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aula 03: romanos declínio e queda do império romano grande conversa

Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon

A história mais interessante de todos os tempos narrada pelo mais talentoso contador de histórias.(Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa)

São raros os livros de História das décadas passadas, ou mesmo dos séculos passados, que ainda se lêem como livros de História: Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon é um dos poucos e, sem dúvida, o melhor. Nunca mais ninguém teve a temeridade de empreender uma análise histórica com tamanha envergadura tanto no tempo quanto no espaço: do reinado de Marco Aurélio, no ano 100, até a queda de Constantinopla, em 1453, cobrindo toda a gigantesca área do Império Romano. A força literária de Declínio e queda está na união entre a história mais interessante de todos os tempos (como pôde a instituição humana mais sólida que jamais existiu se esfacelar tão completamente?) e um dos melhores e mais talentosos narradores também de todos os tempos. Poucas leituras são mais instrutivas, mais deleitosas, mais polêmicas: sua tese central, de que foi o Cristianismo que apodreceu o Império Romano por dentro, ainda gera controvérsias exaltadas até hoje. Como escreveu Jorge Luis Borges, antes líamos Declínio e queda para nos informar sobre Roma. Hoje, além disso, lemos para conhecer as opiniões de um fascinante cavalheiro inglês do século XVIII, mestre contador de histórias, sobre Roma.

As referências abaixo são sempre ao livro Declínio e queda do Império Romano, a não ser quando indicado. Os números em parênteses se referem aos capítulos da edição original. Quando o trecho constar da edição brasileira publicada pela Companhia das Letras em 2005, ele será dado em português; se não, no original, em inglês.

Por que ler Gibbon no século XXI

Se eu quisesse somente que vocês tomassem contato com os fatos históricos de Roma Antiga, teria escolhido um livro assim. Existem vários. Mas não. Como nossa leitura sobre os romanos, não escolhi nem uma obra primária escrita por um romano da época, que teria interesse histórico, e nem um livro de história contemporâneo escrito por um acadêmico de hoje, que teria interesse informativo. Escolhi um livro escrito na Inglaterra em 1776, que não é nem um nem outro. Por quê?

Em primeiro lugar, pela qualidade literária. Porque Gibbon é, de fato, um dos maiores contadores de histórias de todos os tempos, tem uma verve irresistível, encadeia causos como ninguém.

Em segundo lugar, pelos fatos do Império Romano. Porque, se teríamos que passar obrigatoriamente pelos romanos, que fosse antes lendo um dos melhores contadores de histórias de todos os tempos, do que um historiador de hoje, muito mais academicamente competente, mas também muito menos interessante.

Em terceiro lugar, pela tese de Gibbon. Porque não lemos um livro de história somente pelos fatos, mas também por sua tese. (Todo livro de história, se não quiser ser somente um amontado seco de fatos e números, terá que ser, em alguma medida, um ensaio.)

E a tese de Gibbon não só é muito representativa de sua época (século XVIII, iluminismo, enciclopedismo, deísmo, liberalismo, etc) mas também muito influente até hoje, base lapidar da própria ideia que o Ocidente tem de si mesmo, e template para outros mil livros, estudos, teses sobre o declínio e queda do Império Britânico, dos Estados Unidos, da União Soviética, do próprio Ocidente.

Então, Gibbon acaba sendo um nódulo central, um ponto ótimo onde se articulam, se unem, se separam várias linhas:

1) uma arquinarrativa que sai do mundo antigo, mostra o Cristianismo forçando a transição da Antiguidade para a Idade Média e termina na Queda de Constantinopla, no marco temporal do início da Idade Moderna;

2) uma tese que ilustra os saberes, as prioridades, as limitações do iluminismo europeu do século XVIII, esse movimento que encerra a Era Moderna e abre alas para a Revolução Francesa e a Era Contemporânea;

3) uma ideia de Ocidente, uma concepção de progresso histórico, que atravessa toda a Era Contemporânea e ainda explica, demonstra, ilumina como nós, hoje, pensamos nós mesmas, nossa história, nossa cultura.

Por isso, em um curso sobre a Grande Conversa, estamos lendo, como literatura, o livro Declínio e queda do Império Romano, cobrindo os anos de 180 a 1453, e publicado em 1776 pelo britânico Edward Gibbon.

O século 18 de Gibbon

Gibbon nasce em 1737 e morre em 1794. Ele é deputado na Câmara dos Lordes no começo do retração do Império Britânico. Nessa época, depois de muitas e muitas guerras religiosas, os católicos eram uma minoria subalterna no Reino Unido anglicano. Não podiam nem votar, nem herdar, nem deixar herança, nem servir na Câmara, nem ser funcionários públicos, praticamente nada. Enquanto estudava em Oxford, uma universidade anglicana, Gibbon se converte secretamente ao catolicismo: se tivesse se convertido abertamente teria sido expulso. (Os católicos somente obtém totais direitos políticos no Reino Unido em 1829, 35 anos depois da morte de Gibbon, no que é considerado o marco da democracia britânica.)

Assustado com as conseqüências práticas que isso poderia ter, seu pai o envia para Lausanne, na Suiça, onde mora por cinco anos com um pastor protestante, que fica encarregado de sua educação. Obediente, Gibbon se converte de volta ao anglicanismo. Nessa mesma época, se apaixona por uma moça plebéia, mas seu pai proíbe o relacionamento, ou ameaça cortar sua mesada. Incapaz de se sustentar sozinho, Gibbon obedece. (Ele nunca se casará e não se sabe de outros relacionamentos.)

Ele volta ao Reino Unido, serve na Câmara dos Lordes, mas só obtém independência financeira quando seu pai morre. Apesar de nobre, era relativamente pobre, e só conseguia se manter com a renda de uma comissão comercial que tinha na Câmara. Quando o governo muda e perde esse beneficio, acaba se mudando de volta para Lausanne, onde o custo de vida era menor e onde escreverá Declínio e Queda.

Gibbon chama sua narração de “a maior e mais terrível cena da história da humanidade”. (Cap.71, no último parágrafo do livro.) Apesar disso, não é um livro deprimente, mas que pulsa de otimismo (um otimismo reservado e cético, mas otimismo) em cada página.

