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O conceito cristão de família

Poucos pensadores atacaram o conceito de família tão ferozmente quanto o próprio Jesus. (Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa)

No dia de Natal, celebra-se o nascimento convencionado de Jesus: é um dia de as pessoas aturarem famílias abusivas e violentas das quais, provavelmente, já teriam se libertado há muito tempo se não fosse o doentio fetiche pró-família de nossa cultura.

Ironicamente, dos grandes pensadores e líderes espirituais da Humanidade, poucos atacaram o conceito de família tão ferozmente quanto o próprio Jesus.

Pois, na verdade, ele defendia um novo conceito de família, mais amplo e mais belo.

Abaixo, alguns trechos.

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Jesus rejeita a própria família

Em seguida a mãe e os irmãos de Jesus chegaram; eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo. Muita gente estava sentada em volta dele, e algumas pessoas lhe disseram: “Escute! A sua mãe e os seus irmãos estão lá fora, procurando o senhor.” Jesus perguntou: “Quem é a minha mãe? E quem são os meus irmãos?” Aí olhou para as pessoas que estavam sentadas em volta dele e disse: “Vejam! Aqui estão a minha mãe e os meus irmãos. Pois quem faz a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e minha mãe.” (Marcos 3, 31-35)

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Jesus dá uma patada na mãe

Três dias depois, celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de Jesus. Também foram convidados Jesus e os seus discípulos. Como viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: Eles já não têm vinho. Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, para que me dizes isso? A minha hora ainda não chegou”. Disse, então, sua mãe aos serventes: “Fazei o que ele vos disser.” (João 2, 1-5)

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Jesus rejeita uma benção à sua mãe

Ora, enquanto ele dizia estas coisas, certa mulher dentre a multidão levantou a voz e lhe disse: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que te amamentaste.” Mas ele respondeu: “Antes bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus, e a observam.” (Lucas 11, 26-27)

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Jesus proíbe um discípulo de enterrar o próprio pai

Um outro dos discípulos disse a Jesus: “Senhor, permite-me que primeiro eu vá enterrar meu pai”. Mas Jesus lhe respondeu: “Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os seus mortos”. (Mateus 8, 21-22)

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Jesus veio para destruir famílias

Jesus: “Não vim trazer a paz, mas a espada. Eu vim para pôr os filhos contra os pais, as filhas contra as mães e as noras contra as sogras. E assim os piores inimigos de uma pessoa serão os seus próprios parentes. Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que ama a mim não merece ser meu seguidor. Quem ama o seu filho ou a sua filha mais do que ama a mim não merece ser meu seguidor. “(Mateus 10, 35-37)

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Quem largar a família ganhará tudo

Jesus: “E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos, por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá como herança a vida eterna.” (Mateus 19, 29-30)

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Pessoas da mesma família matarão umas às outras

Jesus: [Em breve, no fim dos tempos,] “o irmão entregará o irmão à morte; o pai entregará o filho; os filhos ficarão contra os pais e os matarão.” (Marcos 13, 12)

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Para seguir Jesus, a pessoa deveria odiar sua família

Jesus: “Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.” (Lucas 14, 25-27)

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Jesus era contra o casamento e achava que seus seguidores não deveriam casar

Jesus: “Os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento, mas os que serão julgados dignos do século futuro e da ressurreição dos mortos não terão mulher nem marido. Eles jamais poderão morrer, porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, porque são ressuscitados.” (Lucas 20, 34-36)

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Jesus defende automutilação e autocastração e, aparentemente, consideraria burcas uma boa ideia

Jesus: “Eu, porém, vos digo: todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou com ela em seu coração. Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo todo seja lançado no inferno. E se tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo inteiro seja atirado no inferno. … Porque há eunucos que o são desde o ventre de suas mães, há eunucos tornados tais pelas mãos dos homens e há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus. Quem puder compreender, compreenda.” (Mateus 5, 28-30; 19, 12)

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Os trechos dos Evangelhos foram esses. Agora, alguns comentários.

