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aula 06: navegações gil vicente grande conversa

Gil Vicente

Artista medieval na Renascença, reacionário e progressista, criador de vasta obra polifônica, um dos maiores escritores da nossa língua. (Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa.)

Artista medieval em atividade na Renascença, ao mesmo tempo reacionário e progressista, criador de uma vasta obra polifônica, Gil Vicente certamente é um dos maiores escritores da língua portuguesa.

O epitáfio de Gil Vicente.

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Considerado o pai do teatro português, seus anos de atividade são as primeiras três décadas do século XVI, o auge do poderio imperialista de Portugal.

A obra de Gil Vicente é revolucionária sob vários aspectos. Pra começar, ele cria uma obra diversa, mais de 50 peças, entre autos, farsas, tragicomédias, monólogos, etc. Coloca em cena as classes populares, criando mais de trezentos personagens, mais de trinta tipos, cada um com seu discurso próprio, seu jeito de falar, seu sotaque. (Ele, por exemplo, é um dos primeiros a registrar como africanos recém-escravizados falavam o português, apontando várias tendências lingüísticas que mais tarde iriam moldar o português brasileiro.) (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 18-19)

Por detrás desse caudal de personagens, está a denúncia de uma sociedade doente, hipócrita, baseada em valores contraditórios. O teatro vicentino é essencialmente moral e social. Não tem heróis, não tem casos individuais, não tem descrições que valham por si só, não tem palavras que não sejam instrumentos. A ação se sucede sempre num ritmo que não deixa abertura para distrações. Vicente tem um raro poder sintético que lhe permite resumir toda uma realidade social a poucas frases. Tudo o que ele diz é real, é concreto, é presente, é relacionado com fatos reais que todas as pessoas na platéia conseguem entender, ver, conhecer. Os protagonistas não são só os personagens, mas também o público: ninguém podia estar seguro de não estar ali representado, de não se tornar também pretexto de ironias e gargalhadas. A obra de Gil Vicente é uma crítica global de todo um conjunto social cujos desequilíbrios estruturais ele percebeu claramente. Enquanto painel humano, sua obra é um documento histórico de toda uma época de transição, uma descrição do processo de formação de uma sociedade profundamente desigual e desequilibrada. (Maria de Lourdes Saraiva, “Introdução”, em Sátiras Sociais, de Gil Vicente.)

Para Gil Vicente, a tragédia é que se perdem os valores tradicionais e não se adquirem novos: só ganância e ambição.

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Um artista da corte

Gil Vicente era um poeta da corte, como nenhum outro português, nem antes nem depois: passou toda sua carreira sob a proteção da “rainha velha”, Dona Leonor, mulher de Dom João II e irmã de Dom Manuel. (Em um prefácio dirigido a Dom João III, ele se dizia a serviço da “rainha vossa tia”.) A rainha era também grande apoiadora dos franciscanos e não deve ser coincidência que as virtudes franciscanas são algumas das mais elogiadas por Gil Vicente: despojamento, e não ambição, humildade, e não vaidade. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 26-7)

Suas obras presumiam um público nobre e cortesão assistindo a representações em espaços nobres e cortesãos, geralmente celebrando datas comemorativas, nacionais ou religiosas, nascimentos ou casamentos. Mas, embora vinculado a esse público, o artista também toma para si a tarefa de desvelador de realidades escondidas e afrontador de certezas e conveniências. Não é despropositado imaginar que considerava um de seus objetivos informar seu público nobre sobre como era realmente o povo que trabalhava para ele, assim como muitas vezes levantar um espelho para que esses nobres se enxergassem refletidos. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 24-5)

Talvez essa seja a coisa mais importante de lembrar, quando o reacionarismo e o conservadorismo de Gil Vicente começa a nos incomodar, como pessoas leitoras do século XXI: sim, ele é um moralista apontando dedos para sua platéia. Mas os dedos que ele aponta não são nem para nós, nem para os pobres e indefesos de sua época e, na verdade, nem mesmo para os ricos burgueses: Gil Vicente sempre sabe que o seu público é o rei, a rainha, os príncipes, a corte. É com eles que está falando. São eles que ele está sempre instando a colocar a mão na consciência.

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O começo da carreira

Na noite de 7 para 8 de junho de 1502, Gil Vicente surgiu no Castelo de São Jorge, em Lisboa, para celebrar o nascimento do príncipe Dom João. Ele entra de repente, no quarto da rainha, na presença de toda família real, e apresenta sua mais antiga criação dramática que chegou até nós, o Monólogo da Visitação, ou do Vaqueiro, no qual ele, falando (em espanhol) como um vaqueiro, ou pastor, celebra o nascimento do futuro rei. (Essa obra está no volume Autos, organizado por Cleonice Berardinelli.) Ao longo de toda sua obra, Gil Vicente guardará sempre para os vaqueiros e pastores o papel de dizer as maiores e mais importantes verdades. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 32)

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Século de ouro português

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, Portugal tinha um forte movimento humanista, cujo pensamento empírico e experimentalista é essencial para o sucesso das grandes navegações, a partir de 1415. O movimento, entretanto, tem pouca duração: em 1536, a pedido do próprio rei, é instaurada a Santa Inquisição em Portugal.

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Teatro Medieval

O teatro medieval era, em larga medida, religioso, composto de peças curtas, geralmente encenando o nascimento ou paixão de Jesus. Quando muito, havia rápidos diálogos entre personagens secundários. Em Portugal, em fins do XIV, além desse tipo de teatro, havia também espetáculos de momos, encenados nos palácios em ocasiões especiais (nascimentos, casamento, natal, páscoa, etc), que era um teatro puramente cenográfico, com dança, música, mímica, mas sem enredo, sem diálogo.

Mais do que um autor português, ou ibérico, Gil Vicente deve ser apreciado como um autor de dimensão européia. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 38)

José Augusto Cardoso Bernardes, especialista em Gil Vicente, se tivesse que escolher uma única de suas peças para figurar em uma antologia de literatura européia, escolheria Auto da Alma, onde a leitora poderia encontrar uma versão da doutrina agostiniana do livre-arbítrio, um debate sobre a liberdade humana visto através dos prismas do ser e do possuir, e a relação entre liberdade e necessidade compulsiva de consumir. Ou seja, alguns dos tópicos mais importante da tradição ocidental. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 76)

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Por que escrever em espanhol?

Gil Vicente escreveu um terço de sua obra em espanhol. Praticamente todas as suas primeiras obras eram ou em espanhol ou majoritariamente em espanhol. Por quê?

Em primeiro lugar, porque a sua patrona e mecenas, a rainha Leonor, era castelhana. Em segundo lugar, porque as famílias reais se casavam tanto entre si que a corte portuguesa era efetivamente bilíngüe.

Em terceiro lugar, porque o espanhol ainda era visto como uma língua mais elevada, que possuía literatura épica e lírica desenvolvidas, com mais tradição do que o português, que ainda se encontrava às vésperas de sua consolidação. (As primeiras gramáticas da língua portuguesa só surgem em 1536, ano presumido da morte de Gil Vicente. Camões só publica Os Lusíadas em 1572.) Nas Barcas, por exemplo, os personagens do povo falam em português; já os mais elevados, papa, imperador, rei, a morte, se comunicam em espanhol.

Muitas vezes, a diferença também é usada para fins humorísticos e de caracterização. Em Auto da Índia, por exemplo, peça escrita em português na primeira década de atividade do dramaturgo, quando praticamente só escreveu em espanhol, Vicente coloca em cena dois pretendentes para a ama, um castelhano, mostrado como meio ridículo em seu arrebatamento exagerado, e um português, menos calculista e menos exuberante, que acaba triunfando. Nesse cenário, o espanhol grandiloqüente do castelhano é parte integrante da construção do personagem. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 41-2)

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O maior pecado é subir de vida

Em Gil Vicente, as críticas tendem a recair sobre os comerciantes e os burgueses, os representantes dos novos tempos, os que querem subir na vida a todo custo, os que têm ambições materiais, os que corrompem a justiça e os valores morais. Já os elogios geralmente são feitos à honradez, à renúncia, ao trabalho, aos ideais coletivos.

Nas Barcas, os condenados são os presunçosos, quem não cumpre seus deveres morais, os hipócritas, os arrogantes. Os maiores, quando aparecem, papa, cardeais, imperadores, rei, também é para serem criticados por seus pecados graves, tornados mais graves pelas posições que ocupam. No Auto da Índia, o marido é criticado e menosprezado basicamente por sua ambição (tão comum na época) de fazer fortuna nas Índias. Em Inês Pereira, o personagem que se faz cavaleiro e se junta à invasão da África acaba morto a pauladas por um simples pastor. Em Romagem dos Agravados, sua sátira talvez mais contundente, duas freiras se debatem porque há agora tantas pessoas agravadas e insatisfeitas, e responde a outra:

Porque nos tempos passados

Todos eram compassados

E ninguém se desmedia.