No Reino Unido, do século 18, o objetivo da História era, em larga medida, explicar o sucesso atual da Europa, como tinha chegado no esplendor atual a partir da destruição do Império Romano. A Europa do século 18 se via diferente da antiguidade em duas maneiras principais: em primeiro lugar, por contar com uma rede interconectada e interdependente de nações soberanas, ligadas entre si por comércio e por cultura. E, em segundo lugar, porque as guerras religiosas dos séculos 16 e 17 tinham ensinado que o poder religioso precisava estar sujeito ao poder civil. (Ao contrário dos autores antigos que ele lê e cita, Gibbon tinha uma noção aguda da destruição que a religião descontrolada poderia trazer a Europa.) A existência desse sistema robusto de nações, ligadas por laços de comércio e cultura, parecia afastar o perigo seja de uma invasão bárbara ou de ambição imperial de algum dessas nações sobre as outras. (Gibbon não era um saudosista da noção de Império.) Esse otimismo é a base da história de Gibbon. Ele está narrando uma história terrível, mas que ele e seus leitores consideram que terminou bem.

O grande feito historiográfico de Gibbon foi mostrar que a civilização européia contemporânea devia tanto ao Cristianismo quanto ao passado clássico, algo que talvez nos pareça óbvio e autoevidente (é a base desse curso) mas justamente porque Gibbon foi tão influente que pautou a própria ideia que temos do Ocidente e de nós mesmas.

Gibbon certamente escreveu Declínio e Queda acreditando que vivia no auge da civilização, mas talvez não tenha morrido com essa certeza. Os Estados Unidos declaram sua independência no ano que publica o primeiro volume. Já os últimos volumes saem em 1788, vésperas da Queda da Bastilha. Em 1793, quando sai de Lausanne para empreender aquela que seria sua última viagem, para visitar seu melhor amigo que acabara de perder a esposa em Londres, Gibbon demora mais de mês em um trajeto de menos de uma semana, pois precisa dar a volta pela Alemanha para evitar os campos de batalha da França, conflagrados pela Revolução Francesa. As próximas décadas, até a derrota definitiva de Napoleão em 1815, serão de intensa guerra na Europa, conflagrada por um autoproclamado Imperador e conquistador de nações. Tudo aquilo que Gibbon imaginava já estar superado em sua Europa tão civilizada. Quando morre, em 1794, ele já era outro homem, muito menos otimista, do que aquele que finalizara seu livro em 1787.

(Referência: Stuart-Buttle, “Gibbon and enlightenment history in 18th century Britain”.)

A pergunta de Gibbon

A pergunta de Gibbon, articulada no começo da obra, é: como caiu o maior e mais sólido império de todos os tempos? No capítulo 38, porém, que fecha o terceiro volume, publicado em 1781, quando Gibbon já levava mais de dez anos pesquisando a queda do Império Romano, ele muda totalmente o eixo da questão. Talvez a pergunta não seja porque o Império Romano caiu, mas como conseguiu subsistir por tanto tempo:

“A ascensão de uma cidade que se avantajou num império bem merece, por singular prodígio, ser tema de reflexão para um espírito filosófico. Todavia, o declínio de Roma foi a natural e inevitável consequência da grandeza imoderada. A prosperidade fez com que amadurecesse o princípio de decadência; as causas de destruição se multiplicaram com a extensão das conquistas; e tão logo o tempo ou os acidentes removeram os sustentáculos artificiais, a estupenda estrutura desabou sob seu próprio peso. A história da sua ruína é simples e óbvia; em vez de perguntar por que o império romano foi destruído, devemos antes surpreender-nos de ele ter durado tanto. As legiões vitoriosas, que em guerras remotas adquiriram os vícios de estrangeiros e mercenários, primeiro tiranizaram a liberdade da república e mais tarde violaram a majestade da púrpura. Os imperadores, preocupados com sua segurança pessoal e com a ordem pública, viram-se reduzidos ao vil expediente de corromper a disciplina que as tinham tornado temíveis ao seu soberano e ao inimigo; relaxou-se a energia do governo militar, e finalmente dissolveu-se com as instituições facciosas de Constantino; e eis que o mundo romano foi engolfado por um dilúvio de bárbaros.” (38)

E por que caiu? Por que se manteve?

O estilo “insincero” de Gibbon

Uma palavra chave para definir o estilo de Gibbon seria “desingenious”, que não tem uma tradução boa para o português. Insincero seria a melhor aproximação. Não mentiroso, não dissimulado, isso tudo seria rude demais para um homem sutil como Gibbon. Mas insincero, com certeza. Ele nunca está mentindo. Com certeza, não está enganando. Mas nunca está dizendo exatamente aquilo que ele quer dizer.

De certo modo, a descrição de Augusto, tão bem revelado em toda a duplicidade que também era sua maior qualidade política (trouxe duzentos anos de paz ao Império!) também poderia se referir à própria prosa gibboniana:

“O terno respeito de Augusto por uma constituição livre que ele próprio havia destruído só se pode explicar pelo exame atento do caráter desse sutil tirano. Cabeça fria, coração insensível e disposição covarde o haviam induzido a assumir, desde os dezenove anos de idade, a máscara de hipocrisia que nunca mais pôs de lado. Com a mesma mão, e provavelmente com o mesmo estado de espírito, ele assinou a proscrição de Cícero e o perdão de Cina. Suas virtudes, e mesmo os seus vícios, eram artificiais; e de conformidade com os diversos ditames do seu interesse, foi a princípio o inimigo, depois o pai do mundo romano. Quando o concebeu o ardiloso sistema da autoridade imperial, sua moderação se inspirou nos seus temores. Desejava iludir o povo com uma imagem de liberdade civil e os exércitos com uma imagem de governo civil.” (3)

O parágrafo abaixo, do capítulo 54, onde Gibbon dá um salto para o futuro e fala sobre a Reforma Protestante, ilustra alguns pontos interessantes:

“The volumes of controversy are overspread with cobwebs: the doctrine of a Protestant church is far removed from the knowledge or belief of its private members; and the forms of orthodoxy, the articles of faith, are subscribed with a sigh, or a smile, by the modern clergy. Yet the friends of Christianity are alarmed at the boundless impulse of inquiry and scepticism. The predictions of the Catholics are accomplished: the web of mystery is unravelled by the Arminians, Arians, and Socinians, whose number must not be computed from their separate congregations; and the pillars of Revelation are shaken by those men who preserve the name without the substance of religion, who indulge the license without the temper of philosophy.” (54)

Qual é a mensagem desse pequeno trecho? Por um lado, sim, livre-pensamento é bom. Desde que não vá longe demais, claro. Por outro lado, ele tem a tendência de sempre ir longe demais. A ironia aqui não é de Gibbon, é da própria natureza da realidade — sim, livre-pensamento é bom; sim, livre-pensamento ás vezes vai longe demais; sim, a religião pode ser inimiga da filosofia; sim religião e filosofia podem caminhar juntas. A genialidade do estilo de Gibbon é justamente transmitir para nós toda a ironia e ambivalência da própria História através de seu estilo, também irônico e ambivalente. Ele não explica a ambivalência e ironia da História: ele nos demonstra, ele nos faz senti-la.

