As ditas “heresias cristãs” só são heresias do ponto de vista do cristianismo hegemônico ortodoxo que as derrotou. Durante séculos, porém, foram religiões viçosas e vigorosas, tão reais quanto quaisquer outras.
As possibilidades laterais da História
O mundo, como se apresenta hoje, não é o único que poderia ter sido. Como afirma Bourdieu, em Meditações Pascalianas, “a evolução histórica tende a abolir a própria história”: os projetos bem-sucedidos eliminam os derrotados não apenas da esfera política mas também, retroativamente, da própria História. Perder equivale a nunca ter existido. Quem esteve a um triz da vitória total desaparece como se nunca houvesse nem mesmo competido. As possibilidades laterais desaparecem. A cada nova geração, o mundo é novamente naturalizado e transformado naquilo que esteve sempre destinado a ser — em vez de naquilo que foi construído para ser, naquilo que por pouco não foi.
A História, mesmo a mais progressista e bem-intencionada, possui essa tendência intrínseca de, ao se concentrar no que de fato aconteceu, menosprezar tudo o que poderia ter acontecido. Quanto mais se fala no que aconteceu e menos no que poderia ter acontecido, menos aquelas possibilidades laterais se percebem como concretas e possíveis, e mais fatídica e inevitável nos parece a vitória do status quo.
Essa tendência é sempre nociva. No caso de vitórias, seu sucesso nos parece menos árduo do que realmente foi e minimizamos os enormes esforços realizados em sua conquista e manutenção. Também distorce nossa compreensão das tragédias: tomá-las como “ocorrências históricas inevitáveis” equivale a menosprezar todos que lutaram ativamente contra elas, antes, durante e depois. Significa perdoar todos os erros e evitar uma incômoda autocrítica — afinal, qual o sentido de apontar o dedo para quem agiu mal… se nossa derrota já estava “escrita”? Se nunca houve chance alguma ? Nem nossas vitórias nem nossas derrotas estavam predestinadas. Nossas vitórias poderiam facilmente não ter acontecido — e é importante valorizá-las imaginando o horror de sua inexistência. Nossas derrotas poderiam facilmente não ter acontecido — e é importante estudá-las para evitar as próximas.
Na introdução a sua já clássica obra-prima da história das relações de trabalho, A Formação da Classe Operária Inglesa, o historiador E. P. Thompson pretende justamente resgatar alguns personagens da enorme condescendência da História: os inimigos esquecidos da industrialização, o oleiro utópico, o agricultor ludita. Suas tradições poderiam até estar morrendo. Sua hostilidade ao moderno poderia até ser reacionária. Seus ideais comunitários poderiam até ser pura fantasia. Suas conspirações subversivas poderiam até ser temerárias. Mas eles viveram intensamente essa época de profundos distúrbios sociais, e nós não. Suas aspirações eram válidas em termos de suas próprias experiências, e, se eles foram baixas da História, não podem ser esquecidos só porque suas ações não se justificaram à luz da evolução sociopolítica posterior. Em suas causas perdidas e utópicas podemos descobrir a cura de doenças sociais que ainda não resolvemos hoje em dia. As causas perdidas na Inglaterra do XIX, escreveu Thompson em 1963, ainda podem ser ganhas na África ou Ásia do XX. Ou no Brasil do XXI.
As “heresias” cristãs
É especialmente importante ter tudo isso em mente quando falamos sobre cristianismo primitivo. O cristianismo nos é uma ideia tão normalizada, ele nos circunda de tal maneira por todos os lados, que é fácil esquecer que ele é uma construção histórica, resultado de milhares de anos de muita luta.
Muitas de nós até sabemos as enormes diferenças que, hoje, separam cristãos protestantes, católicos, ortodoxos. Mas ignoramos que mesmo essas divisões (que já causaram e ainda causam mortes) se deram dentro de um único tipo de cristianismo, aquele que emergiu vitorioso das grandes batalhas de fé que abalaram os primeiros cinco séculos do cristianismo primitivo.
As hoje chamadas “heresias” cristãs são “heresias” somente a partir do ponto de vista da ideia de cristianismo que as venceu, derrotou, estigmatizou, enterrou, esqueceu. Mas, durante séculos, durante mais séculos do que nosso país existiu enquanto país, essas idéias de cristianismo conviveram, disputaram, lutaram. Agostinho de Hipona foi maniqueísta, depois adotou a posição hoje vencedora e passou a vida lutando contra donatistas e pelagianos. Pouco depois de sua morte, os donatistas tomaram sua cidade e expulsaram os bispos aliados a ele.
Então, é importante conhecer e pensar essas heresias não como algo que pertence à lata de lixo da história, mas como tipos de cristianismo que, muitas vezes, por muito pouco não se tornaram dominantes no ocidente.
O corpo de Jesus
Por exemplo, hoje, a ortodoxia cristã é que Jesus era ao mesmo tempo homem e Deus. Mas, durante muito tempo, essa foi uma das questões mais debatidas do cristianismo, com docetistas e ebionitas ocupando posições opostas.
O docetismo afirmava que, sendo Deus, Jesus não poderia ter um corpo mortal como o nosso, não poderia sofrer e morrer. Isso não faria sentido, não seria possível. Então, ou Jesus apenas fingia ou parecia ter um corpo humano, mas de fato não tinha nem nunca teve, ou Jesus era um Deus que entrou em um corpo humano, o ocupou e o abandonou na hora de sua morte na cruz. (Daí a famosa frase: “Por que me abandonaste?”) (Ehrman, Evangelhos Perdidos, 36-7)
Já o ebionismo dizia o exato oposto. Eram judeus, que continuavam judeus, reconheciam em Jesus o Messias que tinha sido predito na Bíblia Hebraica, mas negavam sua pré-existência, ou que fosse Deus, ou que tivesse nascido de uma virgem. Jesus seria um ser humano, como qualquer um de nós, nascido a partir de um ato sexual normal, mas que era “Filho de Deus” por ter sido “adotado” por Deus. Por sua vida perfeita, foi ressuscitado e tornado divino. (Ehrman, cap. 5)
(Se a natureza divina ou humana de Jesus já gerava tanta polêmica, se havia tantas posições intermediárias entre “Jesus-só-homem” e “Jesus-só-Deus”, imagine então as discussões sobre a Trindade e o Espírito Santo, cuja postura oficial até hoje é quase impossível de entender!)
A gnose
O gnosticismo foi uma das heresias mais importantes e é, hoje, uma das mais estudadas. O crítico literário Harold Bloom adorava se dizer “gnóstico”. Entretanto, apesar de termos recentemente descoberto um tesouro de textos gnósticos durante escavações em Nag Hammadi, no Alto Egito, incluindo muitos evangelhos apócrifos gnósticos, as dúvidas continuam, pois o gnosticismo era uma religião de mistérios, ou seja, seus segredos somente estavam disponíveis aos poucos iniciados, e os textos frequentemente se contradizem e se anulam. (Sobre eles, recomendo o livro Os evangelhos gnósticos, de Elaine Pagels, uma das grandes estudiosas da Bíblia que temos.)
Mas, de modo geral, o gnosticismo acredita que vivemos em um mundo decaído e miserável, onde não é possível se levar uma vida boa. A única solução é sair desse mundo e alcançar uma outra realidade melhor, mais divina, mais justa. O caminho para isso é através da gnose, que significa conhecimento, e Jesus seria aquele que traria esse conhecimento, para os poucos que conseguissem decodificá-los.
Dificil afirmar mais pois os textos gnósticos são propositalmente opacos, escritos para serem entendidos somente pelos iniciados. Além do livro de Pagels, recomendo também o capítulo 6 de Ehrman.
Outras heresias
Outras heresias incluem o maniqueísmo, donatismo e pelagianismo.
Maniqueístas tinham nojo ao corpo e à procriação, por aprisionar almas divinas em corpos materiais inerentemente hostis à pureza e à luz. Para eles, Deus era bom, mas não onipotente: resistente ao Mal mas incapaz de destruí-lo. A ideia de um Deus onipotente lhes era intolerável, pois significava colocar Deus como cúmplice do Mal. (A postura oposta, vencedora, é, em linhas muito gerais, que Deus é onipotente e que permite o Mal por razões que não conseguimos entender.)
Na juventude, Agostinho fora maniqueísta, o que lhe permitia se distanciar um pouco dos desejos que sentia ardendo dentro de si
“Ainda me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que outra natureza em nós … ao contrário, gostava de me isentar e acusar não sei qual outro ser, que estava em mim, mas não era eu. Na verdade, porém, eu era um só e minha impiedade me dividira contra mim mesmo; por isso meu pecado era ainda mais insanável, porque não julgava ser pecador.” (Confissões, V, 18)
Já os donatistas argumentavam que os pecados de um padre enquanto ser humano podiam invalidar os seus atos enquanto padre. Os homens de Deus tinham que ser tão limpos de pecado quanto Deus. (A postura oposta, que terminou vencedora, era que os padres eram homens, compartilhavam da natureza decaída dos homens e, nessa condição, eram instrumentos, imperfeitos, claro, mas instrumentos, da Graça de Deus no mundo. Por isso, os sacramentos que davam eram validos, apesar de suas falhas pessoais, pois quem dava esses sacramentos era o próprio Deus e eles não deixavam de ser válidos por terem sido feitos com instrumentos que, como não podia deixar de ser, não eram perfeitos. Até hoje, podemos ver essa postura na maneira como a Igreja lida com padres pedófilos.)
Por fim, os pelagianos argumentam que o homem, por seu livre-arbítrio, por suas obras, por sua força de vontade, pode evitar o pecado, salvar a própria alma e conquistar a salvação. Além disso, que a Graça de Deus era dada aos homens de acordo com seus méritos. (A postura oposta, vencedora, atacava o pelagianismo como uma tentativa de transformar o homem em Deus, negava a humildade e estimulava o orgulho. A salvação viria somente pela Graça de Deus, concedida não por méritos, mas pelas razões divinas insondáveis. Naturalmente, se isso for verdade, o que isso significa para o livre-arbítrio humano? Por isso, sempre que Agostinho escreve sobre livre-arbítrio, ele está, efetivamente, respondendo aos pelagianistas.)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quarta aula, Cristãos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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As “heresias cristãs” é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 7 de setembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/heresias-cristas // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato