, o autor apocalíptico projeta em cada evento de uma sequência histórica um lugar simbólico em um padrão progressivo em direção à culminação da história. Graças a essa seqüência organizada de fatos históricos, uma das maneiras mais populares de ler (ou desler) os apocalipses é tomando-os como profecias literais de eventos políticos e militares que acontecerão no futuro próximo. Mas essa leitura é pobre tanto em termos morais, estéticos e religiosos. Por um lado, toma símbolos polivalentes e ricos em conotações e transforma-os em alegorias mortas e, por outro, associa todos os símbolos do mal e do caos com a alteridade, permitindo que o leitor se coloque completamente do lado do bem. (Collins, 15)
Os apocalipses surgem em situações históricas específicas, tempos de grande opressão e perseguição, quando os fiéis já não têm mais esperanças de libertação. O autor do apocalipse acredita estar vivendo no pior dos mundos e escreve para leitores que compartilham dessa opinião. É uma literatura em crise, uma tentativa de organizar e entender um mundo avassalador que já não faz mais sentido. Também é uma literatura de crítica social, escrita por uma minoria descontente, impotente e desprivilegiada. Se a sensibilidade apocalíptica reflete o desespero de uma comunidade que sente que sua história foi radicalmente interrompida, então, a passividade dessa comunidade talvez seja a consequência inevitável desse sentido coletivo de impotência. Por isso mesmo, a narrativa apocalíptica é uma tentativa de impor ordem a um universo que, do ponto de vista da comunidade oprimida, não faz mais sentido. (Rosen, xi-xii)
Uma primeira distinção importante deve ser feita: embora algumas fontes tenham dificuldade de separar a literatura profética da apocalíptica, ou digam mesmo que essa é prolongamento daquela, há algumas diferenças estruturais básicas. Para começar, os livros proféticos são eminentemente orais: tratam, em larga medida, de registrar as visões e a pregação de um profeta, ou seja, o registro do que ele disse, para serem lidos alto para indivíduos que precisem ouvi-los. Já os livros apocalípticos nascem como livros: são o registro escrito das visões de um profeta que conta ele mesmo o que viu, para serem lidos pelos fiéis. (Gabel, 155)
A maior diferença, entretanto, é a seguinte: o objetivo dos livros proféticos era mudar o comportamento de seus leitores — ou ouvintes. O povo não estava agindo de maneira justa, tinha perdido os caminhos do Senhor, se entregaram à idolatria, etc, e era o trabalho do profeta avisá-los de sua perdição iminente e lembrá-los da palavra de Deus. Caso não mudassem, naturalmente, o castigo divino seria terrível, mas o objetivo era fazê-los mudar e, assim, mudar o mundo.
A literatura apocalíptica, apesar de ter em comum as visões proféticas, tem objetivos completamente diferentes: o autor apocalíptico já desistiu de mudar o mundo real. Ele escreve para uma comunidade desesperada, subalterna, frustrada, explorada, que já não vê mais saída de sua atual situação de dominação. O que faz nascer o gênero apocalíptico é justamente uma situação de impotência, uma percepção de que a comunidade não tem o que fazer nem como mudar o mundo: suas vias de ação estão fechadas. Um autor apocalíptico escreve não para convencer seus leitores, pregar seu arrependimento, fazê-los mudar: ele escreve justamente porque eles já não podem mais mudar; para consolá-los de que sua situação de impotência não será eterna, de que tudo é parte do plano de Deus, que seus opressores sofrerão para sempre e que a hora de sua vitória inevitável e da felicidade eterna está chegando. O profeta está sempre falando sobre o mundo real: o castigo, se vier, será administrado por exércitos inimigos e a recompensa, se for merecida, virá na forma de viver em paz na sua terra. Já o autor apocalíptico abandonou o mundo real: ele não oferece conselhos práticos, nem mesmo sobre como melhor tolerar a opressão: seu tema é cósmico, literalmente o deus ex machina que salvará o povo. (Gabel, 155)
