Um mocinho vê uma mocinha em um jardim e se apaixona à primeira vista. Querendo se aproximar, contrata, por intermédio de seu criado, uma velha casamenteira.
Com uma sinopse que poderia ser a de uma novela sentimental como Cárcere do Amor, a Celestina rapidamente se transforma uma tragédia irredimível, terrível, inesquecível. Nada é o que parece, nenhum personagem é virtuoso, a subversão dos cânones sentimentais é total: os nobres apaixonados pensam apenas em seus próprios prazeres, os pobres se esfaqueiam para ver quem enganará os nobres e os burgueses só querem saber de amealhar mais riquezas.
(A Celestina será nossa leitura da quarta aula do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. O curso está saindo com desconto só até 6 de março. Compre aqui.)
A Celestina é das maiores obras-primas da literatura mundial e, na espanhola, perde somente para Dom Quixote (aulas 13 e 14) e para O Poema do Cid (aula 1). Pela primeira vez na Espanha, temos uma grande obra literária que também é iconoclasta, satírica, demolidora; precursora necessária tanto do Lazarilho de Tormes (aula 7) quanto do Dom Quixote; paródia cruel das novelas sentimentais como o Cárcere de Amor ou idealistas como Amadis de Gaula (aula 3); denúncia do mundo irreal de expectativas irreais de virtudes irreais dessa literatura do amor cortês cavalheiresco; obra-limite e verdadeiro testemunho literário da total crise de valores que marca a passagem da Idade Média para o Renascimento.
No começo do XVI, as cidades crescem, habitadas por uma classe servil pobre e sem laços, servindo uma nobreza irresponsável e corrupta, que se aliou à uma monarquia cada vez mais absolutista e autoritária. Enquanto isso, as classes urbanas, que tentaram se fortalecer ao longo do XV, terminam o século derrotadas e sem rumo, lideradas por um nova (e débil) burguesia tão focada em aquisições materiais que acredita — que realmente acredita! — que acumular riquezas lhe isolará, lhe protegerá dos horrores e vicissitudes da existência. Novelas urbanas como A Celestina e o Lazarilho de Tormes (aula 7), cruéis e satíricas, são sintomas e produtos desse processo histórico: elas colocam em cheque e expõem ao ridículo não só os antigos valores medievais, sentimentais, cavalheirescos, não só a religião cristã e o amor cortês, mas também os novos valores racionais, burgueses, pré-capitalistas que vão surgindo – não é a à toa que A Celestina se encerra com o lamento de Plebério, o burguês perfeito, que faz tudo certinho, e ainda assim perde tudo. Se o Renascimento simboliza a vitória da razão, essa mesma razão revela um universo sem sentido, onde os bons sofrem e os maus são recompensados, onde a própria razão pode ser utilizada para atacar e questionar a si mesma.
A Celestina é o testemunho ótimo, perfeito, não só de uma época em crise política, religiosa, moral, mas também literária: todos os modelos literários estabelecidos estavam em crise (o Cárcere de Amor e o Amadis de Gaula, na aula 3, representam o auge da novela sentimental e de cavalaria) mas o romance como o conhecemos ainda não havia surgido. É empolgante ler A Celestina pensando que foi escrita em uma breve janela literária onde todas as possibilidades ainda estavam em aberto, onde tudo ainda era possível. É um conto ou é uma novela? Uma peça ou uma obra de teatro? Está escrita em prosa, então, não é poesia? É composta somente de diálogos, então, é teatro? Mas é longa demais para ser encenada e, apesar de ser toda dialogada, contém uma deliciosa quantidade de apartes, que nos permitem um acesso profundo à interioridade das personagens que nos remete mais ao romance que ao teatro. Todos estão contra todos, em conflito feroz, mas não temos uma voz narrativa autoral que nos dê um porto seguro, que nos indique um caminho, que nos mostre por quem torcer: quem está certo? Quem está errado? Nós, pessoas leitoras, devemos estar do lado quem? Onde nos encaixamos? Não sabemos. O romance (a peça? o livro?) nos puxa o tapete a cada página e, quando finalmente nos abandona, é em uma posição de desamparo total, quase todas as personagens mortas e em um dos mais dolorosos gritos fúnebres da literatura. E a nós, pessoas leitoras, só nos resta, a revelia e dolorosamente, formar nossos próprios juízos, nossas próprias opiniões.
O Dom Quixote é considerado como o primeiro romance moderno, entre outras coisas, por criar a figura do primeiro leitor moderno, o primeiro leitor que precisa formar sua própria opinião sem o auxílio (na verdade, a revelia) da voz narrativa. Mas, se for esse o critério, talvez o primeiro romance seja A Celestina.
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Leitura
- A Celestina, de Fernando Rojas [228pp.] (pdf, site)
Como ler
As edições espanholas da Penguin, Castália e Cátedra são excelentes, com muitas notas explicativas; as de Núñez e Frauca também, com a vantagem de estarem de graça na internet. O texto pode ser difícil: a versão modernizada em espanhol de Puértolas e a tradução anglófona de Bush me ajudaram. Para quem estiver tendo dificuldades, a adaptação teatral brasileira de Ayala resume o texto brutalmente, mas é ágil e fluente. O áudiolivro funciona como excelente acompanhamento à leitura e o filme é bom, com ressalvas: posso compartilhar o arquivo.
Espanhol
- —> La Celestina [Penguin, ed. Santiago López-Ríos.]
- —> La Celestina [Castalia Prima, ed. María Teresa Otal.] (kindle)
- La Celestina [Cátedra, ed. Dorothy S. Severin.]
- La Celestina [Ed. Alberto del Río Núñez.] (pdf)
- La Celestina [Instituto Cervantes, ed. Julio Cejador y Frauca. Anotada.] (site)
Espanhol modernizado
- —> La celestina [Castalia Odres Nuevos, versão Soledad Puértolas. Integral.] (kindle)
- La Celestina [Instituto Cervantes, ver. Félix Álvarez Sáenz. Adaptação resumida.] (site)
Português
- A Celestina [225pp, L&PM, trad: Millôr Fernandes.]
- A Celestina. [Sulina, trad. Paulo Hecker Filho.]
- A Celestina [Adaptação teatral de Walmir Ayala, 1969.] (kindle)
Inglês
- —> Celestina [Penguin, trad. Peter Bush.] (pdf, kindle)
- The Celestina [Trad. Robert S. Rudder, 2013.] (kindle)
- La Celestina [Trad. James Mabbe, 1621. Bilíngue.] (site)
Áudio
- La Celestina [Audible, narr. Lidia Ariza, Luis Del Valle, 7h58min.]
Vídeo
- —> Filme La Celestina [Espanha, 1996, dir. Gerardo Vera] (AVI, 1,33MB)
Site
- No Instituto Cervantes (site)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quarta aula, Subversão, do meu curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.
Uma resposta em “Celestina, de Fernando Rojas, uma introdução”
[…] garcilaso, góngora, hernández (josé), lope de vega, nervo, padura, parra, pérez-reverte, rojas, sábato, saer, vargas llosa, villaverde. […]