Quando escreve em um estilo imponente e altivo, deliberado e pesado, nós nunca podemos ter certeza se está escrevendo assim porque a grandeza do assunto pede esse estilo; se está apenas sendo irônico ao falar de maneira tão grandiosa sobre algo que é apenas “pouco mais do que o registro dos crimes, das loucuras e dos infortúnios da humanidade” (3); ou se está tentando recriar, retoricamente, a grandeza do original. Nunca temos certeza, mas somos enredados por cada frase.

Às vezes, uma única frase, quase sempre, um único parágrafo, sempre, um único capítulo parece puxar para diferentes lados, oferecendo diferentes perspectivas de um mesmo fato, que só não são incoerentes pois o estilo sofisticado de Gibbon consegue sempre amarrar esses instáveis pacotes nas delícias da sua pluralidade intelectual. Sua escrita desliza e medeia: em cada delicadeza de frase, alusão, estrutura, sua prosa provoca reações sutis que a leitora não conseguiria articular, mas que também não consegue deixar de sentir.

Ao longo de todo o livro, as notas lhe oferecem centenas de novas oportunidades de fazer fofocas, se contradizer, acrescentar detalhes picantes, de tudo um pouco, enriquecendo absurdamente sua narrativa já tão rica. Um exemplo interessante de como Gibbon utiliza as notas. No capítulo 14, ele diz:

“In the full confidence that the approaching death of Constantius would leave him sole master of the Roman world, we are assured that he [Galério] had arranged in his mind a long succession of future princes, and that he meditated his own retreat from public life, after he should have accomplished a glorious reign of about twenty years.” (14)

Nesse contexto, parece que “we are assured” se refere ao próprio Gibbon, que está confiante da veracidade dessa afirmação, e que compartilha essa certeza conosco. Uma rápida olhada na nota de rodapé, entretanto, mostra o historiador passando a responsabilidade adiante:

“These schemes, however, rest only on the very doubtful authority of Lactantius”

Ou seja, quem está certo disso é Lactâncio e não, de modo algum, Gibbon, que inclusive faz questão de se distanciar dessa afirmação e se manter absolutamente cético — apesar de passar a impressão oposta para quem somente leu o texto sem consultar a nota. Na tradução para o português, a ambigüidade é eliminada, eliminando também o charme e a riqueza e a insinceridade do estilo de Gibbon:

“Na plena confiança de que a morte de Constâncio em breve o faria único senhor do mundo romano, asseveram-nos que [Galério] concebera na mente uma longa sucessão de futuros príncipes e planejara retirar-se da vida pública após ter completado um glorioso reinado de cerca de vinte anos.” (14)

(Fred Parker, “The Style of Decline and Fall”; David Womersley, The transformation of The decline and fall of the Roman Empire.)

O risco de Gibbon

É importante ressaltar que, embora estivesse escrevendo em uma época iluminista, onde já não havia guerras religiosas, onde já se pode escrever uma história laica como a dele, Gibbon também está escrevendo em uma época de transição, onde ainda existem alguns elementos dos tempos teocráticos que vão sendo superados.

Em outras palavras, o estilo insincero de Gibbon ao falar sobre o Cristianismo não é só afetação intelectual, mas instinto de sobrevivência. Em sua época, ainda estava em efeito o Blasphemy Act de 1697, que proibia pessoas que tivessem professado a religião cristã de 1) negar a divina trindade, 2) afirmar que existia mais de um Deus, 3) negar a verdade do Cristianismo, e 4) negar a Bíblia como autoridade divina. A pena incluía proibição de trabalhar para o governo, servir na Câmara, dar entrada em processos no Judiciário, ser guardião ou executor, deixar ou receber heranças, e até três anos de prisão.

Não eram punições leves: a menor dessas penas teria deixado Gibbon completamente falido e incapaz de se sustentar. (Não era um medo vão: somente em 1817, mais de vinte anos depois de sua morte, essa lei foi utilizada três vezes para processar um mesmo editor de obras radicais.)

Às vezes, lemos um texto como esse, que soa tão próximo a nós e à nossa sensibilidade e imaginamos, erroneamente, que foi escrito sob as mesmas liberdades que hoje escrevemos. Quase sempre, é um engano.

Gibbon e os cristãos

O primeiro volume de Declínio e queda, publicado em 1776 e indo até o capítulo 16, e tem quase a estrutura de um livro de mistério. No começo, Gibbon se coloca a questão: por que caiu o Império Romano? Muitas respostas possíveis vão surgindo (e sendo refutadas) ao longo da narrativa: o Império ficou grande demais e caiu por impossibilidade administrativa; os cidadãos perderam seu ardor patriótico e cidadão; se tornaram moles e mal-acostumados; confiaram demais na proteção dos bárbaros que tinham conseguido cooptar; as legiões subverteram as instituições políticas com seu poder, etc etc.

Ao longo de todo o primeiro volume (sempre lembrando que estamos falando aqui do primeiro volume publicado em 1776, que vai somente até o capítulo 16), existe uma ausência sempre conspícua: o Cristianismo. Em vários momentos, sua ausência é sentida. Pensamos: ué, por que aqui ele não fala do Cristianismo? Mas Gibbon não fala. Até o fatídico capítulo 15, é nem como se o Cristianismo não fosse um fato importante na queda do império romano: é quase como se o Cristianismo nem existisse. Gibbon parece nos provocar, quase falando do Cristianismo, mas nunca, de fato, falando. No capítulo 10:

“Ao mesmo tempo em que ele lutava com a violência da tempestade, a mente de Décio, calma e ponderada em meio ao tumulto da guerra, investigava as causas de ordem mais geral que, desde a época dos Antoninos, tão impetuosamente acelerava a decadência da grandeza romana.” (10)

Quais são essas “causas de ordem mais geral”? Que elemento social era esse que minava a virtude pública, desprezava as leis, destruía os antigos princípios e tradições? Gibbon não diz. Ainda não. Do capítulo 11:

“Under the deplorable reigns of Valerian and Gallienus, the empire was oppressed and almost destroyed by the soldiers, the tyrants, and the barbarians. It was saved by a series of great princes, who derived their obscure origin from the martial provinces of Illyricum. Within a period of about thirty years, Claudius, Aurelian, Probus, Diocletian and his colleagues, triumphed over the foreign and domestic enemies of the state, reëstablished, with the military discipline, the strength of the frontiers, and deserved the glorious title of Restorers of the Roman world. (11)”

Quem seriam esses tais “inimigos domésticos” sobre os quais esses imperadores triunfaram? Gibbon, curiosamente, não diz. Mas quem conhece a história do império romano sabe que Diocleciano foi dos imperadores que mais perseguiu… cristãos.

Mas Gibbon estava se guardando. É como se todas as referências ao Cristianismo fossem se acumulando até o final do livro. Então, nos últimos dois capítulos, 15 e 16, Gibbon primeiro apresenta o desenvolvimento do Cristianismo sob o Império Romano e, depois, simplesmente demole alguns dos mitos mais queridos pelos cristãos, como o fato de terem sido perseguidos pelo Império, e até mesmo os seus milagres mais famosos, como a escuridão que tomou o mundo na hora da morte de Jesus. E, assim, nessa nota de extremo ceticismo, encerra-se o livro. (Os leitores só teriam mais Declínio e queda cinco anos depois, em 1781.)

Gibbon nunca diz, nem nesse livro, nem nos seguintes, que o Cristianismo era o culpado pela queda do Império Romano. Mas quem é que aparece no ultimo capítulo de uma investigação policial? O culpado. A própria estrutura do livro responde à pergunta inicial de Gibbon (quem corroeu o Império por dentro?) sem que ele nunca precise articular a resposta que poderia levá-lo preso (o Cristianismo).

Gibbon  vai enredando o leitor cristão, sempre se fingindo de bom moço, de religioso e de piedoso, mas todas as suas frases são exercícios de uma ironia de sutil, sempre podendo (e geralmente querendo) dizer outra coisa, e, assim, ele vai ganhando a confiança do leitor, e esse pobre leitor cristão vai indo e indo, lendo e concordando, achando que Gibbon está do seu lado, sem ver o perigo… até que, de repente, no final do capítulo 16, Gibbon finalmente puxa o tapete e deixa o leitor cristão derrubado, sozinho, pelado, sem base, sem argumentos.

Mas, na prática, ele não disse nada. Não fez uma única afirmação anticristã sequer (o que, aliás, seria contra a lei e poderia dar até cadeia) mas colocou todo o Cristianismo em dúvida. Dentre os leitores originais, a briga era entre os cristãos que sinceramente não percebiam a ironia e defendiam Gibbon (“mas olha como ele é um bom cristão…”) e os que entenderam bem demais mas que simplesmente não conseguiam demonstrar exatamente onde no texto estava o seu óbvio anti-Cristianismo.

O estilo aristocrático, sofisticado, irônico, suave, sutil da maior parte do primeiro volume vai amaciando o leitor, acostumando-o àquele tom, nada radical e nunca rude, completamente diferente dos deístas, iluministas da época. (Quando Gibbon mais pega gentilmente na mão do cristão para guiá-lo em sua narrativa, mais na verdade está conduzindo-o ao abatedouro.) Quando enfim chegam os capítulos 15 e 16, o leitor está completamente despreparado, sem defesa alguma: o tom de convivialidade permanece o mesmo (bem, quase o mesmo), mas o conteúdo é simplesmente demolidor da fé e da religiosidade de seus contemporâneos.

Voltaire também usava ironia contra a religião, mas era uma ironia quase violenta como se parecesse ansioso para, a qualquer momento, deixar de simulação e detonar logo aqueles preconceitos que via como tão nocivos. Ninguém conseguiria ler Voltaire, mesmo em seu modo mais irônico, e não perceber seu anticlericalismo radical. Gibbon é o contrário: sua ironia é fina, sutil e, mais importante, larguíssimamente, longamente, lentamente sustentada. Sua principal característica é justamente a facilidade pela qual pode não ser percebida. Ou, pelo menos, não percebida em suas fronteiras mais precisas: como dizer onde começa e onde termina? Quando Gibbon está falando sério? Quando está sendo irônico? Impossível saber.

Gibbon afirma, com sua insinceridade de praze, que é possível separar as discussões históricas e religiosas, que nenhuma discussão meramente histórica teria o poder de impugnar as sagradas verdades religiosas, e o leitor, seduzido pelo estilo delicado, acredita e se deixa levar direto para a armadilha. A narrativa abunda em talvezes, contudos, quem sabes, como se enfatizando o cuidado e a hesitação de Gibbon: um autor tão aristocrático, tão cauteloso, tão incerto, não estaria nos levando em direção à apostasia, não é? Mas está. Pois o Cristianismo baseava, e especialmente o anglicanismo, grande parte de sua força em uma pretensa comprovação histórica dos milagres.

Para pensadores cristãos, como Agostinho em A cidade de Deus, a pax romana de Augusto teve como único objetivo facilitar a propagação do Cristianismo. Visto dessa perspectiva, a razão da queda do Império Romano é autoevidente: uma vez que ele já serviu para propagar o Cristianismo por todos os cantos do mundo civilizado, ele não precisa mais existir e pode ceder espaço ao novo mundo. Até a época de Gibbon, ainda havia historiadores que falavam do império romano como uma nota de rodapé na história do triunfo do Cristianismo. Gibbon, entretanto, oferecerá outras alternativas. Quando finalmente começa a abordar o Cristianismo, se recusa a creditar sua inegável vitória pela verdade de sua teologia, pois esse não seria um raciocínio histórico. O leitor cristão estranha, mas confiando na gentileza do estilo de Gibbon, vai em frente. A seguir, ele dá suas razões, laicas, para o sucesso do Cristianismo: ele 1, nutre a necessidade humana de entusiasmo militante, direcionando suas energias até então dissipadas; 2, consola seu medo da morte com a possibilidade de vida eterna; e 3, oferece um cardápio infindável de maravilhas e milagres.

Na superfície, não parece afrontoso ou sacrílego, mas Gibbon está em solo movediço. Para o leitor cristão, para quem era autoevidente que a vitória do Cristianismo era por ser verdade, poderia soar sacrílego ver o sucesso de sua religião sendo explicado utilizando praticamente os mesmos termos com os quais se explicava o sucesso e a expansão do islamismo. Mas um era verdade e o outro idolatria, não? Como poderiam ter a mesma explicação? Enquanto isso, o leitor cristão, confiante, ainda está de mãos dadas com Gibbon, se deixando levar, progressivamente mais confuso, talvez desconfiado.

Nas mãos de Gibbon, um abismo cada vez maior vai se abrindo entre historia e religião, entre história sagrada e história profana, entre explicações históricas e explicações religiosas, mas ele nunca é dogmático, nunca afirma nada, deixa tudo nas mãos do entendimento do leitor. Na verdade, o brilhantismo de seu estilo relutante e hesitante é justamente nunca encurralar o leitor: o leitor de boa fé sempre poderá se refugiar na certeza que o autor não estaria falando o exato oposto de sua intenção e, por óbvio, que o livro não é tão apostata quanto parece para alguns.

Em um dado momento, os leitores mais argutos percebem que, depois da encruzilhada lá atrás onde as explicações religiosas se separaram das filosóficas, Gibbon os levou tão longe no caminho filosófico que, para continuarem acompanhando-o, precisarão deixar de ser cristãos, precisarão ativamente desacreditar nas doutrinas de sua fé.

Gibbon desmonta três ideias importantes e caras aos cristãos de sua época: em primeiro lugar, a ideia tradicional de que os cristãos eram perseguidos tanto pelos bons quanto pelos maus imperadores — somente por alguns.

Em segundo lugar, desmente a enorme quantidade de mártires cristãos nas mãos dos romanos — foram somente cerca de 2 mil em 300 anos, ou seja, uma média de 6 mártires por ano, em todo o mundo conhecido — e enfatiza que os cristãos se mataram muito mais em suas lutas internas. No penúltimo parágrafo do capítulo 16, Gibbon faz uma de suas raríssimas comparações com o futuro, e compara as mortes de cristãos por romanos em todo o Império, em trezentos anos, com as mortes causadas por um único monarca cristão em uma única província de seu Império: Carlos V, da Espanha, na Holanda:

“We shall conclude this chapter by a melancholy truth, which obtrudes itself on the reluctant mind; that even admitting, without hesitation or inquiry, all that history has recorded, or devotion has feigned, on the subject of martyrdoms, it must still be acknowledged, that the Christians, in the course of their intestine dissensions, have inflicted far greater severities on each other, than they had experienced from the zeal of infidels. During the ages of ignorance which followed the subversion of the Roman empire in the West, the bishops of the Imperial city extended their dominion over the laity as well as clergy of the Latin church. The fabric of superstition which they had erected, and which might long have defied the feeble efforts of reason, was at length assaulted by a crowd of daring fanatics, who from the twelfth to the sixteenth century assumed the popular character of reformers. The church of Rome defended by violence the empire which she had acquired by fraud; a system of peace and benevolence was soon disgraced by proscriptions, war, massacres, and the institution of the holy office. And as the reformers were animated by the love of civil as well as of religious freedom, the Catholic princes connected their own interest with that of the clergy, and enforced by fire and the sword the terrors of spiritual censures. In the Netherlands alone, more than one hundred thousand of the subjects of Charles V. are said to have suffered by the hand of the executioner; and this extraordinary number is attested by Grotius, 185 a man of genius and learning, who preserved his moderation amidst the fury of contending sects, and who composed the annals of his own age and country, at a time when the invention of printing had facilitated the means of intelligence, and increased the danger of detection.” (16)

Mais tarde, Gibbon volta a citar Carlos V, um dos reis católicos da Espanha mais odiados pelos britânicos, pois foi rei durante o Século de Ouro espanhol, quando os espanhóis eram inimigos ferozes da Inglaterra e não a conquistaram por pouco, perdendo gás somente depois da derrota da Invencível Armada de 1588. Gibbon enfatiza que os seis dias de saques realizados pelos Godos em Roma causaram menos morte e menos destruição do que os nove meses de ocupação do monarca cristão Carlos V, no século 16.

“There exists in human nature a strong propensity to depreciate the advantages, and to magnify the evils, of the present times. Yet, when the first emotions had subsided, and a fair estimate was made of the real damage, the more learned and judicious contemporaries were forced to confess, that infant Rome had formerly received more essential injury from the Gauls, than she had now sustained from the Goths in her declining age. The experience of eleven centuries has enabled posterity to produce a much more singular parallel; and to affirm with confidence, that the ravages of the Barbarians, whom Alaric had led from the banks of the Danube, were less destructive than the hostilities exercised by the troops of Charles the Fifth, a Catholic prince, who styled himself Emperor of the Romans. The Goths evacuated the city at the end of six days, but Rome remained above nine months in the possession of the Imperialists; and every hour was stained by some atrocious act of cruelty, lust, and rapine. The authority of Alaric preserved some order and moderation among the ferocious multitude which acknowledged him for their leader and king; but the constable of Bourbon had gloriously fallen in the attack of the walls; and the death of the general removed every restraint of discipline from an army which consisted of three independent nations, the Italians, the Spaniards, and the Germans. In the beginning of the sixteenth century, the manners of Italy exhibited a remarkable scene of the depravity of mankind. They united the sanguinary crimes that prevail in an unsettled state of society, with the polished vices which spring from the abuse of art and luxury; and the loose adventurers, who had violated every prejudice of patriotism and superstition to assault the palace of the Roman pontiff, must deserve to be considered as the most profligate of the Italians. At the same aera, the Spaniards were the terror both of the Old and New World: but their high-spirited valor was disgraced by gloomy pride, rapacious avarice, and unrelenting cruelty. Indefatigable in the pursuit of fame and riches, they had improved, by repeated practice, the most exquisite and effectual methods of torturing their prisoners: many of the Castilians, who pillaged Rome, were familiars of the holy inquisition; and some volunteers, perhaps, were lately returned from the conquest of Mexico The Germans were less corrupt than the Italians, less cruel than the Spaniards; and the rustic, or even savage, aspect of those Tramontane warriors, often disguised a simple and merciful disposition. But they had imbibed, in the first fervor of the reformation, the spirit, as well as the principles of Luther. It was their favorite amusement to insult, or destroy, the consecrated objects of Catholic superstition; they indulged, without pity or remorse, a devout hatred against the clergy of every denomination and degree, who form so considerable a part of the inhabitants of modern Rome; and their fanatic zeal might aspire to subvert the throne of Anti-christ, to purify, with blood and fire, the abominations of the spiritual Babylon.” (31)

Por fim, em terceiro lugar, talvez o maior golpe, no final do capítulo 15, desmente a historicidade dos milagres, especialmente da escuridão que tomou o mundo na hora da morte de Jesus:

“Como poderemos, todavia, desculpar a negligente desatenção do mundo filosófico pagão aos indícios que a mão da Onipotência lhes apresentou, não à razão, mas aos sentidos? Durante a época de Cristo, dos seus apóstolos, e dos primeiros discípulos destes, inúmeros prodígios confirmaram a doutrina que eles pregavam. Os aleijados caminharam, os cegos viram, os enfermos foram curados, os mortos ressuscitados, os demônios expulsos e as leis da Natureza frequentemente suspensas em benefício da Igreja. Mas os sábios da Grécia e de Roma desviaram os olhos do impressionante espetáculo e, levando avante as ocupações rotineiras da vida e do estudo, pareceram incônscios de qualquer alteração na direção moral ou física do mundo. No reinado de Tibério, a terra toda, ou pelo menos uma ilustre província do império romano, viu-se envolvida em sobrenatural escuridão durante três horas. Mesmo esse acontecimento miraculoso, que deveria ter suscitado a admiração, a curiosidade e a devoção da humanidade, passou sem notícia numa época de ciência e de história. Ocorreu durante os dias de vida de Sêneca e de Plínio, o Velho, que devem ter experimentado os efeitos imediatos ou recebido as primeiras informações do prodígio. Cada um desses filósofos, numa obra diligente, registrou todos os grandes fenômenos da Natureza, terremotos, meteoros, cometas e eclipses que a sua incansável curiosidade logrou compilar. Tanto um quanto o outro deixaram de mencionar o maior dos fenômenos que fora dado a olhos mortais contemplar desde a criação do mundo. Um capítulo específico de Plínio trata de eclipses de natureza extraordinária e duração incomum; ele se contenta porém com descrever a singular falta de luz que se seguiu à morte de César, quando, durante a maior parte de um ano, o disco do Sol mostrou-se descorado e sem brilho. Essa estação de obscuridade, que certamente não se pode comparar às trevas sobrenaturais da Paixão, já havia sido celebrada pela maioria dos poetas e historiadores daquela época memorável.” (15)

A História, que antes era o escudo dos cristãos contra os pagãos (“o Cristianismo é verdade porque a História está do seu lado, porque ele realmente aconteceu, etc”), torna-se, nas mãos de Gibbon, a espada com a qual o Cristianismo será atacado. Os leitores anglicanos, cuja fé se baseava, em larga medida, na importância que davam à verdade historiográfica dos milagres, não podiam rejeitar os valores historiográficos que Gibbon promovia no capítulo 15 sem que isso também minasse a sua própria fé: sua fortaleza tinha se transformado em emboscada. Tinham apelado à arbitragem da História e lá estava Gibbon para demonstrar seu erro fatal.

No final das contas, a arma mais mortífera de Gibbon talvez seja justamente sua sobriedade, essa sua recusa a se exaltar, a polemizar, a radicalizar. Sua ironia avança inexorável, nunca considerada mera afetação mas também nunca considerada ameaça. Até ser tarde demais.

(David Womersley, The transformation of The decline and fall of the Roman Empire, especialmente capítulo 8)

Gibbon e Borges

Escreveu Jorge Luis Borges:

“Antes líamos Declínio e Queda para nos informar sobre Roma. Hoje, além disso, lemos para conhecer as opiniões de um fascinante cavalheiro inglês do século XVIII, mestre contador de histórias, sobre Roma.”

Li Gibbon, em grande parte, por recomendação de Borges. Mas só agora, nessa releitura de 2020, percebo como muitos dos traços que mais atribuo à Borges ele, na verdade, aprendeu com Gibbon. Uma citação do conto “El jardín de los senderos que se bifurcan”, que leremos na última aula, no livro Ficções:

“Omitir siempre una palabra, recurrir a metáforas ineptas y a perífrasis evidentes, es quizá el modo más enfático de indicarla.”

Outro ensinamento de Borges que só agora percebo que ele aprendeu com Gibbon, apesar de dizer que veio de Kipling:

Todo narrador deve ser levemente mais tonto do que sua narração; deve narrar as coisas mais sérias e consequentes mas com ar fleumático, de quem quase não entendeu a seriedade do que acabou de dizer. (Do prefácio de Elogio da Sombra.)

Borges está falando de sua própria ficção, mas poderia ser igualmente uma máxima sobre o estilo gibboniano.

Gibbon e os bárbaros

Até pouco tempo antes de Gibbon, os bárbaros eram universalmente vistos de maneira negativa. Em Paraíso Perdido, de Milton, escrito um século antes, os bárbaros são comparados aos demônios:

“A multitude like which the populous North

Poured never from her frozen loins to pass

Rhene or the Danaw, when her barbarous sons

Came like a deluge on the South, and spread

Beneath Gibraltar to the Libyan sands. (I, 351)”

Gibbon, no encerrar do século 18 e pouco antes da eclosão da Revolução Francesa, escreve de um lugar de extremo otimismo. Para ele, o progresso tecnológico e político da Europa a colocava a salvo de qualquer invasão bárbara futura: “para conquistar a Europa atual, os bárbaros teriam que, antes de mais nada, deixar de ser bárbaros.”:

“Cannon and fortifications now form an impregnable barrier against the Tartar horse; and Europe is secure from any future irruptions of Barbarians; since, before they can conquer, they must cease to be barbarous. Their gradual advances in the science of war would always be accompanied, as we may learn from the example of Russia, with a proportionable improvement in the arts of peace and civil policy; and they themselves must deserve a place among the polished nations whom they subdue.” (38)

Às vésperas da Revolução Francesa, quando um Rei seria guilhotinado e Napoleão sairia em décadas de conquistas pela Europa, Gibbon prevê que o temperamento suave e sólido do mundo moderno não permitiria que se repetisse nem o triunfo de Alexandre e nem a queda de Dario:

“For these opposite passions, a larger scope was allowed in the revolutions of antiquity, than in the smooth and solid temper of the modern world, which cannot easily repeat either the triumph of Alexander or the fall of Darius.” (48)

Pouco depois, em 1792, ele confessa, em carta, que apesar de ter um “tolerável historiador”, não conseguia ver, nem na antiguidade, nem na modernidade, nada que se parecesse com o presente. Sobre isso, gosto também de uma citação parecida de Tocqueville, no último capítulo de Democracia na América:

“Volto o olhar século por século até a mais profunda antiguidade e não há nada que se aproxime ao que acontece debaixo dos meus olhos. O passado já não lança mais sua luz sobre o presente. A mente humana vaga em meio às trevas.”

Mais do que tudo, Gibbon repetidamente se refere aos revolucionários franceses como “bárbaros”. O barbarismo, claramente, era uma categoria importante do seu pensamento.

Para Gibbon, porém, o barbarismo é sempre ambíguo, tem várias facetas, manifestações. Sua história é o triunfo dos bárbaros e da religião sobre o império mais civilizado de todos os tempos. Então, em um primeiro momento, parece que os bárbaros são os vilões da história. Mas eles também são os antepassados das civilizações anglo-saxãs e germânicas às quais Gibbon faz parte e tanto admira, eram “os rudes ancestrais das nações mais polidas do mundo”. Ele até tenta mas não consegue disfarçar suas simpatias pelos bárbaros.

O que é o bárbaro para Gibbon? Quando apresenta os godos e vândalos, sentimos que quase entendemos. Mas, então, no capítulo 8, apresenta os persas também como bárbaros, os persas que tinham um império, que eram literatos, civilizados, urbanos. O que fica claro então é que Gibbon está operando com a definição clássica de bárbaro, ou seja, bárbaro seria, por definição, quem está fora do império romano. Não é uma classificação qualitativa, elogiosa, pejorativa, nada. Não se refere ao seu grau de sofisticação ou civilização. É simplesmente política.

