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Romeu e Julieta, de Shakespeare

Talvez seja a melhor, a mais perfeita, a mais acessível tragédia do autor. Para apreciá-la, porém, nosso maior inimigo é sua própria fama, todas as noções pré-concebidas – “uma história água-com-açúcar”, “os protagonistas são bobinhos”, etc e etc – que trazemos para a experiência.

Romeu e Julieta, de William Shakespeare, talvez seja a melhor, a mais perfeita, a mais acessível tragédia do autor. Sob qualquer critério, um dos ápices da literatura ocidental. Para apreciá-la, porém, nosso maior inimigo é sua própria fama, seu lugar central na nossa cultura, e todas as noções pré-concebidas – “uma história água-com-açúcar”, “os protagonistas são bobinhos”, etc e etc – que trazemos para a experiência.

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Como esquecer um nome?

Um dos principais obstáculos de Julieta para gozar seu grande amor é justamente o nome de seu amado, que pertence a uma família rival à sua:

“O que há num nome? O que chamamos rosa / Teria o mesmo cheiro com outro nome; / E assim Romeu, chamado de outra coisa / Continuaria sempre a ser perfeito, / Com outro nome. Mude-o, Romeu, / E, em troca dele, que não é você, / Fique comigo.” (II.ii, ou seja, segundo ato, segunda cena, na excelente tradução de Barbara Heliodora.)

Curiosamente, para nós pessoas leitoras do XXI, um dos principais obstáculos para gozar a peça também é o nome de Romeu.

Meu dicionário Houaiss registra “romeu” como “indivíduo muito enamorado”. (Aliás, “julieta” não é verbete.) Ou seja, a peça já faz tão parte da nossa psique amorosa, da nossa cultura literária, das nossas referências compartilhadas, que, a cada vez que algum personagem fala o nome de Romeu

Teobaldo: “Romeu, o amor que eu lhe dedico exige / Que lhe diga na cara que é um vilão.” (III.i)

é preciso des-ouvir “Romeu” como “indivíduo muito enamorado”, é preciso esquecer os 420 anos nos quais essa peça foi um elemento central da nossa cultura poética, e “ouvir” “Romeu” como se fosse um nome qualquer, um mero Arthur ou um simples Godofredo.

No conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges, um literato francês embarca em seu projeto artístico mais ambicioso: reescrever o livro Dom Quixote, de Cervantes, palavra por palavra, mas no século XX. Não apenas copiando cada linha do original, o que seria fácil, mas ativamente esquecendo todos os séculos intermediários, desde a decadência do Império Espanhol, passando pela Revolução Francesa, até a Primeira Guerra Mundial. Desse modo, frases que seriam triviais saindo da pena de um escritor do século XVII se tornariam “assombrosas” assinadas por um intelectual do XX. (“Não há exercício intelectual que não seja, por fim, inútil”, sentencia o conto, disponível no livro Ficções e certamente um dos cinco melhores contos de todos os tempos.)

O crítico literário Harold Bloom fala em “angústia da influência” para descrever a luta interna que cada poeta precisa travar dentro de si para vencer seus mestres, seus ídolos, e encontrar sua própria voz. Talvez pudéssemos também falar em “angústia da referência”, para descrever aquelas obras que, mesmo a nós, simples pessoas leitoras, nos oprimem com o peso de sua ubiquidade cultural.

Afinal, como ler Romeu e Julieta (ou Dom Quixote) com a mente fresca e limpa? Como esquecer obras que nos formaram como pessoas leitoras? Como des-ler os livros que moldaram o nosso próprio processo de recepção literária?

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Uma comédia com final de tragédia

Em sua edição das obras completas de Shakespeare, a editora Everyman’s Library coloca Romeu e Julieta (cujo título completo é The tragedy of Romeo and Juliet) em um dos volumes de comédia. O editor se justifica dizendo que a peça só não é uma comédia por cerca de um minuto, quando Romeu se mata logo antes de Julieta acordar. “Com certeza é uma tragédia”, admite ele, “mas segue toda a estrutura clássica de uma comédia”.

De fato, talvez seja exatamente esse o grande atrativo da peça: ter um set-up de comédia e um final de tragédia.

Hamlet, Othello, Macbeth, Lear são grandes obras em qualquer acepção do termo, mas, Deus do céu, ave-maria cruz-credo, especialmente as duas últimas, são pesadas, são dolorosas, são intensas. (Lear é a dor em forma de texto. Escrevi sobre as quatro aqui.)

