Categoria: menos
consumo, desapego, ócio.
minhas contas mensais
como eu vivo da generosidade das minhas mecenas, acho importante que minhas contas sejam abertas e públicas.
no momento, minha única renda fixa são r$800 que ganho por textos que publico na internet.
todas as outras entradas possíveis são irregulares, incertas e imprevisíveis: vendas de livros ou de encontros, contribuições das mecenas, alguma turista querer ficar no meu apartamento. em qualquer dado mês, elas podem facilmente não render nem um único real.
já as despesas fixas mensais são aproximadamente: r$350 de condomínio, r$150 de gás/luz/internet/telefone fixo, r$400 de mercado, r$100 de transporte.
tenho um plano de internet popular de r$29, mas só para hóspedes: quando não tem hóspede, uma amiga fica com o modem, para eu poder trabalhar sem distrações. o plano de telefone fixo também é popular, só r$22. no gás, pago o mínimo, r$29.
algumas pessoas não acreditam que minha conta de luz seja tão barata, mas meus únicos aparelhos elétricos de uso contínuo são um frigobar e um laptop. além disso, tenho uma lâmpada fria no teto e outra em uma luminária de leitura, que nunca ficam acesas por mais de duas, três horas por noite. sobram apenas o chuveiro elétrico e o ar condicionado, dois aparelhos sazonais utilizados poucos meses por ano.
o que mais encarecia minhas compras de mercado eram bebidas, carnes e artigos industrializados, três coisas que não compro mais. sem isso, é impressionante o quanto rendem compras de grãos, frutas, legumes, ovos.
os gastos de transporte são baixos, pois faço tudo a pé, pelo bairro.
troco de computador nos anos pares, cerca de r$1.500, e de óculos nos ímpares, cerca de r$1.000, as únicas duas compras que programo e parcelo no cartão de crédito.
anualmente, pago cerca de r$100 de iptu.
não pago aluguel pois tenho a felicidade de ter recebido um apartamento, de forma completamente inesperada, em 2011. mas eu não estaria pagando aluguel de qualquer jeito. se esse apartamento não tivesse caído do céu, eu estaria morando, em definitivo e de favor, com a minha leitora e quase-irmã sônia, que cuidava do oliver durante minhas viagens, que me hospeda quando aparecem turistas para passar uns dias no meu apartamento, que agora hospeda até a minha companheira, que largou o aluguel e foi morar com ela.
(segundo a sônia, a primeira versão da prisão dinheiro, publicada em 2008, mudou sua vida e ela se sente em dívida comigo. eu sempre digo que ela não me deve nada, claro, mas aceito graciosamente o mecenato.)
minhas despesas fixas são essas. o que preciso pra viver é isso.
todo o resto ou é luxo (“olha que linda essa nova edição de moby dick“) ou é emergência — recentemente, minha geladeira pifou e precisei comprar uma nova (r$700, à vista).
ou seja, com cerca de mil reais por mês, eu vivo e vivo bem, com todas as minhas necessidades básicas preenchidas. usando laptop, consumindo cultura, comendo orgânicos. morando sozinho. na inflacionada zona sul do rio de janeiro.
se morasse com a família ou com uma companheira, em uma cidade ou bairro mais barato, poderia me bastar por muito menos.
em uma emergência, ainda dá pra apertar mais o cinto e abaixar esse número: comer mais frugalmente, andar mais a pé, usar menos eletricidade.
mas e o resto?, você poderia perguntar. viver não é apenas sobreviver. e os prazeres da vida?
sexo é de graça. passear em um parque, nadar no oceano, ver o pôr do sol no arpoador, tudo de graça. livros, eu pego na biblioteca, leio os que já tenho, baixo em pdf. exercícios, faço em casa ou na praia. internet, uso em qualquer café, quiosque, shopping center. filmes, baixo pela internet. saúde, o estado fornece de graça, inclusive meus remédios de pressão e diabetes. arte, sempre tem peça, show, exposições gratuitas, ou quase.
(na verdade, sem ser explorador demais, dá até para comer todas as refeições na casa das pessoas amigas. henry miller, em sua fase mais pobre de autor marginal, fazia uma escala de almoço com dezenas de pessoas conhecidas. com um mínimo de quinze, que nem é tanta gente assim, já dá pra marcar de aparecer na casa de cada uma em, digamos, terças-feiras alternadas e, assim, manter o papo sempre em dia e não explorar demais nenhuma única pessoa. em troca, henry se comportava como o artista marginal divertido e interessante que esperavam que fosse. devia ser um excelente negócio para todas as pessoas envolvidas: eu com certeza alimentaria henry miller duas vezes por mês. aliás, quem quiser me convidar para jantar regularmente, eu aceito.)
não estou dizendo que essa vida é desejável ou detestável, bonita ou feia, digna ou indigna, nenhum adjetivo positivo ou negativo.
estou dizendo que é possível.
para mim, é uma grande tranquilidade saber que me sustento com mil reais.
então, se vivo e me mantenho com mil reais, sem me faltar nada de necessário, isso quer dizer que viveria muito bem (luxuosamente até) com dois mil.
na prática, esse é o número que uso. considero que minha despesa mensal é de dois mil reais e meu atual objetivo financeiro é nunca gastar mais que isso por mês.
sendo bem sincero, me sinto até rico. afinal, é o dobro dos meus gastos fixos. mil reais de lambuja.
dá pra comprar uma geladeira novinha, o imprevisto dos imprevistos, e ainda ficar dentro do orçamento. dá pra comprar aquele livro que não resisti. dá pra pegar um táxi no dia em que estou carregando peso e está chovendo. dá pra assistir peças em teatros da prefeitura, onde o ingresso nunca passa de vinte reais. dá pra sair com as amigas pra jantar no mexicano da esquina.
em suma, dá pra ser flexível na frugalidade.
o que sobra eu economizo.
porque artista mambembe de vida incerta precisa economizar cada centavo. porque ter dinheiro economizado no banco é uma das formas mais concretas de liberdade.
* * *
abaixo, um trechinho da já citada prisão dinheiro, pré-respondendo uma objeção comum que esse texto suscita.
* * *
“ah, alex, viver assim é muito fácil! na minha vida, não daria!”
ao ler um texto como esse, muitas pessoas leitoras sentem uma ânsia irrefreável de ou apontar que a vida delas é diferente da minha (“para quem trabalha fora de casa não dá pra só gastar cem reais de transporte”, etc) ou interpelar a minha vida pessoal (“sendo dono de imóvel é fácil!”, “duvido que gaste só cem reais de luz, água, telefone!”, etc).
mas esse texto não é sobre a minha vida. a minha vida está apenas sendo utilizada como exemplo porque é a vida de quem escreveu o texto. naturalmente, os exemplos específicos da minha vida não vão se aplicar às vidas das pessoas leitoras.
hoje, em 2015, sou dono de imóvel. mas não era quando esse texto foi originalmente publicado em 2008, e muito menos nas duas vezes em que quebrei antes disso. em 2004, por exemplo, eu e minha esposa pagávamos r$600 por um quarto e sala em jacarepaguá, subúrbio do rio. em 2008, já sozinho, pagava trezentos e cinquenta dólares por um quarto em uma república de estudantes em nova orleans. o fato de eu ser dono ou não de um imóvel, hoje ou ontem, faz muito pouca diferença para a mensagem geral do texto.
o objetivo desse texto não é demonstrar que só dá para viver assim quem tem uma vida idêntica à minha ou que a minha vida é o máximo e todas devem me imitar. (que texto idiota seria esse!)
o objetivo desse texto é, através dos exemplos da minha vida, tão única e singular quanto a de qualquer pessoa, transmitir um novo jeito de pensar nossas despesas e nosso consumo, nossas necessidades e nossos prazeres, para que então cada um de nós possa decidir por conta própria o que quer fazer de nossas vidas tão únicas e tão singulares.
* * *
o texto acima faz parte da prisão dinheiro, onde esses temas são explorados mais à fundo.
eu sobrevivo graças à generosidade de cerca de 350 mecenas, que fazem contribuições em dinheiro para apoiar minha produção. se meus textos são importantes para você, por favor, considere a possibilidade de contribuir também.
para saber como, visite minha página de mecenato.
distópicas e luditas
de repente, na rua, alguém fala comigo.
abro a boca para responder…
e a pessoa passa por mim como se eu fosse um fantasma:
estava apenas falando em seu fone bluetooth, totalmente imersa em seus próprios problemas, tratando a rua pública como se fosse uma esteira rolante por onde desliza fantasmagoricamente, sem estar realmente presente, enquanto resolve suas questões virtuais com pessoas virtuais através de uma tecnologia virtual.
errado sou eu de achar que a rua é um espaço público para interação concreta entre pessoas de carne e osso.