Da mesma maneira, Gibbon nunca está automaticamente nem do lado dos bárbaros nem dos romanos. Não existe nenhum lado mais certo, mais moral. Pelo contrário, rigorosamente, cada caso é um caso. O que importa é o que cada agente está fazendo, não quem ele é. Gibbon não acredita no nobre selvagem de Rosseau. Ele não acha que os bárbaros são melhores ou, menos ainda, que são melhores por serem bárbaros. Ele acha que cada pessoa escolhe, a cada momento, o que quer ser.

Por isso, as comparações entre bárbaros e romanos que terminam de forma pouco positiva para os romanos são muitas:

“Some of the prisoners were saved from the edge of the sword, to shed their blood in the amphitheatre; and the orator Symmachus complains, that twenty-nine of those desperate savages, by strangling themselves with their own hands, had disappointed the amusement of the public. Yet the polite and philosophic citizens of Rome were impressed with the deepest horror, when they were informed, that the Saxons consecrated to the gods the tithe of their human spoil; and that they ascertained by lot the objects of the barbarous sacrifice.” (25)

Os alemães eram pobres e analfabetos, mas, justamente por isso, livres. Não era o tipo de liberdade que um intelectual civilizado como Gibbon valorizaria, mas era sim uma liberdade. Os romanos eram uma demonstração de que propriedade privada e sofisticação intelectual podiam tanto compor uma civilização como ser ferramentas de opressão. Em Roma, os imperadores matavam seus súditos sem precisar dar maiores satisfações, mas não tinham coragem de aumentar impostos. Entre os bárbaros, era o exato oposto: os magistrados tinham autorização para tomar os bens de qualquer pessoa, mas não para condená-los a morte, prendê-los, nem mesmo dar um tapa. E conclui Gibbon, “um povo desses, tão zeloso de suas pessoas e descuidados de suas posses, só pode ser completamente desprovido de arte e de indústria, mas honrado e independente”:

The comparative view of the powers of the magistrates, in two remarkable instances, is alone sufficient to represent the whole system of German manners. The disposal of the landed property within their district was absolutely vested in their hands, and they distributed it every year according to a new division. At the same time they were not authorized to punish with death, to imprison, or even to strike a private citizen. A people thus jealous of their persons, and careless of their possessions, must have been totally destitute of industry and the arts, but animated with a high sense of honor and independence. (9)

Gibbon foi o primeiro a conceber algo que hoje se tornou lugar comum. Enquanto os historiadores antigos perdiam muito tempo tentando distinguir entre os povos bárbaros, entre vândalos e suevos, alanos e visigodos, etc, Gibbon sugere que, na verdade, essas identidades eram muito mais fluidas do que nos parecem, ou, pelo menos, do que são as identidades de povos estáveis e sedentários. Entre os bárbaros, bandos se juntavam e se separavam, muitas vezes ao calor do momento

Se o Ocidente era filho do encontro do império romano com os cristãos, quem eram os bárbaros? Os parteiros? Os bárbaros destruíram ou construíram? São os heróis ou os algozes? São eles que derrubam o império, mas também são eles que mantem vivas suas estruturas, suas leis, sua religião.

Os benefícios comparativos do barbarismo

O historiador Prisco, em visita ao acampamento dos hunos (liderados por Átila, o flagelo de Deus), encontra um grego. Civilizado e refinado, tornou-se escravo quando os hunos tomaram sua cidade. Depois, aos poucos, seus status foi subindo e, então, naquele momento, liberto, ele já desfrutava dos direitos e deveres de huno nativo, tendo inclusive mulher e filhos. E discorre sobre as vantagens de um barbarismo que funciona sobre uma pretensa civilização, cheia de regras, leis e impostos que já não servem mais pra nada.

“The historian Priscus, whose embassy is a source of curious instruction, was accosted in the camp of Attila by a stranger, who saluted him in the Greek language, but whose dress and figure displayed the appearance of a wealthy Scythian. In the siege of Viminiacum, he had lost, according to his own account, his fortune and liberty; he became the slave of Onegesius; but his faithful services, against the Romans and the Acatzires, had gradually raised him to the rank of the native Huns; to whom he was attached by the domestic pledges of a new wife and several children. The spoils of war had restored and improved his private property; he was admitted to the table of his former lord; and the apostate Greek blessed the hour of his captivity, since it had been the introduction to a happy and independent state; which he held by the honorable tenure of military service. This reflection naturally produced a dispute on the advantages and defects of the Roman government, which was severely arraigned by the apostate, and defended by Priscus in a prolix and feeble declamation. The freedman of Onegesius exposed, in true and lively colors, the vices of a declining empire, of which he had so long been the victim; the cruel absurdity of the Roman princes, unable to protect their subjects against the public enemy, unwilling to trust them with arms for their own defence; the intolerable weight of taxes, rendered still more oppressive by the intricate or arbitrary modes of collection; the obscurity of numerous and contradictory laws; the tedious and expensive forms of judicial proceedings; the partial administration of justice; and the universal corruption, which increased the influence of the rich, and aggravated the misfortunes of the poor. A sentiment of patriotic sympathy was at length revived in the breast of the fortunate exile; and he lamented, with a flood of tears, the guilt or weakness of those magistrates who had perverted the wisest and most salutary institutions.” (34)

Lá pelo ano 400 EC, os romanos mal tinham legiões que os defendessem. Dependiam, basicamente, de convencer bárbaros a lutar em seu nome em troca dos dúbios benefícios da cidadania romana. Os bárbaros não demoraram a perceber que não precisavam lutar com ninguém: bastava entrar e pegar.

Quando Alarico saqueou Roma pela primeira vez, a corte estava instalada na cidade próxima de Ravena. Não só os romanos não se defenderam, como ninguém, de nenhuma parte do império, nem mesmo o Imperador ali perto, enviou tropas para salvar a Cidade Eterna. Simplesmente não havia tropas. Não havia o que se fazer. Os godos que saqueavam Roma eram os mesmo que antes defendiam o Império de outros bárbaros. Depois de seis dias, Alarico se cansou e foi embora.

“The Roman government appeared every day less formidable to its enemies, more odious and oppressive to its subjects. The taxes were multiplied with the public distress; economy was neglected in proportion as it became necessary; and the injustice of the rich shifted the unequal burden from themselves to the people, whom they defrauded of the indulgences that might sometimes have alleviated their misery. The severe inquisition which confiscated their goods, and tortured their persons, compelled the subjects of Valentinian to prefer the more simple tyranny of the Barbarians, to fly to the woods and mountains, or to embrace the vile and abject condition of mercenary servants. They abjured and abhorred the name of Roman citizens, which had formerly excited the ambition of mankind. (35)”

Acompanhar o esfacelamento do império romano e a ascensão dos bárbaros é algo sufocante e desesperador. Não sabemos para quem torcer.

