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aula 09: nações grande conversa martín fierro

Martín Fierro, de José Hernandez

Um poema repleto de injustiças, muitas sofridas, mas muitas perpetradas pelo próprio protagonista, um desertor que virou símbolo nacional.

José Hernandez, autor do poema gauchesco Martin Fierro, obra máxima da literatura argentina, viveu por anos em uma pequena aldeia onde todos se conheciam e, segundo conta Jorge Luis Borges, não deixou nenhuma anedota, era só um pacato senhorzinho:

“Não fez nada de memorável, com exceção de algo que ignorava. Sem nem saber, havia dedicado toda sua vida a se preparar para escrever o Martin Fierro.”

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A disputa política na Argentina

A província de Buenos Aires, com suas estâncias de gado e seu porto, queria controlar as rendas da aduana e era contra a livre navegação dos rios interiores.

As províncias do litoral dos rios, como Entre Ríos e Santa Fé, lutava por descentralização política e pela livre-navegação dos rios, para poderem comerciar com o exterior.

As províncias do interior, onde estavam grandes cidades como Tucuman, Córdoba, Mendoza, também queriam mais autonomia em relação à Buenos Aires.

Disputa com portugueses pela foz do Prata. Colônia de Sacramento. Colonização do Rio Grande do Sul. Guerra da Cisplatina. Guerra do Paraguai. Brasil tendia a defender os interesses de Buenos Aires — nem que apenas porque eram menos pessoas para subornar.

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O Martin Fierro e as Guerras do Prata

Ler sobre as Guerras do Prata é encontrar muitas pessoas que só conhecíamos de nomes de rua: Sarmiento, Bartolomeu Mitre, Venancio Flores, Urquiza, Artigas, etc.

Artigas, general uruguaio, foi o inimigo figadal do Brasil e do domínio português sobre seu país. Depois de uma de tantas derrotas, se autoexilou no Paraguai e não pôde mais sair. Teve que assistir de longe a independência do Uruguai, pela qual tanto lutou.

Urquiza e Flores eram dois caudilhos federales oportunistas que mudaram de lado tantas vezes que era até difícil saber onde estavam. Foram nossos inimigos mas também nossos capangas — por isso, foram memorializados em tantas ruas brasileiras. Quando morreram, ambos assassinados à traição, estavam a nosso mando.

Bartolomeu Mitre, jornalista, portenho, unitário, grande vencedor da Guerra Civil, primeiro presidente da Argentina, primeiro comandante em chefe da Tripla Aliança contra o Paraguai. Depois que subiu ao poder, nunca mais brasileiros e argentinos combateram um contra o outro.

Sarmiento, segundo presidente da Argentina, escreveu o Facundo (1845), que é o clássico unitário — na opinião de Borges, a Argentina seria um país melhor, ou seja, mais unitário, mais urbano, mais civilizado, se tivesse canonizado o Facundo.

Por fim, uma historinha de Urquiza e Mitre.

Em 1859, Urquiza, federal, era o líder da Confederação, ou seja, das províncias que lutavam por mais autonomia, e Mitre, unitário, era o líder das forças de Buenos Aires. Na Batalha de Cepeda, Urquiza e seus gaúchos (dos quais fazia parte José Hernandez, autor do Martin Fierro) dão uma surra memorável nos burguesinhos portenhos.

Deveria ter sido uma batalha decisiva, mas a verdade é que uma vitória de Buenos Aires era do interesse do Brasil e da Inglaterra, que não paravam de injetar mais e mais dinheiro na causa unitária.

Por isso, meros dois anos depois, os mesmos protagonistas se encontram em Pavón para uma nova batalha: Urquiza e seus federales (entre eles, de novo, Hernandez) e Mitre e seus unitários. O resultado deveria ter sido o mesmo, mas…

De repente, no meio da batalha, Urquiza vira as costas e vai embora, levando consigo 4 mil cavaleiros que estavam na reserva e nem tinham entrado em ação.

A batalha de Pavón essa sim é a decisiva: com a derrota da Confederação, Mitre toma posse com primeiro presidente de uma Argentina centralizada em Buenos Aires.

Até hoje se pergunta: por que Urquiza abandonou a batalha que poderia ter ganho?

Existem várias teorias. Uma, que estava doente. Outra, que percebeu que estava nadando contra a corrente da História, que as ambições centralistas de Buenos Aires não podiam ser contidas. Por fim, a que me parece mais provável e condizente com a vida safada que levou, que foi simplesmente comprado, seja por Buenos Aires, pelo Rio de Janeiro, por Londres, ou por todos. (Uma vaquinha?)

Se o Império comprou Urquiza, fez um excelente negócio. A Batalha de Pavón encerra um ciclo de duzentos anos de guerras: depois disso, nunca mais brasileiro combateu argentino.

A guerra civil efetivamente termina em Pavón, em 1861. O ressentimento federal contra Buenos Aires, não.

Em 1871, um último caudilho federal tenta um último levante contra Buenos Aires e José Hernandez, se sentindo traído por Urquiza, se junta a ele.

Mas já não havia nenhuma condição política, econômica, social dessa revolta ter sucesso. Eram os últimos espasmos de um cadáver que se recusava a morrer. Depois de uma derrota fragorosa, Hernandez e seu general cruzam a fronteira (a pé!, uma vergonha) e se autoexilam no Brasil.

Entre 1871 e 1872, para matar o tédio do seu quarto de hotel em Santana do Livramento, ainda lambendo as feridas de sua derrota, José Hernandez escreve o Martin Fierro.

Em breve, o general volta à Argentina e continua sua revolta, que só será efetivamente debelada em 1876 e será, de fato, enfim, a última.

Mas já não conta com José Hernandez em suas hostes: em 1872, ele publica El gaucho Martin Fierro (também chamado de A Ida) e, em 1879, a segunda parte (também chamada de A Volta). Pelo resto da sua vida, será senador por sua província em Buenos Aires, já resignado à vitória de seus inimigos mas tendo imortalizado o gaucho que simbolizava o oposto de os valores urbanos portenhos.

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Por muito tempo, a historiografia argentina, completamente dominada pelos unitários portenhos, via os federales como bárbaros bandidos bandoleiros. A vitória em Pavón e a ascensão de Mitre à presidência, portanto, eram considerados marcos da civilização contra a barbárie.

Hoje em dia, vários historiadores de esquerda já começam a tentar recuperar os federales, a mostrar que muita da resistência federal à Buenos Aires era composta por movimentos campesinos, mais igualitários, lutando contra o capitalismo mercantil que os portenhos tentavam impor ao país.

Em suma, até hoje, em artigos e em livros, a guerra civil ainda está sendo travada.

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O público do Martin Fierro

A literatura gauchesca, por definição, e Martin Fierro é seu exemplo máximo, é sempre escrita por um autor intelectual que tenta simular a linguagem do gaúcho. O fato de Martín Fierro ter feito tanto sucesso entre os próprios gaúchos é prova que conseguiu.

É interessante isso porque existe uma pajada dentro do poema (os últimos cantos da Volta) e dá pra ver a diferença entre a literatura oral criada pelos próprios gaúchos e a literatura gauchesca criada por intelectuais como o Hernandez.

Na literatura gauchesca, temos um intelectual de fora tentando simular a linguagem do gaucho em toda sua maravilhosa especificidade.

Mas a graça é que, quando o gaúcho canta a si mesmo… ele não quer soar gaúcho… ele quer soar bonito, ele usa suas melhores palavras, ele fala de temas sublimes e abstratos, etc.

Então, é bonito ter um trecho assim no poema, pra nos lembrar como seria a literatura gauchesca criada pelos próprios gauchos.

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A Ida contra a Volta

Existem muitas diferenças entre a Ida e a Volta.

Paradoxalmente, Hernandez não escreve a Ida para ser consumida pelos gauchos, mas pela elite portenha. A Volta, por outro lado, ele escreve para os gauchos, já estando famoso entre eles.

Hernandez era editor de um jornal e escrevia centenas de editorias denunciando os problemas sociais e políticos que via. A Ida é uma “representação” poética desses problemas, basicamente para convencer a elite portenha a tentar resolvê-los.

No século XIX, no Brasil, na Argentina, até no Reino Unidos, os soldados rasos e marinheiros eram praticamente recrutados à força. O Estado pegava todos os homens que estivem presos, ou simplesmente dando bobeira na rua, e recrutavam. Pior, se tentassem fugir, eram desertores e podiam pegar a pena de morte.

O primeiro objetivo de José Hernandez ao escrever o Martin Fierro é protestar contra esse estado de coisas.

Mais especificamente, ele está protestando as leis contra a ociosidade, utilizadas pelo Exército Argentino para recrutar forçosamente qualquer homem que não tivesse emprego certo e, então, despachá-lo para o Sul, para a fronteira, para o deserto, onde passaria anos matando indios e não-ganhando soldo.

O poema é escrito justamente para demonstrar como essas leis são odiosas, como destroem lares e famílias, como levam à práticas corruptas e odiosas.

No caso das fazendas, ninguém era “capturado” para trabalhar como “escravo” em fazendas mas, na prática, se o sujeito era recrutado como soldado raso, isso acaba sempre significando ser criado dos generais e coroneis, para o que eles mandarem fazer.

Enfim, é contra tudo isso que Hernandez protesta. Aliás, com enorme sucesso. Quando sai a Volta, as duas leis que permitiam esses horrores já tinham caído. (Ele era tão bom poeta, naturalmente, que a Ida se torna muito mais do que isso.)

Sete anos depois, quando escreve a Volta, esses problemas já tinham sido em larga medida resolvidos, Hernandez não precisava mais puxar a orelha das elites. Mas ele agora, famoso entre os gauchos, faz um “manual de autoajuda” de como ser um gaucho melhor, mais civilizado.

Ou seja, primeiro, ele convence as elites a tratarem melhor o gaúcho — mostrando o que pode acontecer se não fizerem isso: o gaucho vai se rebelar, matar, fugir. Depois, ele convence os gaúchos a merecerem esse melhor tratamento — sendo mais mansos, obedientes, civilizados.

Existe uma aparência, uma sensação de que a Ida é mais contestadora que a Volta, mas isso é uma ilusão de ótima causada pela mudança de público. Na verdade, ambos compartilham da mesma ideologia não apenas liberal mas, em vários momentos, também libertária.

Hernandez não só acreditava e pregava algo parecido com o “estado mínimo” como defendia que a maior riqueza da Argentina, o lugar do país na economia mundial, era sendo fornecedora de matéria-prima para a indústria europeia.

Ou seja, se o campo era a fonte da riqueza do país, então, o gaúcho, como “profissional do campo”, precisava ser valorizado. Daí, a Ida. Mas ele precisava saber se comportar. Daí, a Volta.

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Derrota e esperança

Martin Fierro e Paraíso Perdido são dois poemas escritos por revolucionários derrotados e, apesar de contrários ao status quo, imediatamente celebrados e canonizados. Outra semelhança interessante: o final de La Ida é muito parecido ao final de Paraíso Perdido. Em ambos, uma dupla é escorraçada de sua terra e precisa dar o primeiro passo em direção a um novo mundo desconhecido e assustador.

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a nona aula, Nações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso aconteceu entre julho de 2020 e março de 2021 — quem se inscrever depois dessa data tem acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Martín Fierro, de José Hernandez é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 23 de março de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/martin-fierro-de-jose-hernandez // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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