* * *
infelizmente, não aprendo. meus instintos ainda são totalmente antiquados, completamente século XIX:
sempre levanto os olhos otimista, achando que estão falando comigo, achando que estou prestes a embarcar em mais uma interação humana…
sempre abaixo os olhos cabisbaixo, sem conseguir reprimir uma inexplicável pontada de desamor e solidão.
* * *
outro dia, em copacabana, aconteceu de novo.
levantei os olhos para o moço, mas ele não estava falando comigo.
entretanto, pasmem!, conferi uma orelha, verifiquei a outra: nenhum fone!
era um maluco à moda antiga, falando sozinho pelas esquinas do bairro.
ninguém entende, mas aquilo me trouxe tanta esperança.
“o indivíduo que trabalha não é livre”
pepe mujica, presidente do uruguai, é a essência do viver com menos:
[Ele] “não concorda com o título que lhe foi atribuído pela imprensa internacional de “presidente mais pobre do mundo”, em razão de seu estilo de vida simples. Segundo ele, esse título é incorreto porque “pobres são aqueles que precisam de muito para viver”. Segundo ele, sua vida austera tem como objetivo “manter-se livre”.
“Eu não sou pobre. Pobre são aqueles que precisam de muito para viver, esses são os verdadeiros pobres, eu tenho o suficiente”, afirmou.
“Sou austero, sóbrio, carrego poucas coisas comigo, porque para viver não preciso muito mais do que tenho. Luto pela liberdade e liberdade é ter tempo para fazer o que se gosta”, disse o presidente. Ele considera que o indivíduo não é livre quando trabalha, porque está submetido à lei da necessidade. “Deve-se trabalhar muito, mas não me venham com essa história de que a vida é só isso”. (fonte)
O senhorio do desapego
Para ajudar nas finanças, estou alugando meu apartamento pelo site Airbnb.
O ato de sair de casa de um dia pro outro, deixando tudo pra trás, levando só uma sacola, confiando seus objetos a desconhecidos, é um exercício em desapego.
Desapego por tudo aquilo que você deixa pra trás. Desapego por seu próprio lar. Pelos livros que você caçou nos sebos de Buenos Aires. Pelas caríssimas panelas de aço inox. Pelo elegante e ascético fouton japonês. Por objetos.
Hoje, tenho roupas & cuecas, canecas & cumbucas, livros & cadernos espalhados por quatro casas, três no Rio e uma em São Paulo. Nenhuma de membros da minha família, todas de pessoas que amo como se fossem. Acordo todo dia e nunca sei em qual casa dormirei à noite.
Para facilitar minhas idas e vindas, pensei em já deixar ao pé da porta uma bolsa com os pertences que levo comigo, mas é impossível: os pertences que levo comigo já são todas as coisas que uso diariamente e, portanto, não podem ficar pré-embalados.
Meu laptop, uma pequena necessaire. É só isso que levo comigo.
O Oliver, meu cachorro, tem mais bagagem que eu: bolsa de transporte, cama, cobertor, remédios, comida, ossinhos. Somos dois ciganos que já rodaram o mundo juntos: de trem & carro, navio & avião. Agora, ele está velhinho e fica em uma das casas onde me hospedo, sob os cuidados de uma amiga querida.
Pessoas estranhas naturalmente não podem ter acesso nem à minha pasta de documentos – passaportes, diplomas, etc – e nem ao meu HD pessoal – fotos comprometedoras, etc – mas também não fazia sentido ficar levando e trazendo esse peso a cada novo hóspede. Foram deixados em definitivo na casa de uma amiga. Quando precisar deles, o que hoje acontece com cada vez menos frequência, vou lá.
Alguns amigos ficam com receio, me aconselham ter cuidado, acham que é um risco.
Mas estou arriscando o quê?
Arrisco objetos. Arrisco um futon manchado, uma panela quebrada, um livro furtado.
Mas com o dinheiro dos aluguéis, ganho… tempo.
Um casal de australianos ficou no meu apartamento por seis dias durante o carnaval e foi menos um livro chato a traduzir, menos um frila de revisão a aceitar, menos um cliente exigente a aturar.
É um mês livre que ganho para trabalhar na minha própria arte, pra escrever meu romance, pra viver, pra transar.
Arriscar objetos para ganhar tempo livre: posso imaginar poucas trocas mais sensatas.
* * *
Leia também meu texto Menos. Para alugar meu apartamento, clique aqui e confira o anúncio.
não espero nada. não temo nada. sou livre.
algumas pessoas morrem de orgulho de ter trocado o discurso do
“faça isso e aquilo para ficar mais rico e ter mais coisas e ser mais bonito e estar mais na moda, etc etc!”
por o novo discurso auto-ajuda-zen-pós-moderno do
“faça isso e aquilo para ser mais feliz e mais minimalista e ser mais autêntico, etc etc!”
mas o foco é sempre uma competição por mais! maIS!! MAIS!!!
a ganância aquisitiva continua a mesma, só muda o objeto.
as cortinas azuis
As cortinas azuis do meu quarto foram instaladas pelo meu colega de casa Roberto em meados de 2007. Uma moça chamada Athena, de São Francisco, estava sublocando meu quarto durante aquele verão. Os verões em Nova Orleans são quentes e bate muito sol no meu quarto de manhã. Athena estava vulnerável, recém-saída de um mau relacionamento, e se apaixonou forte por Roberto. Ele não se apaixonou de volta, mas gostava dela e tentou não feri-la – óbvio que não deu certo. Foram amantes de verão. Transaram na minha cama e na dele. Em algum ponto, talvez em um gesto másculo de carinho protetor, talvez em um gesto egoísta para salvaguardar seu sono, Roberto instalou as cortinas azuis. (Nunca tive cortinas, pois gosto de dormir quando escurece e acordar quando fica claro. Não há despertador melhor do que o sol no rosto.)
Quando voltei para casa em agosto, depois de meses maravilhosos nos braços de Liloló, com anel no dedo e mais apaixonado do que nunca, Roberto já tinha se mudado e Athena (que nunca conheci) voltara para São Francisco. Roberto continuou meu amigo, foi pro Texas, morreu em julho de 2009 e faz muita falta na minha vida. Enquanto isso, nas minhas manhãs mais preguiçosas, as cortinas azuis continuaram sempre me protegendo do sol de Nova Orleans. Nunca conversei sobre Roberto sobre elas: agora me ocorreu que podem também ter sido um presente pra mim.
um grill
O George Foreman Grill na minha cozinha foi presente da Liloló. Pra eu comer mais proteínas e grelhados, e menos carboidratos. Um gesto de amor e cuidado para com seu homem. Não deu muito certo. Prefiro fazer os grelhados na frigideira. O grill é muito difícil de limpar: uso apenas para tostar bagels – ou seja, o inverso do objetivo. Também são presentes da Liloló um acendedor de fogão decorado com maçãs que parou de funcionar faz tempo, mas não joguei fora, e um avental verde e amarelo da Copa de 2006, cuja corda se rompeu, mas não joguei fora.
Liloló e eu nos separamos em janeiro de 2010, sem brigas, mas ela não fala mais comigo: é daquelas pessoas que acham que é melhor assim. Dói um pouco sempre. Dói muito de vez em quando. Os objetos que ela me deu ainda estão aqui, ainda úteis: a cada nova bagel tostada, é como se o amor dela ainda existisse e ainda me desse esse pequeno presente.
a vida sem rastros
Morei na minha casa atual por seis anos, entre 2006 e 2011. Foi sempre uma coisa provisória, só enquanto eu fazia meus estudos, roommates encontrados na Craigslist, sublocando o quarto para passar férias no Brasil. Na minha percepção emocional, sinto como se tivesse sido pouquíssimo tempo. (Em compensação, entre 2002 e 2004, os 22 meses que passei no apartamento onde vivi casado, onde fui delirantemente feliz, onde achei que seria para sempre, ainda me parecem tão vivos que quase posso fechar os olhos e voltar para lá.)
No dia primeiro de julho de 2011, me mudo de Nova Orleans para o Rio de Janeiro: saio dessa casa para não mais voltar, e deixo esses e muitos outros objetos para trás. A caneca da Tabasco que eu não queria que o Nate usasse. O pendurador de bananas enviado, decorado e desenhado pela minha mãe – pois nessa terra não se tem como amadurecer bananas direito. O wok e o liquidificador da Camila.
(Camila chegou em 2008, foi minha melhor amiga por dois anos e foi embora em 2010. Todo sábado, cozinhávamos juntos e víamos Seinfeld. Em 2009, meu presente de aniversário foi um wok. Essa cozinha ainda vibra com o eco das nossas vozes – mas é só porque falamos muito alto. Antes de sair do país, ela me legou seu liquidificador, que mais tarde meu roommate chef, o Nate, rachou tentando bater uma sopa quente. Continuamos usando o liquidificador rachado: em casa de pobre, se usa tudo até o limite. Camila hoje mora em São Paulo e, mês que vem, julho de 2011, eu vou ter a felicidade de estar no seu casamento.)
Nate também vai embora, depois de dois anos em Nova Orleans, tentar a sorte nas cozinhas de Nova Iorque.
A terceira colega de casa, Rebecca, que veio em janeiro de 2010, foi a última que escolhi pessoalmente: quando for embora, talvez daqui a alguns meses, talvez daqui a alguns anos, “Alexandre” vai passar a ser apenas um nome exótico em correspondências que não deveriam mais estar chegando.
Em poucos dias, vão haver duas novas pessoas nessa casa. Que vão comer e cozinhar, dormir e decorar, brincar e brigar. As cortinas azuis – penduradas com amizade, tesão ou egoísmo – vão protegê-las igualmente do sol. O grill da Liloló e o wok da Camila – dados ao amigo com quem se iria cozinhar ou ao homem que se queria cuidar – continuarão sendo usados, pra preparar pratos que eu talvez nunca tenha ouvido falar, por pessoas que nem conheço, conversando e rindo em línguas que eu talvez nem entenda.
Essas pessoas não vão saber a história desses objetos. Não vão saber qual foi dado com amor, com amizade, com tesão. Não vão saber que o Roberto um dia viveu, que a Liloló um dia me amou.
Meu lado historiador não gosta disso. Fico com raivinha dessas pessoas futuras e hipotéticas por ignorarem fatos tão importantes. Penso indignado que é assim que se perde a memória da humanidade. Tenho ganas de colar um post-it dizendo “Cortina pendurada por Roberto Rivera (1976-2009) no verão de 2007”.
Como se a vida só pudesse valer a pena se deixasse rastros, se produzisse memória.
Para essas novas pessoas, os objetos serão apenas objetos. Objetos velhos e já usados de uma casa que estão alugando por pouco tempo, dividindo com estranhos, enquanto terminam um curso, fazem um estágio, escrevem uma tese. Objetos pelos quais não se apegarão. Objetos que não terão problema algum em jogar fora quando pararem de cumprir seus objetivos.
Como tem que ser.
Pois que façam o que não tive coragem. Que usem sem apego. Que joguem fora. Que vivam o momento. E que sejam felizes. Menos quando não forem. E aí, então, depois de um tempo, que sejam felizes de novo.
Como tem que ser.
Em minha nova casa, não quero ter móveis, nem mesas, nem camas, nem objetos pessoais, nada. Minha vontade é deixar tudo para trás.
“Mas por quê?”, perguntou um amigo.
“Bem, acho que o acúmulo de bens e objetos nos impede de ver o essencial e de se focar no que é realmente importante.”
E ele me fez uma pergunta óbvia e provocadora:
“Ah, é? Mas então o que é realmente importante?”
E aquilo realmente me fez parar, sabe?, porque eu de fato não tinha uma resposta. Gosto desses momentos em que sou interpelado sem uma resposta pronta. É a hora de parar e pensar, reconsiderar e repriorizar. E respondi:
“Olha, também não sei o que é realmente importante, mas uma sala com sofá, carpete e TV tela plana com certeza não é.”
Dizem que minha casa é vazia, espartana, pouco aconchegante (“como é que você vai trazer mulherzinha pra uma casa que não tem nem cama nem água quente?!”), mas vejo aconchego no vazio.
O mundo lá fora já é tão atulhado, voluminoso, lotado: quero abrir minha porta de casa e ver uma sala ampla, deserta, silenciosa, com espaço para os meus pensamentos.
fetichizar a vida
Todos guardamos objetos relacionados a momentos felizes do nosso passado.
Mas o objeto é só um objeto.
O momento feliz existe (ou não) em nossas memórias. Se o momento feliz está vivo dentro de nós, então o objeto é redundante. Se não está, então o objeto é inútil.
De um modo ou de outro, não há motivo para fetichizar nossas próprias vidas, projetando-a em objetos inanimados.
O momento feliz não está no objeto. Se jogarmos fora o objeto, o momento feliz não vai junto.
Podem experimentar.