Mas a presunção isenta

Que cresceu em demasia

Criou tanta fantasia

Que ninguém não se contenta

Da maneira que soia [costumava].

Tudo vai fora de termos.

Deu o ar na recovagem.”

“Recovagem” eram as pessoas não-combatentes que acompanhavam o exército. A expressão significa, portanto, que se estabeleceu a indisciplina nas camadas populares. Ou, em outras palavras, que os pobres não sabem mais o seu lugar. Daí a sátira vicentina, apesar de viva e rica, ser tantas vezes considerada conservadora, moralista e reacionária, diante de uma nova realidade instável e imprevisível. Apesar de humorística, é uma obra tomada por uma certa melancolia de quem está vendo o mundo mudar muito rapidamente, e não para melhor. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 48-52)

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Gil Vicente e a ideologia dos tempos

Pela vastidão de sua obra, Gil Vicente tem um pouco para todos. Ao longo de toda a história, foi valorizado pelo retrato amplo que pintou, em suas misérias e grandezas, de Portugal em seu auge. A partir da virada do século XVIII para o XIX, ele é valorizado pelos românticos, não apenas por sua qualidade medieval, recuperada por eles, mas também por sua polifonia popular, pela maneira como dá voz aos mais pobres e reproduz o seu modo de falar. Iluministas do XVIII e republicanos do XIX e XX exaltam seu anticlericalismo, suas críticas constantes aos mandos e desmandos da hierarquia católica. Durante a ditadura salazarista, é valorizado por seu patriotismo, por seus autos cristãos, de teor considerado cruzadístico, como Exortação à Guerra e Auto da Fama. Depois da Revolução de 25 de abril, com o fim do projeto colonial, agora se valorizam as suas obras onde se percebem críticas a esse projeto, como o Auto da Índia, que estamos lendo. (Qual será o Gil Vicente mais apreciado pelo século XXII?) (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 19)

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Contra os descobrimentos

As grandes navegações proporcionam ao país um enorme caudal de rendimentos que possibilitam que uma parte significativa da elite possa viver sem ter que produzir. Gil Vicente assistiu à volta de Vasco da Gama de sua primeira viagem às Índias, assistiu à chegada de navios carregados de açúcar das ilhas, de pessoas escravizadas da África, de especiarias das Índias; viu a prosperidade cada vez maior da coroa, nos nobres, dos negociantes; viu também a agricultura se esvaziando de braços e uma progressiva necessidade de importar até os bens mais simples (diz um personagem na Farsa dos Almocreves que até as couves se importavam); viu os empregos sumirem no setor primário; viu as pessoas mais pobres terem cada vez mais dificuldade em ganhar a vida.  (Maria de Lourdes Saraiva, “Introdução”, em Sátiras Sociais, de Gil Vicente.)

Mesmo com as altas mortalidades das viagens às Índias, as riquezas de quem conseguia voltar eram suficiente para esvaziar as lavouras e manufaturas do reino. Com a alta entrada de capitais, torna-se possível importar tudo, então, o problema ia se disfarçando. Mas, quanto mais fácil era entrar num navio e partir para as Índias, mais difícil era se sustentar com o próprio trabalho em um reino economicamente esvaziado.

Gil Vicente escreveu uma obra tão vasta, tão polifônica que é possível escolher obras bem específicas para fazer com que pareça um detrator ou um apologista do expansionismo português. A Exortação à Guerra e o final de Barca do Inferno fazem apologia da expansão marroquina, enquanto o Auto da Fama enaltece as expansão de modo geral, vendo nela o destino e a glória de Portugal. Já no Auto da Índia e na Farsa de Inês Pereira, ele critica dois maridos que vão buscar fama e fortuna respectivamente na Índia e no Marrocos. Por fim, em Triunfo do Inferno, um piloto sem experiência comanda uma nau em direção às Índias.