Por um lado, os romanos são corrompidos, fracos e letárgicos. Não tinham disposição nem para se defender. Roma já não conseguia dar garantias mínimas aos seus cidadãos, cada vez mais oprimidos com impostos crescentes e cada vez menos segurança. Não é à toa que muitos romanos acabaram preferindo juntar-se aos bárbaros.

“If all the Barbarian conquerors had been annihilated in the same hour, their total destruction would not have restored the empire of the West: and if Rome still survived, she survived the loss of freedom, of virtue, and of honor.”(35)

Já os bárbaros são fortes, ativos, exuberantes, em constante movimento. Fazem parte de uma onda irresistível que está saindo das aldeias da Europa para tomar o mundo. E sabem disso.

Por outro lado, como assistir impassível à queda da civilização? Apesar de todos os seus inúmeros defeitos, os romanos ainda assim representavam tudo o que a humanidade havia produzido de melhor. Arquitetura, leis, política. Os banhos, o senado, os aquedutos.

Enquanto o nome de Roma ainda era respeitado, os bárbaros buscavam as vantagens da cidadania romana. Em pouco tempo, nem isso restava. O Império Romano acabou quando os bárbaros passaram a desprezar os poltrões que antes protegiam.

Nenhum tema poderia ser mais dolorosamente contemporâneo.

“The spectator who casts a mournful view over the ruins of ancient Rome, is tempted to accuse the memory of the Goths and Vandals, for the mischief which they had neither leisure, nor power, nor perhaps inclination, to perpetrate. The tempest of war might strike some lofty turrets to the ground; but the destruction which undermined the foundations of those massy fabrics was prosecuted, slowly and silently, during a period of ten centuries.”(36)

Gibbon e Eça

O que não falta no mundo é malandro. Um trecho sobre as peregrinações de cristãos europeus para a Terra Santa no séc.III:

“The zeal, perhaps the avarice, of the clergy of Jerusalem, cherished and multiplied these beneficial visits. They fixed, by unquestionable tradition, the scene of each memorable event. They exhibited the instruments which had been used in the passion of Christ; the nails and the lance that had pierced his hands, his feet, and his side; the crown of thorns that was planted on his head; the pillar at which he was scourged; and, above all, they showed the cross on which he suffered, and which was dug out of the earth in the reign of those princes, who inserted the symbol of Christianity in the banners of the Roman legions. Such miracles as seemed necessary to account for its extraordinary preservation, and seasonable discovery, were gradually propagated without opposition. The custody of the true cross, which on Easter Sunday was solemnly exposed to the people, was intrusted to the bishop of Jerusalem; and he alone might gratify the curious devotion of the pilgrims, by the gift of small pieces, which they encased in gold or gems, and carried away in triumph to their respective countries. But as this gainful branch of commerce must soon have been annihilated, it was found convenient to suppose, that the marvelous wood possessed a secret power of vegetation; and that its substance, though continually diminished, still remained entire and unimpaired. It might perhaps have been expected, that the influence of the place and the belief of a perpetual miracle, should have produced some salutary effects on the morals, as well as on the faith, of the people. (23)

Não dá pra ler esse trecho sem pensar em A Relíquia, meu romance preferido do Eça (que me perdoem Os Maias e Primo Basílio) por ser o mais engraçado, cínico e iconoclasta. Teodorico é um playboy português que vive sustentado pela tia beata. Lá pelas tantas, a tia decide doar toda sua fortuna para a Igreja. Teodorico fica desesperado:

“Eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho de Maria, a aprazível fortuna do Comendador G. Godinho. Pois quê! Não bastavam ao Senhor os seus tesouros incontáveis? (…) E ainda voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e uns insípidos prédios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos, fugitivos haveres, tu, ó filho do carpinteiro, mostrando à Titi a chaga que por ela recebeste, uma tarde, numa cidade bárbara da Ásia, e eu adorando essa chaga, com tanto ruído e tanto fausto, que a Titi não possa saber onde está o mérito, se em ti que morreste por nos amar de mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!”

Para cair nas graças da tia, Teodorico vai em peregrinação à Terra Santa, trazer para ela esses mesmos suvenires que já no século III os espertos usavam para enganar os turistas. Pelo caminho, ele se envolve com mulheres a torto e a direito, e nunca perde seu ar cínico:

“Obedecendo à recomendação da Titi, despi-me, e banhei-me nas águas do Batista. Ao princípio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete de um altar-mor; e de braços cruzados, nu, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em São Joãozinho, sussurrei um padre-nosso. Depois ri, aproveitei aquela bucólica banheira entre árvores; Pote atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas águas sagradas, trauteando o fado da Adélia.”

Por algum motivo que Eça tem o toque de gênio de jamais tentar explicar, Teodorico volta no tempo e acaba testemunhando, ao vivo, a paixão de Jesus.

Afinal, por que caiu o Império Romano?

Podemos dizer que, para Gibbon, os hunos saem da Ásia e expulsam os Godos das estepes asiáticas, e fazem com que peçam asilo em Roma (376), que os acolhe em suas legiões. De certa maneira, os hunos ajudavam os romanos, ao lembrar aos bárbaros, como os godos, porque precisavam de Roma. Quando Átila morre, em 453, os bárbaros subitamente percebem que, 1, não precisam de Roma, e 2, já estão dentro do império e de armas na mão, só falta tomá-lo. Pouco mais de vinte anos depois, derrubam o último imperador.

Nesse sentido, colocar os bárbaros para dentro pode ser considerado um experimento que não deu certo. Como diz um historiador, o Império Romano não foi nem assassinado, nem morreu de morte natural: ele acidentalmente cometeu suicídio. (Guy Halsall, Barbarian Migrations and the Roman West, 376-568)

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a terceira aula, Romanos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 20 de agosto de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/declinio-e-queda-do-imperio-romano-de-edward-gibbon // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

2 respostas em “Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon”

Parabéns pelo seu texto. Gibbon foi um Voltaire fleumático. Acho que no seu modo de contar a história existe algo de messiânico, em uma clara “gibboniada ” nas escrituras . Em suma , apodrecemos porque somos bárbaros!

“Em Roma, os imperadores matavam seus súditos sem precisar dar maiores satisfações, mas não tinham coragem de aumentar impostos” ainda bem que o mundo contemporâneo é diferente.

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