Romeu e Julieta é leve e divertida, mas também agitada e envolvente, tem a Ama e tem Mercúcio, toda rimada e cheia de trocadilhos – o que só faz com que a porrada, quando venha, mesmo tendo sido anunciada desde o começo, seja ainda mais dolorosa, ainda mais injusta, ainda mais cruel.

Por um lado, Romeu e Julieta não tem nenhum vilão ultra-malvado, torcendo os próprios bigodes e narrando as próprias vilanias, como Iago, Macbeth, Edmund. Sim, são personagens maravilhosos e divertidos, mas quase Deus ex machinas ao contrário. Quem resistiria à tamanha malvadeza concentrada? São quase a garantia do final infeliz. E podemos dormir tranquilas: qual é a chance de nos depararmos com um Iago em nossas vidas?

Por outro lado, o fato de não ter vilões (pobre Teobaldo é só um menino esquentadinho), me parece ainda mais apavorante. O que causa a tragédia dos jovens amantes, nascidos sob má estrela, é tudo aquilo que também causa tragédias em nossas vidas: um amigo encrenqueiro pra cá, uma família autoritária pra lá, adolescentes cheios de hormônios e inconsequentes aqui, um plano meio idiota e excessivamente otimista acolá. O trágico em Romeu e Julieta é justamente saber que tudo não deu certo por muito, muito pouco.

Como diz o Príncipe, em uma das últimas falas:

“Todos são punidos.”

E, no filme de Baz Luhrman, para maior efeito, ainda repete – sempre com ênfase no “e” normalmente não pronunciado:

“All are punishèd.”

Ou, no que seria minha frase preferida da peça se não tivesse sido tirada verbatim de Troilo e Criseida, de Chaucer:

“These violent delights have violent ends.” (“Esses prazeres violentos têm finais violentos”)

(Na série Westworld, é essa citação que ativa a programação assassina da anfitriã Dolores.)

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A peste em Romeu e Julieta

O dia que dediquei para ler e assistir diferentes versões de Romeu e Julieta foi quinta, 26 de março de 2020. Não é uma data qualquer, mas o 15º dia de meu auto-isolamento social causado pelo coronavírus; que eu, enquanto escrevo e vocês, enquanto leem, não sabemos nem quanto vai durar, nem se vamos sobreviver.

Shakespeare, que morreu há 400 anos e teve uma vida tão diferente da nossa, tinha bastante familiaridade com nosso dilema. A peste atingiu sua vila natal poucos meses depois de seu nascimento, em 1564; teoricamente ele e seus pais desenvolveram algum tipo de imunidade. Ao longo de sua vida adulta, quando trabalhava como ator e dramaturgo, ou como dono de sua própria companhia teatral, novas erupções da peste continuavam forçando os teatros a permanecerem fechados por meses ou anos, época em que aproveitava para escrever ativamente. Boa parte de suas maiores obras provavelmente foram escritas em períodos de isolamento social como o que estamos vivendo agora. (Pense no que você está fazendo em seu isolamento.)

Apesar de ser um presença forte em sua vida (como está sendo na nossa!), a peste não figura com muita frequência em sua obra. Curiosamente, a peça em que talvez tenha mais importância no enredo seja justamente Romeu e Julieta. Afinal, Romeu apenas se mata diante de Julieta por não saber que ela estava somente dormindo. E por que ele não recebeu essa informação?

No caminho entre Verona (onde se passa a história) e Mântua (onde Romeu estava escondido), Frei João visita um irmão encarregado de cuidar de pessoas doentes. Enquanto estava na casa, as autoridades sanitárias, considerando que tinham sido expostos à peste, selam as portas, prendendo lá dentro não só Frei João mas também a mensagem que teria salvo as vidas de Romeu, Julieta e também Páris (V.ii).

Tudo por causa da quarentena. Tudo por causa da peste.

E eu penso: quantos casos de amor, embrionários, quase começando, não foram abortados por nosso atual isolamento? Quantas coisas não deixarão de acontecer?

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Shakespeare: ler ou assistir?

Existe toda uma controvérsia: é melhor ler ou assistir Shakespeare?

Por um lado, as peças foram escritas para ser assistidas. Não são textos para ser lidos silenciosamente, na solidão de casa: como todo texto teatral, são uma parte pequena de uma experiência cultural maior, coletiva, cinética.

Por outro, puristas defendem que as adaptações são em geral tão, mas tão ruins que estragam o texto, e que é melhor ler por conta própria do que se deixar contaminar pela visão deturpada de um diretor que pode ter des-lido a peça.

Ambos têm alguma razão.

Meu método pessoal é escutar um bom áudiolivro enquanto acompanho o texto escrito. O inglês de Shakespeare, infelizmente, está tão distante de nós que, às vezes, mesmo para falantes nativos, é difícil extrair o significado do texto. Um bom áudiolivro, com atores competentes colocando as pausas e as ênfases nos lugares certos, faz o sentido emergir de trechos que eram obscuros lidos silenciosamente. (Recomendo a coleção Complete Arkangel Shakespeare, uma série de áudiolivros de todas as peças de Shakespeare, com texto integral e grande elenco.)

Depois, tento assistir uma ou outra boa adaptação audiovisual, para ver o texto ganhando vida silenciosamente. (A série BBC Television Shakespeare, exibida entre 1978 e 1985, tem momentos desiguais, mas a vantagem é trazer o texto sempre integral.)

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Duelo de simpatias: Teobaldo vs Mercúcio

A melhor coisa de assistir adaptações depois de ler as peças é registrar as principais mudanças e refletir sobre elas.

Agora, por exemplo, assisti à adaptação televisiva da BBC Television Shakespeare (dirigida por Alvin Rakoff em 1978) e também reassisti meu filme preferido de todos os tempos, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrman.

As diferenças que mais me chamaram atenção entre essas adaptações e o texto original tiveram a ver com um certo grau de manipulação das simpatias do público para esse ou aquele personagem. Comecemos pela BBC.

O momento crucial da peça, exatamente na metade, seu ponto de inflexão, o momento em que tudo começa a dar errado e não para mais, é a briga que termina com Teobaldo e Mercúcio mortos (III.i).

No texto, a sequência acontece assim: Mercúcio está conversando com amigos; Teobaldo chega e pergunta por Romeu; Romeu aparece; Teobaldo agradece, vai falar com Romeu, puxa briga, saca a espada; Romeu se recusa a brigar, mas Mercúcio (seu melhor amigo) compra a briga; Teobaldo, de espada em riste, se recusa a brigar com Mercúcio, pois sua briga é com Romeu; Mercúcio força a briga e saca a espada; Romeu tenta apartar; Teobaldo mata Mercúcio com um golpe por debaixo do braço de Romeu; Romeu mata Teobaldo.

Teobaldo claramente é um encrenqueiro. Na primeira cena, ele começa outra briga, onde afirma odiar a paz e todos os Montéquios. Mais tarde, na festa dos Capuletos, avista o penetra Romeu e teria criado uma confusão ali mesmo se não tivesse sido forçosamente impedido pelo anfitrião. Teobaldo é o mais perto de um vilão que a peça tem.

Já Mercúcio (o mais perto de um bobo que a peça tem e talvez seu personagem mais querido) também não é santo. Dá para argumentar que entra na briga para defender Romeu, mas não é verdade: Mercúcio escolhe forçar um confronto onde talvez não acontecesse nenhum. Teobaldo, que hesita uma única vez em aceitar (porque estava com a espada apontada para Romeu, a briga que ele queria), logo mergulha no duelo que terminará na sua morte.

Por isso, nada me surpreendeu mais na adaptação da BBC do que a tentativa de culpar Mercúcio pela briga e inocentar Teobaldo – interpretado pelo sempre maravilhoso Alan Rickman, o Severus Snape dos filmes de Harry Potter. As palavras são as mesmas, mas que diferença faz a ação: uma vez começado o duelo, Teobaldo faz de tudo para fugir ou de-escalar, enquanto Mercúcio ataca e ataca, furiosamente, insolentemente, até morrer.

Por que essa escolha de, no momento crucial da peça, manipular a percepção do público para gostar um pouco menos do personagem mais querido e desgostar um pouco menos do mais antipático?

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Páris: a morte mais patética

Curiosamente, a mudança que mais me chamou atenção no filme de Baz Luhrman segue a mesma linha, mas dessa vez serve para preservar a imagem de Romeu.

Páris, nobre pretendente de Julieta, sem saber que ela já havia se casado com Romeu em segredo, tinha casamento marcado com ela. No dia, porém, Julieta acorda “morta”, teoricamente de tanto sofrer a morte de seu querido primo Teobaldo. Enlutado, Páris vai levar flores em sua tumba, onde encontra o mais sofrido ainda Romeu, que veio se matar ao lado da esposa. Romeu, desesperado mas honrado, pede que vá embora. Páris, sabendo que Romeu era o assassino de Teobaldo e, consequentemente, responsável pela “morte” de Julieta, exige que ele se entregue às autoridades. Eles brigam, Páris morre (V.iii).

Páris é a personagem mais patética de toda a peça. Romeu, Mercúcio, Teobaldo são valentões que começam brigas com muita facilidade. O frei é um completo idiota inconsequente. Os pais de Julieta são autoritários na pior hora. Mas Páris, coitado, faz tudo sempre certinho: ele é bom, nobre, honrado, compreensivo. Quando confronta Romeu, não é por ser um encrenqueiro, mas para levar à justiça um assassino condenado, em flagrante violação de seu exílio. Em suas últimas palavras, depois de mortalmente ferido, poderia ter amaldiçoado a mulher que o levou a morte (sem que tenha usufruído nada desse amor), mas somente implora, pateticamente, romanticamente, para ser enterrado com ela – que nem morta está.

Todos morrem na mais completa ignorância de porque morrem. Mercúcio e Teobaldo morrem sem saber do casamento secreto de Romeu e Julieta: Teobaldo morre sem entender porque Romeu diz que o ama (é primo de sua esposa e agora também sem primo); Mercúcio morre sem entender porque Romeu tenta apartar a briga. Páris, sem saber que sua falecida futura esposa não poderia nem ser sua esposa (já era casada) nem estava morta (apenas fingindo), morre nas mãos de seu marido – que também a acreditava morta.

Mas Páris, único que morre sem culpa alguma, único a quem nada pode ser imputado, tem a morte mais trágica e mais patética, mais injusta e mais aleatória, o ponto mais baixo da crise, o símbolo de que tudo deu errado.

E é essa morte que inexplicavelmente Baz Luhrman não mostra. Por quê?

Romeo + Juliet, de todos os filmes de todos os tempos, é o meu preferido. Gosto de praticamente todas as escolhas dessa montagem: o fofíssimo bom moço Paul Rudd como Páris é só uma de muitas, assim como a inesquecível cenografia da tumba de Julieta, com seu excesso de flores e cruzes de neon azul.

Nesse cenário psicodélico, um Leonardo DiCaprio ensandecido matando o perfeitinho e inocente Paul Rudd diante de uma Claire Danes se fingindo de morta, ao som de sabe-se lá qual música perfeita, poderia ter sido um dos grandes momento do filme e, talvez, do cinema.

(Um blog com textos interessantíssimos sobre Romeo + Juliet.)

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O ceticismo de Julieta

Não é só Páris que faz tudo certinho: Julieta também, a seu modo, é perfeitamente razoável, do começo ao fim, e até mesmo sua aceitação do plano imbecil de Frei Lourenço é razoável no contexto da situação desesperadora em que se encontrava. Apesar disso, o plano imbecil é realmente, de fato, bastante imbecil.

Então, confesso, a hora em que mais amo Julieta (que é tão, mas tão amável, inteligente, capaz ao longo de toda a peça) é quando, logo antes de tomar o soporífero, tem um momento cético e, pelo menos, nem que apenas por um segundo, questiona as motivações do frei:

“E se for um veneno este que o frade / Sutilmente me deu, e irá matar-me / Pra não perder a honra desta boda, / Já que antes me casou com meu Romeu? / Tenho medo que sim, mas não o creio / Pois ele sempre foi um homem santo.” (IV.iii)

A peça, entretanto, não deixa dúvida que Julieta estava certa em confiar nas intenções de Frei Lourenço: era mesmo um homem bom e santo, só não muito razoável.

Um outro autor (jamais Shakespeare, mas nosso Machado certamente) talvez tivesse cortado algumas partes estratégicas das cenas do Frei justamente para deixar a dúvida: será que foi tudo apenas um esquema idiota que não certo, ou terá sido esse um plano diabólico – e bem-sucedido – desde o começo?

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Vender drogas, ou Ao que a pobreza nos obriga

De tantos trechos preferidos, destaco um que não recebe muita atenção mas é emblemático não só da consciência social de Shakespeare, mas também do carinho que dedicava a cada personagem, por mais minúsculo.

Tarde da noite, em Mântua, recém-acabado de saber da “morte” de Julieta, Romeu bate na casa de um boticário e tenta comprar, ilegalmente, o veneno com o qual dará cabo da própria vida.