D. H. Lawrence, um dos leitores mais apaixonados do Apocalipse, explica essa distinção de modo um pouco diferente: depois da destruição do templo de Jerusalém, os judeus param de pensar em si mesmos como um povo imperial e os profetas silenciam; passam então a ser um povo de “destino adiado” e é nesse momento que surgem os apocalipses: agora, Deus não mais iria dizer aos seus servos o que aconteceria, pois o que aconteceria era praticamente indizível: ele tinha que mostrar. (Lawrence, 80)
Outra característica importante da literatura apocalíptica é ser hermética: por definição, os apocalipses são escritos para revelar (aos escolhidos) e para esconder (aos não-iniciados). Um de seus pressupostos é que os acontecimentos contemporâneos, se corretamente compreendidos, podem servir de “sinal dos tempos” para revelar a iminência do fim. Joaquim de Fiore, teólogo medieval, considerava o Apocalipse o ponto culminante da Bíblia, o livro que revelaria a plenitude da história: “a chave do passado, o conhecimento do futuro, a abertura do que estava selado, o desvelamento do que estava escondido”. (McGinn, 532)
Não por acaso, todos os apocalipses conhecidos (menos o Apocalipse) foram escritos por autores anônimos assinando nomes de grandes figuras bíblicas, como Adão, Moisés, Esdras, etc, o que adicionava não só ao mistério mas também à seriedade da mensagem. Alguns críticos até mesmo sugerem que os primeiros leitores teriam algum tipo de “chave” extra-texto para decifrar os códigos e imagens, mas a maioria considera isso improvável. (McGinn, 526-7)
Embora muitas vezes nos pareçam incompreensíveis e aleatórias, as imagens dos apocalipses vinham de longas tradições judaicas e mesopotâmicas, articulada e trabalhadas há centenas de anos. Outros críticos deploram as imagens confusas e grotescas dos autores apocalípticos e preferem admirar o realismo mais prático dos profetas.
A linguagem dos apocalipses, porém, não é uma escolha arbitrária, frívola ou fantasiosa, mas expressão de uma profunda crise entre aqueles que se sentiam isolados das estruturas de poder. Pelo contrário, os símbolos apocalípticos são um sistema simbólico alternativo à sabedoria popular do seu tempo: aqueles que se sentem oprimidos pelo sistema dominante precisam de um sistema simbólico alternativo para poder começar a sonhar com uma nova ordem social. (Collins, 16)
Luis Alonso Schökel, na sua introdução ao Apocalipse na Bíblia do Peregrino, comenta que, para o leitor familiarizado com o Antigo Testamento, o livro é quase um arranjo de citações, imitações, alusões e reminiscências, sendo mais de 400 só entre os capítulos 4 e 22. Entretanto, é uma obra profundamente original, não uma colcha de retalhos ou uma midraxe, mas “a criação poética de um céu novo e uma terra nova.”
É importante não confundir o genêro literário apocalíptico com a nova acepção moderna do termo “apocalipse”. Por exemplo, a manchete do jornal londrino Daily Mail no dia 12 de setembro de 2001 foi “APOCALYPSE!” A aplicação do termo àquela imagem de destruição indica uma profunda mudança semântica: de um termo descritivo de uma história bíblica de esperança, julgamento e recompensa para um sinônimo de catástrofe e devastação. (Rosen, xiv)
Na verdade, não deixa de ser interessante o novo significado que a palavra “apocalipse” adquiriu. Tradicionalmente, o apocalipse incluía catástrofe e devastação, sim, mas somente para os maus e para os ímpios; para os bons e para os fiéis, o apocalipse seria ocasião de felicidade e de vitória. Ao reter praticamente só o significado negativo, é como se nossa cultura imediatamente já se colocasse do lado dos maus, como se todos nós, os que usamos apocalipse como sinônimo de catástrofe, estivéssemos dizendo: “sim, admitimos que somos ímpios, sabemos que, para nós, o apocalipse significaria devastação.”
Aliás, se é verdade que o uso da palavra apocalipse em uma manchete de jornal inglês é um excelente exemplo da nova acepção popular na palavra. Entretanto, do ponto de vista dos agentes da ação, o onze de setembro foi verdadeiramente apocalíptico, de acordo com o sentido clássico do termo: uma grande vitória de um grupo marginalizado e impotente sobre um inimigo poderoso e quase invencível, vitória essa tão cósmica e profunda que abre uma nova era e dá início a um novo tempo. Afinal, não é quase um lugar comum que nada mais foi igual depois da queda das torres gêmeas? A manchete do Daily Mail, portanto, é um exemplo perfeito das duas acepções de apocalipse: a nova, corrente e popular, e a clássica, bíblica, literária.
De qualquer modo, em uma discussão sobre a literatura apocalíptica, é importante separar as duas conotações. Na linguagem do dia-a-dia, já tornou-se comum classificar qualquer obra artística sobre o fim do mundo como “apocalíptica”, do filme Independence Day ao romance A estrada, de Cormac McCarthy. Mas, se considerarmos que apocalíptico é o gênero literário que inclui não apenas o fim do mundo mas, muito mais importante e muito mais central, a criação de um novo mundo, a Nova Jerusalém, onde o povo escolhido será feliz para sempre, então fica claro que essas obras não são apocalípticas. Elas contém apenas metade da história, e não a mais importante. Seria como chamar de policial qualquer livro que tenha um crime. Essas obras sobre cataclismas e destruições, que falam de finais mas não de começos, que não oferecem nem antecipam a Nova Jeusalém, podem ser chamadas de “neo-apocalípticas”. (Rosen, xiv-xv)
A literatura apocalíptica é uma literatura produzida e consumida dentro de uma comunidade que está tentando lidar com uma enorme perda: de poder secular e religioso, de autonomia, de liberdade. Portanto, essa literatura oscila entre, por um lado, visões cósmicas (que podem ser causadas por fatores físicos, como depressão, dieta inadequada, insônia, solidão, tristeza e fadiga) e, por outro, uma sensação insuperável de júbilo e felicidade pela vitória final diante do maior de todos os inimigos. Se “mecanismo bipolar” é essa mudança da depressão para a mania como uma defensa inconsciente contra a depressão, poderíamos classificar a literatura apocalíptica de bipolar. Alguns autores afirmam que a literatura apocalíptica é uma “literatura de luto” mas eu diria o contrário: ela é a literatura da impossibilidade do luto, de uma comunidade tão abatida e transtornada por sua perda que não consegue entrar em trabalho de luto e, tomada por uma denegação profunda da sua verdadeira impotência, cria uma narrativa onde são o povo escolhido, onde derrotam todos os seus inimigos e vivem felizes por toda a eternidade. (Collins, 18-19)
A literatura apocalíptica também é intrinsecamente “nacionalista”, do sentido de construir uma identidade exclusivista de “nós versus eles” e de sobrevalorização do “nosso grupo” contra “o resto”. O autor apocalíptico também é sempre de elite, um homem mais culto e educado que sua comunidade, fluente numa complexa simbologia literária, tentando consolar, inspirar e mover a multidão. O apocalipse não oferece doutrina precisa ou um corpo de medidas ou de soluções, pois tem-se a impressão de já ser tarde demais pra isso. A opressão está entrincheirada demais, a impotência do povo insuportável demais. As promessas do apocalipse são tão simples quanto as promessas do populismo: derrota dos opressores e vitória para os oprimidos.
(Referências: Adela Yarbro Collins, Cosmology and Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism; John B. Gabel e Charles B. Wheeler, Bíblia como literatura; D. H. Lawrence, Apocalypse and Writings on Revelation; Bernard McGinn, “Apocalipse” em Robert Alter e Frank Kermode, Guia literário da Bíblia; Elizabeth K. Rosen, Apocalyptic Transformation: Apocalypse and the Postmodern Imagination; Luis Alonso Schökel, ed. Bíblia do Peregrino.)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quarta aula, Cristãos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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O Apocalipse como gênero literário é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 28 de agosto de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/apocalipse-genero-literario // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
Uma resposta em “O Apocalipse como gênero literário”
Excelente!!!