Vicente não era um propagandista, então, fica difícil encaixá-lo em uma posição. O tom de sua vasta obra dramática é notadamente polifônico e dialógico, e ele dá voz a diversos grupos e tipos. Antes de mais nada, ele era um moralista, e sua crítica é sempre moralista, e não política: os maridos do Auto da Índia e da Farsa de Inês Pereira são criticados não pode terem ido à Índia ou ao Marrocos, mas por terem cedido à ambição da fantasia; por terem renunciado às suas origens e por colocar em risco a ordem estamental do Reino. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 70-1)

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Gil Vicente, medieval e renascentista

É justamente na época de Gil Vicente que começa a surgir a ideia, o conceito de “autor” como conhecemos hoje. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 33)

As obras de Gil Vicente tinha caráter de “pregação”. Era um artista comprometido com sua fé e com seus valores, medievais, tradicionais. Enquanto os humanistas valorizavam causas e ideais laicizantes, científicos, progressistas, Gil Vicente era um artista mais interessado em causas morais. E, se era conservador em termos estéticos, é mais ainda sob o ponto de vista moral e social. Sua defesa intransigente da ordem estabelecida constitui um evidente protesto contra os novos tempos, novos valores, que se desenham e trazem consigo o que para ele deveria parecer um caos desorganizador. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 26)

Em peças como Auto da Barca do Inferno, a condenação e a salvação daquelas almas específicas não se constituem apenas no destino daquelas pessoas, mas em ensinamentos sobre o que é o Bem e o Mal, entendidos também em seu contexto socioeconomico: através da figura do fidalgo, Vicente denuncia os tiranos; da alcoviteira, os hipócritas; do corregedor, os corruptos, etc. (José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, 39)

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Vicente e Brecht

Até pouco tempo atrás, era comum fazer uma distinção forte entre o teatro de Gil Vicente, que seria medieval, esquemático, amorfo, simbólico, sem unidade de tempo e de ação, “mumificado”, e o teatro clássico europeu, de Racine e Shakespeare, mais psicológico, colocando o indivíduo à prova em sua individualidade, com uma unidade de tempo e de espaço mais controlada.

(Pensem em como o Auto da Índia dá dois saltos temporais grandes sem nunca mudar nem de ato nem de cena, comunicados somente por duas falas da Moça.)

De fato, não existem dramas psicológicos em Gil Vicente, nem enredos comparáveis aos de Shakespeare ou Racine. O que ele nos dá são espetáculos alegóricos, povoados por tipos sociais bem caracterizados mas fixos. Não uma imitação da vida, mas uma criação fantasista que tenta interpretar a vida através de uma simbologia poética. Ou seja, parecia um teatro antigo, esquemático, afastado de nós.

A partir do final do século XIX, com Maeterlinck, um dos meus dramaturgos preferidos, passando por Ionesco e explodindo em Brecht, isso começa a mudar. De certo modo, Gil Vicente, de repente, se tornou muito mais próximo de nós do que, digamos, Racine, que parece cada vez mais duro e ossificado sob o peso de tantas convenções, de tanta pureza clássica. Em Brecht, assim como em Gil Vicente, não temos peças realistas, ou de ação única e limitada no tempo e no espaço. Também não há aprofundamento da psicologia dos personagens, que são tipos elementares e esquemáticos: um pastor é sempre um pastor.

O crítico português Antonio José Saraiva compara as peças O Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht, e O Juiz da Beira, de Gil Vicente. Ambas trazem juízes tolos que, ao julgar de forma “equivocada”, acabam expondo os absurdos e injustiças da lei. É uma ideia simples, pertencente ao folclore medieval, talvez mais antiga, mas que atravessou o Renascimento e chegou intacta aos palcos contemporâneos, uma crítica social forte e útil para expor a irracionalidade dos costumes atuais. Como pode estar “mumificado” um teatro tão vivo?

“[O] teatro [de Vicente e Brecht] parte de uma invenção, de uma fantasia, digamos, de uma suposição arbitraria, que desarticula a aparencia observavel, baralha os seus componentes e faz surgir inesperadamente a incoerencia e mesmo o absurdo das coisas que, para o senso comum, sao habituais e evidentes. Dir-se-ia que estes autores levam a efeito sobre os elementos da chamada realidade humana esse mesmo trabalho que Picasso opera sobre os diversos elementos do mundo plastico. A imaginação do poeta cria novas combinações, novos conjuntos, com estes elementos desintegrados dos conjuntos habituais, e, por isso mesmo, e-lhe dado ver coisas que de ordinario se nao veem. … Era sobretudo uma carencia de fantasia e de imaginação o que me levava noutro tempo a considerar como caminho sem saída o que Gil Vicente tern precisamente de mais criador. … Gil Vicente nao esta morto. A história não e mais que uma produção de vida, e a própria ideia do fim do mundo e uma criação da nossa imaginação, ou, melhor, da nossa falta de imaginação. Por isso, convem considerar as criações artisticas do passado como criações vivas que enriquecem um patrimônio com o qual podem sempre contar os criadores desejosos de atingirem algo de novo.”

(Antonio José Saraiva, “Gil Vicente e Bertold Brecht”, 1960.)

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O Não-Humanismo de Gil Vicente

A força satírica e amplidão dos tipos sociais às vezes fazem o teatro de Brecht remeter um pouco ao de Gil Vicente. Essa era a opinião de autores como o crítico Antonio José Saraiva, que considerava sua obra como um “combate ideológico” contra os “valores feudais”. Mas não precisamos deixar de ver o reacionarismo medieval de Gil Vicente só porque reconhecemos a força da sua arte.

A promiscuidade tipicamente vicentina, e nunca mais repetível, entre o humano e o divino, entre mesmo o mais rude e grosseiro humano, promovido a interlocutor válido com o divino por essa mesma simplicidade, é o que o coloca no mundo rústico da Idade Média, cujos contornos hoje nos parecem irreais, mas que foram vividos e amados como naturais e tangíveis em toda sua articulação. Gil Vicente nunca fala de idéias ou de ideais abstratos, mas seus personagens caminham, habitam, evocam presenças divinas com uma naturalidade e um fervor que hoje nem as crianças do nosso mundo concedem a um folclore em dissolução. Pela última vez na história, as verdades humanas se mobilizam como se quase pudessem ser tocadas, sejam elas a Virgem, o Tempo, a Morte.

Essa obra, tão nitidamente tributária de uma visão de mundo que já era arcaizante quando foi produzida, consegue criar uma grande vitalidade e um grande significado. Não é que essa obra contenha algum conteúdo não-ortodoxo em termos religiosos ou que seja revolucionária ideologicamente falando, mas essa obra mesma é ela própria a expressão de uma profunda e rápida transformação social, moral, e até mesmo religiosa, incapaz de tomar consciência de si mesma como transformação heterodoxa ou revolucionária, mas capaz não só de descrever sem nomear o seu profundo mal-estar mas de também sublimá-lo e transfigurá-lo em forma de arte.

A pregação nas peças de Gil Vicente, apesar de aparecer quase sempre na forma de comédia, não deixa de ser trágica, um trágico implícito, não menos presente por ser oculto. Gil Vicente não é o poeta que sensível ao trágico do seu tempo decide não levá-lo a sério e rir com ele. Pelo contrário, esse trágico é invisível a ele, escondido e velado justamente por sua visão de mundo católica e medieval. Esse mundo terreno, radicalmente desvalorizado, esse mundo passageiro, não pode ser o lugar do trágico (como o mundo moderno o entende) porque a única tragédia digna desse nome é a perdição ou salvação das almas. Mas a verdadeira tragédia é justamente um desinteresse cada vez maior, por parte da nova sensibilidade moderna, por essa tragédia da salvação. Esse seria o verdadeiro trágico que representaria a espinha dorsal da pregação teatral de Gil Vicente.

Gil Vicente, o perfeito reacionário, é o dique contra tudo isso, isso que embora ainda não explícito, constituía já a substância histórica dos tempos atuais, não como teoria, nem mesmo como prática, mas como pressentimento, como possibilidade. Quem estava às portas da Renascença não era Gil Vicente fazendo tudo que lhe era humanamente possível para que não abrissem, mas sim o povo português, e atrás dele o povo europeu, que na realidade do seu viver Gil Vicente nos apresenta sempre longe de um certo ideal, nunca concretizado mas sempre presente, de um mundo antigo que o poeta saúda e tenta conservar.

(Eduardo Lourenço, O gibão de mestre Gil; Antonio José Saraiva, “Prefácio”, em Teatro de Gil Vicente.)

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Esse texto (que não é uma criação original, mas uma paráfrase dos textos de referência) faz parte dos guias de leitura para a quinta aula, Grandes Navegações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Gil Vicente é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 9 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/gil-vicente // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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