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Rápida história do Cristianismo

Como a mensagem de um pregador radical e anarquista foi distorcida até conquistar o mundo. (Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa)

Depois da morte de Jesus, sua mensagem radical começa a se espalhar como fogo na palha nas comunidades pobres da Palestina e do Oriente Médio. Os primeiros cristãos acreditavam piamente que veriam o fim dos tempos ainda em suas vidas, então, não havia preocupação de escrever nada, de construir nada. A prioridade era viver bem, reformar os costumes, deixar de pecar, garantir lugar no céu. Eram comunidades apocalípticas e milenaristas.

É Paulo de Tarso que, com suas cartas para as nascentes igrejas cristãs, começa a institucionalizar um pouco a jovem igreja. Enquanto Jesus dizia que não fazia mais sentido casar, que devíamos todos abandonar nossas famílias, etc, Paulo contemporiza: ok, se vocês precisam satisfazer os desejos da carne, é melhor fazer isso casados do que em pecado, mas o melhor mesmo é não transar, etc. (Mais detalhes: Jesus e a verdadeira família.)

Estima-se que só uns quarenta anos depois da morte de Jesus, quando os apóstolos originais começam a morrer e o mundo insistia em não acabar, começa-se a escrever os evangelhos. O primeiro provavelmente foi o de Marcos. Os seguintes, Lucas, Mateus, João, claramente dependem de Marcos para muita coisa. Não há nada que indique que os evangelhos que temos tenham sido escritos por pessoas que de fato conheceram Jesus, mas talvez tenham sido discípulos de pessoas que o conheceram. (Paulo, com certeza, não conheceu.)

Nos primeiros três séculos após a morte de Jesus, sua mensagem vai se espalhando aos poucos, em pequenas e pequenas comunidades. Aos poucos, chamam atenção dos pagãos, mas sempre de forma negativa. No mundo pagão, as religiões mais estabelecidas eram não só mais leves como também mais performáticas. (Um pouco como o Cristianismo é hoje no Ocidente.) Já os cristãos eram cristãos sempre, cristãos em tudo, militantes, energéticos, recém-convertidos.

O mundo pagão, por definição, não perseguia religiões, não fazia sentido. A tolerância era a regra. Cada povo, cada cidade, tinha os seus deuses e isso era aceito, era parte da vida. A pessoa tinha o seu Deus e, quando chegava em uma nova cidade, era de praxe que iria prestar reverência aos deuses da cidade mas que também iria continuar reverenciando os seus. E tudo bem. Nenhum Deus perdia nada com isso.

Os cristão são perseguidos justamente por se recusar a prestar reverência aos deuses romanos, que eram a raiz e o centro da vida cívica. Ninguém queria impedir os cristãos de viverem sua vida como queriam, de comerem seus biscoitinhos, de fazerem suas rezas. Mas o que se exigia é que, em diversas ocasiões cívicas, jurídicas, políticas, eles fizessem reverência, saudação, aos deuses locais, que eram os mantenedores das instituições.

Os cristãos se recusavam, e acabavam forçando a própria situação de sua condenação. Ou, como disse exasperado um procônsul da Ásia:

“Homens desditosos! Se estão assim tão fartos de suas vidas, será tão difícil assim achar cordas e precipícios?” (Gibbon, cap. 16. Todos os números em parênteses sempre se referem a capítulos de Declínio e Queda do Império Romano.)

A perseguição romana aos cristãos nunca terá existido, não de forma sistemática, a não ser em curtos e localizados períodos. Gibbon estima em 2 mil o total de mártires cristãos em 300 anos, sendo que a maioria dos quais abertamente procurou a morte. Na verdade, de acordo com Gibbon, os cristãos atribuíam aos romanos “o mesmo grau de implacável zelo que lhes enchia o coração contra os heréticos ou os idólatras de sua própria época” (16)

Finalmente, em 313, o imperador Constantino se converte ao Cristianismo e a maioria dos imperadores seguintes também será cristão. Agora, será a vez da igreja começar a perseguir não só os pagãos mas também os hereges cristãos, com o mesmo zelo que os romanos jamais tiveram.

Enquanto o império romano se desfazia, os cristãos enviavam missionários para converter os tão temidos bárbaros. De seu ponto de vista, quando os bárbaros finalmente invadem Roma e derrubam o império, isso já não será nenhuma tragédia: para os cristãos romanos, em alguma medida, os bárbaros eram mais irmãos do que invasores. Alguns consideravam que esses bárbaros, novos convertidos e cheios de energia, de vida simples e rústica, seriam até melhores cristãos do que os próprios romanos, povo decadente e lânguido, convertido mais por fastio ou inércia do que por outra coisa. É por isso também que o império cai: totalmente tomado e aparelhado por cristãos, sua própria elite cultural e religiosa não tinha mais interesse em defendê-lo. Não havia estilo de vida romano a defender. O império era uma casca vazia, corroída pelo Cristianismo. (Alfoldy, 219)

Com a queda de Roma, as igrejas também se separam. O império romano do oriente, com sede em Constantinopla, continua, seguindo uma fé que depois se tornará o Cristianismo ortodoxo. No Ocidente, com o fim do império romano em si, a Europa se divide em reinos bárbaros, todos cristãos, todos, em alguma medida, mantendo elementos da cultura e das instituições romanas, e enxergando os ortodoxos de Constantinopla como orientais decadentes e afeminados.

No século VI, surge o Islamismo, que, em pouco tempo, já está esmagando a Europa ocidental pelos dois lados: tomam tanto a península ibérica quanto os Bálcãs. Finalmente, no século XI, quando começam a ameaçar Constantinopla, o imperador pede ajuda aos ocidentais. Um grande exercito latino consegue retomar Constantinopla dos muçulmanos e fundam vários reinos no Oriente Médio, que vão sendo lentamente retomados pelos muçulmanos. O último cai no século XIII e a região não deixará mais de ser muçulmana.

Para Gibbon, o maior benefício das Cruzadas, que considerava um terrível desperdício de vidas, foi justamente desestabilizar o sistema feudal, que também julgava muito nocivo. Além disso, considerava que uma das maiores vantagens das Cruzadas foi ter dado uma sobrevida ao império romano do oriente, que era um guardião da cultura grega e ter dado tempo de a Europa renascer intelectualmente e voltar a valorizar essa cultura a tempo de receber os refugiados que traziam esse conhecimento na mala às vésperas da conquista definitiva de Constantinopla pelos turcos, em 1453, o marco que encerra a Idade Média.

Enquanto isso, ao longo dos séculos, no Ocidente, a Bíblia vai se afastando mais e mais da pessoa cristã comum: tanto o livro, quanto a própria missa, eram mantidos em uma língua que não era compreendida pela maioria das pessoas. Em resposta, uma das principais bandeiras da Reforma Protestante foi a doutrina da sola scriptura: dizia Lutero que um leigo sozinho com a Bíblia tinha mais chances de estar correto do que um Papa ou um Concílio sem ela. Graças à Reforma, a Bíblia começa finalmente a ser traduzida para as línguas vernáculas, ou seja, faladas: a primeira tradução da Bíblia para o português, por exemplo, realizada no século XVII por João Ferreira de Almeida, é protestante. Só no século XX, a Igreja Católica começou a estimular as traduções vernáculas da Bíblia. (Escrevo mais sobre esse processo aqui.)

Mesmo os primeiros líderes protestantes, entretanto, se enfatizam a leitura direta da Bíblia, não enfatizavam sua leitura literal. Calvino, por exemplo, dizia que, na Bíblia, Deus tinha sido caridoso com nossas limitações e tinha explicado somente o que tínhamos capacidade de entender em cada época. Ou seja, as histórias menos edificantes tinham que ser entendidas em seu contexto histórico. E prossegue: astronomia, por exemplo, é um conhecimento útil e bom, e demonstra a sabedoria de Deus em ação nos céus, mas seria absurdo considerar que a Bíblia ensina astronomia. Quem quer aprender astronomia deve buscar a astronomia. O mundo natural fazia parte da revelação de Deus aos homens e, por isso, estudá-lo, em seus próprios termos, também era uma atividade religiosa.