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O fim do mundo

Todos os ensinamentos de Jesus tem como base o seguinte fato: o fim do mundo estava próximo e aconteceria ainda na vida das pessoas que lhe estavam ouvindo:

Jesus: “Em verdade vos digo: alguns dos que estão aqui não provarão a morte, sem antes terem visto o Reino de Deus chegar com poder.” (Marcos 9, 1)

Sem levar isso em conta, os ensinamentos de Jesus não fazem sentido.

Porque sua preocupação não era construir uma sociedade viável ou fundar uma religião: pelo contrário, falando para pessoas que em breve testemunhariam o fim dos tempos e o julgamento eterno, a prioridade mais urgente de Jesus era salvar suas almas.

Por isso, os ensinamentos de Jesus são tão radicais e revolucionários, desde dar a outra face até dar a César o que era de César, desde abandonar sua família a se autocastrar: eram ensinamentos de um homem que não estava se preocupando com o futuro material imediato.

Como não havia futuro, a melhor coisa que seus seguidores podiam fazer era tentar viver virtuosamente pelo tempo que lhes restava e, assim, garantir uma vida eterna no céu.

Os ensinamentos de Jesus são tão poucos condizentes à criação de uma religião institucionalizada que, quem lesse os Evangelho sem saber mais nada da história posterior, gargalharia com essa ideia.

Mas, enquanto Jesus é só teoria, Paulo de Tarso é 100% prática. Suas epístolas, guiando as pessoas que tentavam praticar os ensinamentos completamente impraticáveis de Jesus, são elas sim a pedra fundacional do Cristianismo-enquanto-instituição.

Então, por exemplo, enquanto Jesus era contra que seus seguidores casassem, Paulo, mais tolerante, dizia que, se as pessoas iriam transar mesmo, que pelo menos transassem dentro do casamento, *longo suspiro*, mas deixando claro que era uma concessão:

“É bom para o homem abster-se de mulher. Entretanto, para não cair em imoralidade sexual, tenha cada qual a sua mulher, e cada mulher, o seu marido. Cumpra o marido o seu dever conjugal para com a esposa, e a esposa, do mesmo modo, para com o marido. … O que acabo de dizer é uma concessão, não uma ordem. …. Digo, pois, aos não-casados e às viúvas, que é bom para eles ficarem assim, como eu [castos e celibatários]. Se, porém, não conseguem dominar-se, casem-se, pois é melhor casar do que abrasar-se em desejo.” (Coríntios 7, 1-5)

Naturalmente, para fazer isso, Paulo precisou distorcer completamente a mensagem de Jesus.

Ler as epístolas paulinas imediatamente depois dos evangelhos é uma experiência surreal.

Seria como ler O Capital de Marx, com um pós-escrito de Roberto Campos e Milton Friedman explicando como aplicar aquilo na prática: privatizando empresas públicas, diminuindo o tamanho do Estado e cortando benefícios sociais!

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Jesus e a verdadeira família

Então, não. Jesus não defendia o que hoje chamamos de “valores da família cristã”. Pelo contrário, como se vê pelos trechos acima, ele os atacava.

Mas, ao fazer isso, Jesus defendia um novo, mais amplo e mais belo conceito de família: para Jesus, família não eram as pessoas que tinham o nosso sangue mas sim as pessoas que escolhêramos, nossas comunidades de sentido, pessoas que estavam ligadas a nós por tudo aquilo que compartilhávamos, desde nossa fé até nossa ideologia.

É por defender ideias como essas, revolucionárias e iconoclastas, que a palavra de Jesus se espalhou pela Palestina como um rastilho de pólvora. As autoridades sensatas de qualquer época executariam um homem desses.

Não existe injustiça histórica mais cruel e irônica do que os ensinamentos desse homem, depois de distorcidos e desarmados, diluídos e suavizados, terem sido usados para fundamentar o Cristianismo como ele é hoje, desde a Igreja Católica Romana até os evangélicos beijadores de cobras.

A língua inglesa tem um verbo chamado “defang“: “fang” quer dizer “caninos” ou “presas“, e “de” é o sufixo de tirar. Então, “to defang” um animal é tirar o seus caninos, torná-lo indefeso e inofensivo.

Pois foi isso que Paulo fez com a palavra de Jesus: he defanged it.

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Leia os Evangelhos

Para quem curte o Natal, sugiro passar a data conhecendo a palavra do homem que está sendo celebrado. (Pode ser uma experiência surpreendente.)

Os evangelhos caíram como uma bomba no mundo antigo e literalmente mudaram tudo: é interessante tentarmos recuperar um pouco desse estranhamento.

Mateus é o evangelho mais tradicional, certinho. (Acho o mais chato.)

Marcos é áspero e conciso, resumido ao máximo, tipo Jesus por Hemingway, literatura na veia.

Lucas é o evangelho mais cabeça, como se Cícero ou Sêneca, recém-convertidos, estivessem tentando explicar para pessoas como eles o que diabos estava acontecendo na Palestina. Para pessoas intelectuais humanistas ocidentais laicas, é o evangelho que fala a nossa língua, que tenta ser lógico e explicar as incoerências mais gritantes.

João é o mais poético, belíssimo, com um dos mais belos começos da literatura ocidental.

Recomendo sempre ler a Bíblia de Jerusalém ou a Bíblia do Peregrino. (Falo mais sobre isso no meu texto Escolhendo uma Bíblia.)

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Sobre famílias abusivas

Escrevo sobre famílias abusivas e muitas pessoas acham que estou falando da minha. (Como se a gente só pudesse falar da própria experiência.)

Mas escrevo sobre famílias abusivas porque passo meus dias ouvindo pessoas falando sobre suas vidas — e suas famílias abusivas parecem ser a fonte de quase todos seus problemas.

Quanto a mim, afirmo e atesto que minha família é composta de pessoas santas, e a maior prova disso é que cheguei vivo à idade adulta, quando não faltaram chances de torcerem meu pescocinho.

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Sobre trechos fora de contexto

Algumas pessoas ficam muito defensivas ao ler esse texto e respondem quase instintivamente que estou citando os Evangelhos fora de contexto.

Não estou. Aliás, recomendo a todas as pessoas que leiam os Evangelhos de cabo a rabo. Os trechos que destaquei não são figuras de linguagem, metáforas, parábolas.

Uma das principais mensagens de Jesus, pregador subversivo e não-conformista, sua primeira mensagem, talvez sua mensagem mais concreta e mais urgente, era justamente que as pessoas largassem, abandonassem, rejeitassem suas famílias tradicionais e vivessem com ele, em sua comunidade de discípulos mendicantes, para que pudessem então ouvir pessoalmente suas figuras de linguagem, metáforas, parábolas.

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Ho ho ho. Feliz dia convencionado do nascimento de um pregador antifamília traído.

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quarta aula, Cristãos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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O conceito cristão de família é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 30 de agosto de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/o-conceito-cristao-de-familia // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

3 respostas em “O conceito cristão de família”

Entendi q o líder/messias da sua religião era explicitamente anti família, mas aí, milênios depois, como vc agora é pró família, ao invés de refletir no q significa essa discordância, vc prefere ignorar totalmente as palavras do seu próprio messias, considerar q ele não disse o q ele explicitamente disse, e projetar nele aquela que, por coincidência, é a sua opinião hoje — absolutamente oposta ao q ele disse….

Nossa, esse texto só demonstra como a interpretação pode simplesmente ser da maneira como a pessoa quer. Em teologia aprendemos algo essencial para interpretação de textos de 2 mil anos atrás… exegese e hermenêutica. A exegese nos trás o que a pessoa quis dizer naquela época e a hermeneutica, o que posso aplicar agora. Você trouxe a herneutica mas não fez a exegese. E preciso saber o que Jesus queria dizer quando “deu a patada em sua mae”, ou quando disse para os homens não cobiçarem mulheres. É preciso entender porquê ele disse o que disse sobre casamento. Senão sua leitura fica rasa e contraproducente. A Bíblia se encaixa para os exegeticos, e na Bíblia uma das prioridades é família. Logo, desculpa mas é preciso discordar de todo seu texto.

Quanto mais li o seu artigo, mais acredito na bíblia, como não testarei palavras para debater com você deixo aqui um versículo que, quem não tem o Espirito Santo leva tudo ao pé da letra e longe do contexto.

Provérbios 23:9 – Não fales aos ouvidos do insensato, porque desprezará a sabedoria das tuas palavras

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