Para começar, todo o personagem do boticário, sua vida, suas limitações, seus planos, seus desejos, já está contida, sugerida, demonstrada na descrição da sua casa:

Romeu: Eu me lembro que há um boticário / Que mora por aqui — há pouco o vi, / Em andrajos, com o ar preocupado, / Catando ervas. Com o aspecto esquálido, / Sua miséria lhe exibia os ossos. / Em sua loja pendem tartarugas, / Jacarés empalhados, outras peles / De estranhos peixes; e nas, prateleiras, / Uma fila de caixas já vazias, / Potes, bexigas e sementes secas, / Pedaços de barbantes, rosas secas, / Se espalham para disfarçar o quadro. / Notando essa penúria, pensei eu: / “Se alguém, agora, quisesse um veneno / Proibido com morte aqui em Mântua, / Esse é o infeliz que o poderia obter.” Prenunciava esta necessidade! Pois ele há de vender-me o que eu preciso.” (V.i)

De certa maneira, Romeu e Julieta é uma peça sobre drogas. As primeiras palavras que ouvimos de Frei Lourenço são sobre drogas, seu poder ambíguo de tanto curar como matar (II.iii). Depois, faz um discurso semelhante para convencer Julieta a tomar a droga que lhe fará dormir, simulando sua morte (IV.i).

Mantendo essa pegada, o filme de Baz Luhrman aumenta e radicaliza a aposta. Uma de suas muitas sacadas geniais é transformar o completamente alucinado discurso de Mercúcio sobre a Rainha das Fadas (I.iv) em uma viagem de ecstasy – declamado em drag, ainda por cima.

Por fim, na casa do boticário, Romeu pede por uma outra droga, dessa vez nada ambígua, uma droga que apenas mata:

Romeu: Venha cá, homem. Sei que não tem nada; / Eis quarenta ducados pra me dar / Um pouco de veneno, coisa rápida, / Que se espalhe por veias e artérias / E faça quem o tomar cair morto, / E o hálito fugir de tronco e membros / Com a violência e a velocidade / Que a bala sai do ventre do canhão.

Boticário: Tenho a droga mortal, porém as leis / Dão morte para quem a fornecer.

Romeu: E você, tão coberto de desgraças, / Teme morrer? O seu rosto é de fome; / Pobreza e opressão comem seus olhos; / Desprezo e mendicância é que o vestem; / As leis do mundo não lhe têm amor: / Nenhuma lei do mundo o fará rico; / Pois, pobre, quebre a lei e aceite isto.

Boticário: Consinto por pobreza, não vontade.

Romeu: Eu não pago a vontade, só a pobreza.

Boticário: Desmanche este veneno em qualquer líquido. / Tome-o, e até com a força de mais vinte, / Ele o despacha no mesmo momento.

Romeu: Eis o seu ouro, um veneno pra alma / Que mata muito mais por este mundo / Que este pó, que ninguém pode vender. / Você comprou veneno, não vendeu; / Adeus, compre comida e ganhe peso. / Eu não comprei veneno, comprei cura; / E bebo ao meu amor, na sepultura. (V.i)

Romeu, menino rico e inconsequente, acostumado a ser paparicado por serviçais obedientes, cego de amor e desesperado de luto, não tem pudor algum em usar seu poder econômico para conseguir o que deseja, nem que para isso uma pessoa mais pobre arrisque a própria vida. Pior, na carta que envia ao seu pai, lida em voz alta pelo príncipe na última cena (V.iii), revela de quem comprou o veneno.

Certamente enforcado em Mântua, o pobre boticário, elo mais fraco da corrente, é a última vítima do amor desse par de amantes nascidos sobre má estrela, Romeu e Julieta.

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Leia outros textos meus sobre Shakespeare.

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Pós-escrito

Aproveitei o isolamento social para reler Romeu e Julieta, que tinha lido somente na escola. Li a versão original da peça; li a adaptação em quadrinhos de Gianni de Lucca (1978), cujas páginas ilustram esse texto; ouvi o áudiolivro da Arkangel Shakespeare; assisti a adaptação televisiva da BBC Television Shakespeare (1978); e, por fim, reassisti meu filme preferido de todos os tempos, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrman.

As pessoas às vezes me perguntam “como leio tanto” como se fosse alguma mágica.

Ora, o áudiolivro e a adaptação da BBC, ambas com texto integral, tem três horas cada, e o filme, duas. Dá um total de oito horas. Consumi tudo em um único dia de isolamento social, quinta, 26 de março, enquanto ainda cozinhei três refeições, lavei toda a louça e limpei o banheiro, além de curtir e agarrar minha esposa.

Quando as pessoas me perguntam isso, eu é que me pergunto por qual ralo escoa todo seu tempo.

A vida é questão de definir prioridades: a minha é literatura. Imagino que essas pessoas que não conseguem ler tenham outras prioridades e que, nelas, sejam tão produtivas quanto eu nas minhas.

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