Ao mesmo tempo em que Lutero e Calvino defendiam a sola scriptura” eles também diziam coisas como: “Terá cada fanático de Bíblia na mão o direito de ensinar o que quiser?” (Lutero) e “Se todos tiverem direito de ser juiz e árbitro desses assuntos, então nada poderá ser estabelecido e nossa religião viverá sempre na incerteza” (Calvino). Não demorou muito para a liberdade religiosa inaugurada e possibilitada pela Reforma Protestante começar a ser considerada problemática por seus próprios líderes. Em uma época de conformismo cada vez mais forte e mais violento, o que poderia ser mais perigoso? (Desenvolvo mais esse tema em O significado literal da Bíblia, inspirado em A Bíblia, de Karen Armstrong.)

No capítulo 54, em uma rara olhada para o futuro, Gibbon considera que a Reforma Protestante foi um estágio importante na criação da sociedade civil européia, essencial para o estabelecimento de uma liberdade de expressão e de consciência que seriam imprescindíveis para resistir à tirania e à opressão. (Gibbon raramente abdica da ordem cronológica, então, quando faz isso, é caso de prestar atenção.) Paradoxalmente, a defesa protestante da liberdade civil e religiosa era um fenômeno moderno, nada relacionado à “obediência passiva” valorizada pelos primeiros cristãos, mas também não planejada pelos líderes da Reforma, como Lutero e Calvino. Na verdade, essa liberdade teria sido uma conseqüência não intencional. Seus líderes certamente planejavam somente substituir uma tirania por outra, mas os argumentos que usaram para destruir a tirania católica também serviram para que o povo se defendesse da tirania que tentaram instaurar:

“The chain of authority was broken, which restrains the bigot from thinking as he pleases, and the slave from speaking as he thinks: the popes, fathers, and councils, were no longer the supreme and infallible judges of the world; and each Christian was taught to acknowledge no law but the Scriptures, no interpreter but his own conscience. This freedom, however, was the consequence, rather than the design, of the Reformation. The patriot reformers were ambitious of succeeding the tyrants whom they had dethroned. They imposed with equal rigor their creeds and confessions; they asserted the right of the magistrate to punish heretics with death.  …  The nature of the tiger wa s the same, but he was gradually deprived of his teeth and fangs. A spiritual and temporal kingdom was possessed by the Roman pontiff; the Protestant doctors were subjects of an humble rank, without revenue or jurisdiction. His decrees were consecrated by the antiquity of the Catholic church: their arguments and disputes were submitted to the people; and their appeal to private judgment was accepted beyond their wishes, by curiosity and enthusiasm.” (54)

A outra grande diferença entre católicos e protestantes dizia respeito da salvação através da fé ou através das obras. A Igreja Católica afirmava que seríamos salvas por nossas obras, ou seja, pelo que fazemos. Mas isso abria espaço para mil corrupções irritantes por parte da Igreja. Por exemplo, “obra” poderia ser “número de missas rezadas”, então os ricos pagavam para que rezassem missas por eles, a Igreja enchia os bolsos de dinheiro e eles eram “salvos”.

A Reforma Protestante, basicamente um protesto contra a corrupção da Igreja, afirmava que não. Que seríamos salvos pela fé, por uma escolha arbitrária de Deus, que não dependia de nós. Ou seja, pelo que somos — uma teoria que vai desembocar no narcissismo desenfreado simbolizado pelos Estados Unidos mas que infecta todas nós no grande Ocidente. E, por conta dessa diferença, salvação pelas obras ou pela fé, a Europa ficou dois séculos banhada em sangue, até quase a época de Gibbon.

A Reforma Protestante será um dos temas principais de nossa aula sobre Paraíso Perdido.

(Referências: Social History of Rome, de Geza Alfoldy; Bíblia, uma biografia, de Karen Armstrong.)

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a terceira aula, Romanos, e para a quarta aula, Cristãos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Rápida história do Cristianismo é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 19 de agosto de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/rapida-historia-do-cristianismo // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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