Os Miseráveis é um dos romances mais longos de todos os tempos. E, em minha opinião, o melhor.
Naturalmente, vários outros romances têm qualidades técnicas e literárias equivalentes. Os meus finalistas seriam Guerra e Paz (Tolstoi, 1867, russo), Moby Dick (Melville, 1850, inglês), Cem anos de solidão (Garcia Márquez, 1967, espanhol), Manuscrito encontrado em Saragoça (Potocki, 1814, francês): todos possuem um interesse profundo, sincero, empático por cada personagem, até os menores — que, na prática, não são menores, pois explodem na página com profundidade e concretude inesquecíveis.
Mas, se o que me faz amar Homero é sua dureza, o que me faz amar Hugo (e colocar Os Miseráveis um nariz à frente de todos os outros romances que já li) é o seu olhar amoroso.
Tolstoi tem interesse por tudo que seus personagens fazem, mas é um interesse um pouco frio, talvez indiferente, algo distante. Garcia Marquez paira sobre seus personagens rurais e ignorantes com a condescendência do intelectual urbano comunista: “olha que pitorescas as crenças desses caipiras”. Potocki enlaça um conto dentro do outro, em um artesanato cada vez mais intrincado e complexo, pelo puro prazer de um mestre contador de histórias em contar histórias de maneiras cada vez mais desafiadoras. Melville consegue escrever em pleno século XIX (ou seja, anteontem) com a rudeza e com a força de uma Ilíada, de uma Bíblia. (Moby Dick é, antes de tudo, um livro religioso.)
Nenhum tem a generosidade, o amor de Hugo para com seus personagens. Ao longo das infinitas páginas de Os Miseráveis, ele nunca é duro ou distante, frio ou condescendente. Sua esperança, seu otimismo, sua fé na capacidade de superação humana, são ilimitados, comoventes, inspiradores. Em um século onde já era moda ser cínico em literatura (no século XX, tornou-se obrigatório), Victor Hugo, em Os Miseráveis, nunca é. Nem uma única vez.
Afinal, Hugo escreve Os Miseráveis para denunciar a sociedade, não as pessoas dessa sociedade: é um romance sobre a maldade, mas sem malvados; sobre a opressão, mas sem opressores. Seu profundo amor por cada personagem é inseparável de seu projeto de denunciar a estrutura como um todo. O Inspetor Javert, por exemplo, implacável perseguidor do herói Jean Valjean, é o mais duro de todos os homens, um verdadeiro Aquiles francês, mas Hugo nos transmite a dureza de Javert sem nunca ser duro com ele. Seu amor por Javert é igual ao seu amor por Valjean, que é igual ao seu amor por cada um de seus os personagens: dotado de transbordante empatia, Hugo entende porque eles são como são e os absolve a todos, sem nunca perdoar a sociedade que os criou, deformou, oprimiu.
Daí um autor tão anticlerical abrir sua obra-prima nos apresentando ao padre mais simpático da literatura. (O romance tem tantas digressões que já começa no meio de uma. Depois de nos apresentar longamente o Bispo de Myriel, ao longo de dezenas de páginas, ele simplesmente some do romance, que somente então efetivamente começa.) Outros autores, para denunciar os crimes da religião institucional, teriam criado um padre demoníaco e antiético — a bem da verdade, em O corcunda de Notre-Dame, Hugo faz exatamente isso. Em Os Miseráveis, pelo contrário, ele cria um padre angelical: um padre que se comporta como deveriam se comportar todos os padres que realmente acreditassem na mensagem de amor dos Evangelhos. Aliás, talvez por isso o romance tenha sido colocado no índex de livros proibidos do Vaticano: o Bispo de Myriel fazia todos os padres de verdade parecerem ainda piores do que já eram.
Não é um romance perfeito. Romances perfeitos são curtos. Quase sempre, quanto mais curto, maiores as chances de ser perfeito. Minha lista de romances perfeitos existe na interseção entre romance e noveleta: A hora da estrela e Bartleby, o escrivão, O grande Gatsby e O estrangeiro, A princesa de Cleves e Dom Casmurro, A morte de Ivan Ilich e O enteado. Mas, talvez por isso, por serem bem fechadinhos demais, romances perfeitos não me chamam de volta para repetidas e reiteradas visitas ao longo dos anos e das décadas.
Meus livros indispensáveis são justamente aqueles para os quais mais quero voltar, sobre os quais penso frequentemente, que não posso viver sem.
Henry Miller me ensinou a amar meus romances preferidos não pela qualidade de seu resultado, mas pela ambição de suas intenções. Nos cem metros rasos, a única coisa que importa é quem cruza a linha de chegada em primeiro lugar. Na ginástica olímpica, entretanto, os critérios são dificuldade e execução: pouco adianta executar sua coreografia perfeitamente… se era uma coreografia que qualquer pessoa poderia executar. E, por outro lado, menos mal você levar um tombo ou dois… se estava tentando o impossível.
Para mim, mais juiz de Ginástica Olímpica, menos de cem metros rasos, Os Miseráveis, apesar de todas as suas gigantescas imperfeições e por suas belíssimas ambições, é o maior romance de todos os tempos, um livro que está sempre me chamando para novas leituras.
* * *
Mentiras Reunidas, meu novo livro, em pré-venda
Já começou a pré-venda do meu novo livro Mentiras reunidas, em versão capa dura, com bookbag, dedicatórias apócrifas e marcadores, e mais cinco contos exclusivos. Clique aqui para saber mais.
* * *
Esse texto faz parte dos guias de leitura para a oitava aula, Revoluções, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso aconteceu entre julho de 2020 e março de 2021 — quem se inscrever depois dessa data tem acesso aos vídeos das aulas anteriores.
* * *
Teoria dos grandes romances é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 18 de março de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/teoria-dos-grandes-romances // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato