Alguns dos momentos mais belos, mais humanos, mais surpreendentes da Bíblia são quando humanos tem a temeridade de interpelar a Deus, de questionar sua justiça, de barganhar com ele pelas vidas e pelas almas de seus irmãos.
O melhor momento de Abraão, certamente, é quando barganha com Deus pela vida dos sodomitas. Não deixa de ser surpreendente tanto destemor: afinal, nós já o vimos cafetinando sua mulher, tanto por autopreservação quanto por cobiça, e também entregando uma escrava inocente à sanha de uma senhora ciumenta apenas para não se estressar. Abraão claramente coloca sua própria vida acima de tudo, inclusive de sua descendência — senão, não aceitaria matar seu único filho. Subitamente, entretanto, Abraão arrisca tudo para defender logo quem? As pessoas de Sodoma, gente sem a menor noção de hospitalidade, pecadoras da pior espécie, plenamente culpadas dos crimes pelos quais Deus quer puni-las. E Abraão, que não responde, não reclama, não barganha, quando Deus ordena a morte de seu único filho, responde, reclama, barganha em defesa das pessoas sodomitas (Bloom 300):
“Longe de ti fazeres tal coisa: fazer morrer o justo com o pecador, de modo que o justo seja tratado como o pecador! Longe de ti! Não fará justiça o juiz de toda a terra?” (Gen 18, 16-33)
Abraão argumenta com insistência, impertinência, agressividade, e só pára quando Deus claramente já perdeu a paciência e parece pronto a esmagá-lo como se fosse uma formiga. Abraão interpela Deus para lembrar ao próprio Deus da justiça de Deus. O que poderia ser mais impertinente? Por muito, muito menos, Caim e Saul perdem o favor divino. (Bloom 301) Abraão ganha o debate, mas o efeito prático é nulo, pois ambas as cidades são igualmente destruídas.
Para enfatizar o surpreendente e o inaudito da barganha de Abraão com Deus pela vida dos sodomitas, logo depois (Gen 23, 1-20) vemos Abraão tentando comprar uma “posse funerária” para ele e para Sara, sendo abertamente explorado e cobrado um preço extorsivo… e simplesmente pagando, sem barganhar, sem reclamar, dane-se, é só dinheiro. A narrativa parece estar nos dizendo: existem coisas pelas quais vale a pena barganhar, outras não.
De certa maneira, esse é o grande teste de Abraão, e ele passa. Quando Jó tenta fazer o mesmo, entretanto, Deus não se mostra tão receptivo à lição. No Livro de Jó, temos a maior e mais sustentada interpelação a Deus na Bíblia Hebraica: o protagonista homônimo exige saber porque perdeu tudo. Ele pecou? Ou Deus é que é injusto? Depois de um longo e impertinente diálogo, a melhor resposta que Deus consegue dar a Jó é uma carteirada de criador do universo e mandá-lo se recolher à sua insignificância:
“Onde estava você onde criei os céus e a terra?” (Jó 38, 4)
Existe uma outra interpelação, ainda maior e mais sustentada, que não está na Bíblia Hebraica em si, mas nos apócrifos. Nesse livro, o patriarca Esdras — não argumentando somente em prol de si mesmo, como Jó, ou de apenas uma cidade, como Abraão — tem a coragem moral de interpelar forçosamente o próprio Deus em defesa de toda a humanidade nos mais enfáticos termos. Afinal, é justo criar a humanidade já sabendo que a maioria esmagadora das pessoas passará a eternidade ardendo no fogo dos infernos?
O livro é tão obscuro que até seu nome é confuso: se chama Apocalipse de Esdras, ou 4 Esdras, mas hoje sobrevive como os capítulos 3 a 14 de um livro chamado 2 Esdras, um apócrifo que só existe na Bíblia Eslavônica e como apêndice da Vulgata. Não coloquei em nossa ementa nem como leitura de apoio, pois é complexo de encontrar em ingês (está disponível nas Bíblias de Estudo New Oxford Annotated Bible e The Harper Collins Study Bible) e impossível em português (em nenhuma Bíblia que eu conheça). Se tiverem curiosidade de ler a mais corajosa e impertinente interpelação que o Deus judaico-cristão já recebeu, cliquem aqui (em inglês, King James Version). O diálogo mais forte está na Terceira Visão, que vai de 6,35 até 9,25.
Por fim, no maravilhoso Livro de Jonas, Deus encarrega o personagem-título de profetizar contra a cidade de Nínive, arquiinimiga de Israel, e ele, como quase todos os profetas, hesita e, em seu caso, foge. Acaba famosamente engolido por uma baleia e, depois de salvo, obedece. Para sua enorme surpresa, as pessoas da cidade dão ouvidos às suas profecias e realmente mudam de vida, mas agora Jonas exige que sejam destruídos ou passará por mentiroso. O trecho final é belíssimo:
“Jonas saiu da cidade e instalou-se a leste da cidade. Lá construiu uma tenda e assentou-se à sua sombra para ver o que aconteceria na cidade. Iahweh Deus fez crescer uma mamoneira sobre Jonas, para dar sombra à sua cabeça e libertá-lo do seu mal. Jonas alegrou-se grandemente por causa da mamoneira. No outro dia, ao surgir da aurora, Deus mandou um verme que picou a mamoneira a qual secou. Quando o sol se levantou, Deus mandou um vento oriental ardente; o sol bateu na cabeça de Jonas e ele desfalecia. Então pediu a morte e disse: “É melhor para mim morrer do que viver”. Deus disse a Jonas: “Está certo que te aborreças por causa da mamoneira?” Ele disse: “Está certo que eu me aborreça até a morte”. Iahweh disse: “Tu tens pena da mamoneira, que não te custou trabalho e que não fizeste crescer, que em uma noite existiu e em uma noite pereceu. E eu não terei pena de Nínive, a grande cidade, onde há mais de cento e vinte mil homens!?” (Jonas 4, 5-11)
Esse Deus que interpela seu próprio profeta para defender os inimigos do Povo Escolhido já não é mais o mesmo Deus que afogou o mundo inteiro. Como diríamos nas salas de roteiro, o arco do personagem-Deus na Bíblia Hebraica está completo: ele já se transformou no Deus Paz-e-Amor que, na sequência, enviará seu filho para morrer por nós e que encontraremos na quarta aula, Cristãos.
(Referências: O Livro de J, de Harold Bloom.)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Interpelar a Deus: Abraão, Jó, Esdras, Jonas é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 26 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/interpelar-a-deus // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato