As histórias de um brasileiro e seu cachorro em meio ao pior furacão da história.
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Eu morava em Nova Orleans quando o furacão Katrina quase destruiu a cidade, e testemunhei os anos seguintes de caos e reconstrução. Agora, pela primeira vez, o meu depoimento completo.
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Oliver, um sobrevivente
Um dia, em 2003, encontrei um cachorro na favela de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, correndo por entre as rodas dos carros. Não consegui achar seus donos e fui ficando com ele. Oliver.
Na virada do ano, assustado com os fogos de artifício, fugiu de casa e se perdeu na mesma favela. Comecei 2004 debaixo de chuva, distribuindo mais de 500 panfletos por ruas estreitas e enlameadas. Um padeiro olhou a foto e disse que Oliver tinha passado a tarde toda na sua padaria, fazendo cambalhotas em troca de comida: “Só botei pra fora quando tive que lavar o chão.” Pelo menos, ele era um sedutor e sabia se virar. Meu único medo era ser atropelado.
Depois de cinco dias, perdi as esperanças. Então, o safado reapareceu.
Pouco depois, minha esposa saiu de casa e recebi um convite para estudar em Nova Orleans, tudo na mesma semana. Fui. Disseram que eu era louco de levar meu cachorro, mas eu respondia: “Esse aí é um sobrevivente!”
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Sábado, 27 de agosto de 2005: a possibilidade da tragédia
Em agosto de 2005, Oliver e eu nos mudamos para Nova Orleans, onde eu começaria um mestrado. Duas semanas depois, em um sábado de manhã, 27 de agosto de 2005, veio a notícia: poderíamos ser atingidos por um furacão.
Algumas pessoas estavam preocupadas, outras tranquilas. Evacuações forçadas eram parte da vida em Nova Orleans: todo mundo ficava engarrafado entrando e saindo da cidade, nada acontecia, os moradores ganhavam um feriadão.
Era o último fim de semana antes do início do ano letivo. Na minha universidade, Tulane, enquanto os novos alunos desempacotavam suas mudanças, o reitor garantia aos pais que estávamos preparados para tudo. Pelo sim pelo não, os calouros seriam evacuados para abrigos próximos, onde passariam os próximos dias realizando atividades e brincadeira, tudo por conta de Tulane. Seria como um passeio escolar!
Eu, recém-chegado, sem computador, sem celular, sem rede de amigos, sem estrutura de apoio, eu não sabia o que fazer. Acabei seguindo a orientação da universidade.
Mas e meu cachorro Oliver? No sábado, as pessoas ainda estavam alegres e tranquilas, as chances pareciam remotas, “nunca acontece nada”, era só precaução, “voltamos em três dias, no máximo!” Confiando na calma dos locais, deixei Oliver preso no meu quarto, com bastante jornal, água, comida.
Nos ônibus até os abrigos, só havia calouros e alunos estrangeiros, muitos chegados na universidade literalmente aquele dia, pessoas sem nenhuma rede de apoio local. Como eu.
Não trouxe meus papéis importantes, meu HD, nada. Viajei com poucas roupas e minha cópia de Ulisses, de James Joyce. Pensei: se não conseguir ler Ulisses agora, não leio nunca mais.
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Domingo, 28 de agosto de 2005: a tragédia anunciada
Dormi no chão duro do ginásio poliesportivo da Mississippi State University, em Jackson.
Quando acordei no domingo, 28 de agosto de 2005, o mundo já era outro. O furacão continuava avançando rumo à Nova Orleans e, agora, o impacto já era dado como certo. A discussão sobre possíveis cenários se dava em termos apocalípticos: os jornais previam centenas de milhares de mortos e a destruição completa da cidade.
Uma santa pessoa me emprestou seu laptop para checar email e tinha uma mensagem da minha amiga Renata, que morava em Nova Iorque: “não sei por onde você anda, mas pega aqui o meu número de cartão de crédito, compra uma passagem e vem pra cá.”
Ficar no ginásio lendo Ulisses e jogando Imagem e Ação com os calouros seria até legal por dois dias, mas, agora, com o impacto provável, perigávamos de ter que ficar lá por semanas. Melhor sair logo.
Minha zelosa universidade não queria me deixar sair do abrigo (“somos responsáveis por você!”) mas, depois de muita insistência, alguma lábia e pelo menos um uso da palavra “sequestro”, consegui ser liberado ainda no domingo de manhã e peguei um táxi para o aeroporto de Jackson, Mississippi.
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Jackson, Mississippi: um aeroporto em polvorosa
Apesar de ficar a 300km do mar, a cidade também estava na rota do Katrina: o furacão chegaria aqui enfraquecido, mas forte o suficiente para causar muito estrago. Estimava-se que ele bateria em terra no início da madrugada do dia seguinte, segunda, 29 de agosto de 2005, passaria por Nova Orleans pela manhã e alcançaria Jackson à tarde.
Então, em meio ao caos reinante naquele pequeno aeroporto sulista, eu fui de guichê em guichê fazendo a mesma insólita pergunta: “tem passagem no próximo voo para qualquer lugar, por favor?”
Só encontrei uma, nem me lembro para onde, saindo às sete da manhã do dia seguinte, segunda, de onde eu voaria para Nova Iorque. E o atendente ainda avisou: como o furacão era precedido de inundações e ventos fortes, eles não podiam garantir que o aeroporto estaria aberto. Mas era pegar ou largar. Se o aeroporto fechasse, eu voltava pro abrigo.
Sentei em uma cadeira em frente ao guichê, coloquei minha bolsa no colo, peguei meu exemplar do Ulisses e me preparei para uma espera de vinte horas. À minha volta, o aeroporto pegava fogo.
(Essa é uma das principais técnicas para se conseguir qualquer coisa de qualquer pessoa: peça com gentileza e, depois, sente e espere, em silêncio, delicadamente, em frente a ela.)
Poucas horas depois, o moço me chamou. Era quase certo de o aeroporto já estar fechado àquela hora, mas havia lugar em um voo para Detroit naquele minuto, não dava tempo nem de despachar bagagem, em uma cadeira dobrável de tripulação, mas pelo menos eu sairia dali.
Dei meu canivete suíço de presente pra ele e embarquei. Tomara que tenha ficado bem. O Katrina só deixou tecnicamente de ser furacão às sete da noite de segunda, depois de destruir e inundar Jackson.
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Detroit: a pior noite da minha vida
A noite de domingo, véspera do Katrina, passada no aeroporto de Detroit, foi a pior da minha vida. Nunca uma cobertura jornalística foi tão opressiva, tão apocalíptica. A manchete do jornal local dizia apenas: “Ground zero“.
Para mim, todos os telões do aeroporto, todas as manchetes de jornais, repetiam a mesma mensagem: “você abandonou seu cachorro”, “seu cachorro vai morrer”, “a culpa é sua”.
Meu pobre Oliver, o único ser vivo pelo qual eu era responsável, que encontrei em uma favela do Rio, prestes a ser atropelado, e trouxe pra morrer em um furacão do Golfo do México.
Meu voo para Nova Iorque era só na manhã do dia seguinte, segunda, e não havia nenhum lugar naquele aeroporto fora do alcance dos telões bradando “Finis Nova Orleans!”
Então, sem outro jeito, embaixo de uma tela de três por dois metros relembrando imagens da cidade condenada, eu fiz minha bolsa de travesseiro, deitei em posição fetal e tentei parar de chorar.
Quando deu uma da manhã, no meio de mais um Kaputt Nova Orleans!, o aeroporto de Detroit misericordiosamente desligou todas as telas e eu pude dormir.
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Segunda, 29 de agosto de 2005: o Katrina atinge Nova Orleans
O furacão Katrina atingiu Nova Orleans na segunda, 29 de agosto de 2005, exatos dez anos atrás hoje.
Quando cheguei na casa da minha amiga, em Nova Iorque, a destruição estava sendo transmitida ao vivo, o fim de uma grande cidade norte-americana, diversão para toda a família.
Não consegui assistir. Passei os próximos dias na internet, furiosamente atualizando meu blog, pedindo socorro para meu cachorro, elaborando planos mirabolantes, descartando planos mirabolantes, fazendo novos planos mirabolantes.
Um dos meus planos: voar para alguma cidade próxima, alugar um 4X4, entrar em Nova Orleans, salvar o Oliver, sair. (Todo os aeroportos próximos estavam fechados, não havia carros para alugar, a cidade estava fechada pelo exército.)
Outro plano: voar até Miami e convencer uma amiga, que coordenava a sucursal de uma TV brasileira, a mandar uma equipe comigo resgatar meu cachorro. “Juro que choro ao vivo na edição do meio dia e que choro ao vivo de novo, lembrando tudo, na edição da noite!” (A matriz, burra, não liberou a verba.)
Várias organizações de resgate de animais de estimação, os chamados pet rescuers, estavam de prontidão nos arredores da cidade, só esperando permissão para entrar e resgatar os bichinhos presos em casa. Cadastrei meu endereço em todas elas, autorizando-as a arrombar minha porta e resgatar o Oliver.
Poucos dias depois do furacão, minha universidade, a maior empregadora de Nova Orleans, anunciou que não haveria aulas no segundo semestre de 2005, efetivamente decretando que o processo de normalização da vida local só começaria em janeiro de 2006. Os alunos, como eu, seriam acolhidos por outras instituições de ensino de todo o país.
Na época, minha irmã morava em Berkeley, na Califórnia, onde seu marido estava cursando doutorado, e, por isso, fui pra lá, onde comecei a frequentar aulas e, mais importante, continuei atirando para todos os lados tentando resgatar o cachorrinho inocente que eu havia irresponsavelmente abandonado.
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Segunda, 5 de setembro de 2005: o resgate do Oliver
Enquanto isso, minha santa amiga de Nova Iorque, Renata, contou minha história para a filha de uma amiga de sua sogra, uma colombiana chamada Marcela, que mencionou conhecer um fotógrafo sino-americano, Mark Gong, que estava indo pra Nova Orleans tirar fotos da tragédia e talvez pudesse ajudar.
Era uma conexão pessoal tão tênue que não me permiti criar esperanças, mas, oito dias depois do Katrina, em 5 de setembro de 2005, recebi a ligação: o fotógrafo e um amigo indiano (que aparece nas fotos do resgate) já tinham resgatado o Oliver da minha casa e estavam nesse momento dirigindo de Nova Orleans para Washington com ele.
Segundo o Mark, minha rua tinha apenas um pouco de água (para a Nova Orleans pós-Katrina, um metro de água significava que a rua não estava alagada) e minha casa estava inteira, nem uma janela quebrada. Oliver tinha mijado e cagado o meu quarto todo, mas parecia bem-disposto e ainda tinha bastante água e comida. (Meu malandro cachorro favelado soube racionar seus mantimentos.)
Como a casa do Mark não aceitava cachorros, eu precisaria arrumar algum lugar para o Oliver ficar em Washington mas minha santa amiga Renata, sempre ela, já tinha resolvido esse problema: seus sogros, que também moravam na cidade e eram colombianos, tinham concordado em ficar com o Oliver até eu poder buscá-lo.
Enquanto isso, a Continental Airlines tinha voado mais de catorze missões de resgate de animais durante o Katrina (a empresa emprestou os aviões e pagou os custos, os funcionários voluntariaram seu tempo) e, agora, estava juntando gratuitamente refugiados que tinham se desencontrado de seus animaizinhos. (Ela não fez propaganda disso, eu só soube porque fui beneficiado.)
Bastou eu enviar um fax com meu comprovante de residência em Nova Orleans (que tinha chegado na manhã da evacuação!), dizer que meu cãozinho estava em Washington DC, na costa leste, e que eu estava em Berkeley, na costa oeste. Não fizeram perguntas, não houve burocracia, não precisei pagar nada. Marcaram a passagem, o sogro da Renata levou o Oliver ao aeroporto e eu fui buscá-lo na Califórnia. (Fui cliente fiel da Continental até a empresa acabar, absorvida pela United.)
Como dá pra ver nessa foto da minha porta, tirada em outubro, os pet rescuers só passaram na minha casa no dia 30 de setembro (o “9-30” em vermelho, na parte de cima), 25 dias depois de ele ter sido resgatado pelo Mark. Será que ele ainda estaria vivo?
O resgate do Oliver foi um pequeno milagre.
Vários outros animais de estimação não tiveram tanta sorte.
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Katrina: holocausto de cães e gatos
Nova Orleans permaneceu fechada por cinco semanas, completamente inabitável e intransitável. Grande parte da cidade fica abaixo do nível do mar e, por isso, a água não tinha para onde correr: teve que ser bombeada manualmente. Não havia saneamento nem eletricidade, e cadáveres ainda boiavam no esgoto contaminado metais pesados.
Enquanto isso, nos arredores da cidade, milhares de moradores imploravam aos militares pela oportunidade de dar só um rápido pulo em casa, buscar um documento, salvar um cachorro, mas em vão.
O fotógrafo Mark só conseguiu entrar em Nova Orleans porque era ex-fuzileiro naval e ainda tinha uma carteirinha expirada que ninguém olhou muito de perto. Graças à sua malandragem, o Oliver ficou somente dez dias sozinho em casa.
Já uma de minhas vizinhas tinha seis chiuauas. Quando Nova Orleans foi finalmente reaberta e ela voltou para casa, apenas um sobrevivera. Traumatizado, ele passou seis meses sem conseguir sair debaixo da mesa onde ela o encontrou.
No total, estima-se que mais de 600 mil gatos e cachorros morreram durante o Katrina. Presos em casa, de fome, de sede, de calor.
(As temperaturas em Nova Orleans chegam a quarenta graus no verão.)
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Pet rescuers: o problema do excesso de zelo
Os pet rescuers trabalharam duro para salvar o maior número possível, mas não havia espaço físico suficiente para abrigar tantos bichinhos. Por isso, eles eram imediatamente postos para adoção, quase sempre no mesmo dia, abrindo assim espaço nos canis e gatis para a próxima leva de animais resgatados.
Então, se o Oliver tivesse sido salvo pelos pet rescuers e dado a outra família, talvez eu não tivesse mais conseguido encontrá-lo ou recuperá-lo. Muitos dos novos donos se recusaram a devolver os bichinhos aos donos originais, alegando que não deveriam tê-los abandonados.
Alguns casos só foram resolvidos depois de longas batalhas judiciais, como mostrou o documentário Mine (2009), de Geralyn Pezanoski.
(Na estreia, aberta para cachorros, o Oliver pôde se encontrar com a maioria dos cãezinhos retratados no filme.)
Os pet rescuers resgataram 6 mil animais, dos quais 400 foram reunidos com seus donos.
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Logo após o Katrina, enquanto eu ainda estava na Califórnia pensando de voltava ou não, eu ficava lendo as notícias obsessivamente.
Falava-se em solo contaminado por metais pesados, em altas possibilidades de doenças respiratórias em cães e gatos.
Mas havia um outro perigo mais insólito.
Segundo membros de um fórum de animais de estimação, o maior perigo eram os super-zelosos pet rescuers.
Como assim?, perguntei. Os santos pet rescuers?
Sim, os santos pet rescuers.
O cidadão saía pra trabalhar, deixava seu cachorro em casa e, quando voltava, a sociedade protetora dos animais já tinha arrombado sua porta e “resgatado” o bicho! E haja trabalho pra recuperá-lo depois.
A vida é uma piada.
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Soldados que arrancam cãezinhos das mãos de crianças
A morte de tantos animais de estimação teve uma consequência política positiva: o governo finalmente acordou para a importância desses seres em nossas vidas.
Durante o Katrina, os abrigos de emergência não aceitavam animais, uma política que fez com que muitas pessoas, por não quererem abandonar seus bichinhos, enfrentassem o Katrina em casa. Algumas pagaram por essa decisão com suas vidas.
Depois do Katrina, como dito, Nova Orleans ficou inabitável.
Então, os militares passaram de casa em casa, buscando por sobreviventes e retirando as pessoas da cidade. Com um detalhe cruel. Os barcos e helicópteros de resgate militares eram proibidos de transportar animais.
Imaginem o desespero de uma pessoa que arriscou a vida para enfrentar o furacão do século ao lado do seu gato e, poucos dias depois, no alívio de ter sobrevivido, aparece um helicóptero militar e fuzileiros navais arrastam ela de casa à força, deixando o pobre gato lá abandonado.
Infelizmente, essa cena se repetiu em TODOS os casos, pois os militares tinham ordens expressas de não deixar ninguém na cidade e de não transportar nenhum animal.
As histórias de filhotinhos sendo arrancados das mãos de crianças por soldados armados tiveram tanto impacto na imprensa que a lei foi mudada.
Na foto acima, o cachorrinho Snowball, depois de ser arrancado das mãos de seu dono, um menino de nove anos que ficou chorando e gritando “Snowball, Snowball”. O cãozinho foi deixado na estrada e nunca mais foi encontrado.
Hoje, as regras mudaram: já existem abrigos de emergência especificamente para pessoas com animais e os veículos de resgate também são obrigados a aceitá-los.
Gostaria de dizer “tomara que não seja necessário” mas sabemos que acontecerão novas tragédias.
Que pelo menos não sejam novas hecatombes de bichinhos.
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Oliver pós-Katrina
Os cães foram criados pela humanidade, à nossa imagem e semelhança, tão variados entre si como são variadas as pessoas humanas e suas sociedades. E são talvez nossa melhor, mais nobre criação.
Se algum dia a humanidade desaparecer, que seja julgada não por suas bombas atômicas ou obras de arte, mas por essa criação magnífica e transcendental, coletiva e cumulativa, generosa mas interessada, verdadeiramente atemporal e transcultural: o cachorro.
Se sumíssemos todas as pessoas, os cachorros seriam a melhor coisa que deixaríamos pra trás.
Só que não aceitariam ser deixados para trás: viram junto conosco até o fim, se preciso.
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Oliver e eu não nos separamos mais.
Depois de passar por São Francisco, Miami, Nova Iorque, São Paulo, Paraty, assentamos de volta no Rio, onde ele fazia até standup paddle e foi estrela do episódio “Heróis” do programa Pet.doc, do GNT.
Morreu em dezembro de 2014, de velhice. Faz falta todo dia.
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O Katrina não foi um desastre natural
Depois da passagem do furacão Katrina, Nova Orleans estava debaixo d’água.
Durante os séculos XVIII e XIX, a cidade só ocupara áreas altas, pouco atingidas por inundações. Por isso, o centro histórico e os bairros mais antigos sofreram danos, mas não foram destruídos.
Os diques tinham sido construídos no começo do século XIX justamente para possibilitar a ocupação imobiliária das áreas mais baixas, até então vazias e inabitáveis.
Esses bairros mais recentes, ao mesmo tempo os mais pobres e os mais ricos, é que foram lavados do mapa quando os diques romperam.
Para fins de comparação, se os bairros cariocas construídos no século XX fossem destruídos, perderíamos tudo entre Copacabana e o Recreio dos Bandeirantes. Já São Paulo tinha apenas trezentos mil habitantes em 1897: se a cidade perdesse todos os bairros ocupados no século XX, não sobraria quase nada, só Luz, República, Sé.
O bairro universitário onde eu morava, Uptown, construído no século XIX em torno de Tulane, teve só um metro de água — o que, acreditem ou não, no contexto de uma cidade onde quase todas as casas são elevadas, é um bairro que não alaga. Nos lugares que sofreram maior destruição, como o Lower Ninth Ward, a profundidade chegou a três metros.
Os bairros mais ricos e os mais pobres foram destruídos, com uma enorme diferença.
As pessoas brancas e ricas não morreram no Katrina: elas simplesmente colocaram a família nos seus SUVs, encheram os tanques e aproveitaram para viajar e fazer turismo. (No furacão seguinte, Gustav, em 2008, eu aluguei um carro e passei a semana na casa na casa da Renata, em Nova Iorque, e ela pôde finalmente conhecer o Oliver.)
Entretanto, grande parte das pessoas de Nova Orleans não eram nem brancas nem ricas e viviam de mês a mês. Não tinham nem carro e nem dinheiro para alugar carro, e muito menos reservar pousadas e comprar passagem de avião. Muitas eram idosas e tinham problemas de locomoção.
Essas foram a maioria esmagadora das vítimas do Katrina.
Até hoje, as pessoas negras de Nova Orleans se ofendem quando alguém se refere ao Katrina como um “desastre natural”.
Furacões são parte inevitável da vida no Caribe e Golfo do México. Eles são inocentes. O Katrina nunca matou ninguém.
O que houve em Nova Orleans foi uma limpeza étnica que expulsou boa parte da população negra da cidade e lavou do mapa vários bairros pobres, liberando-os para a especulação imobiliária e criando oportunidades de negócio que foram entusiasticamente (e sem nenhuma vergonha) celebradas pela elite branca da cidade.
Em Cuba, país mais pobre e de construções menos sólidas, o Katrina passou com a mesma força e não morreu um único cidadão, de qualquer cor.
As mortes nos Estados Unidos foram causadas não pelo furacão, mas por políticas públicas centenárias que conscientemente protegem as pessoas brancas e afluentes e deixam à própria sorte as pessoas negras e mais pobres.
Não houve nada de natural em nenhuma morte ocorrida em Nova Orleans durante a passagem do furacão Katrina.
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Diáspora é tudo igual
A evacuação de Nova Orleans causou uma das maiores diásporas da história ocidental. Quase um milhão e meio de pessoas se espalhou pelo país e pelo mundo. Eu e o Oliver inclusive.
Quase um ano depois, na eleição para prefeito, ainda havia mais eleitores fora do que dentro da cidade. Foi a primeira eleição municipal que se conhece onde a campanha foi realizada em diversos estados diferentes.
Os jovens de hoje em dia estão tão acostumados à existência de Israel que se esquecem que, durante quase dois mil anos, os judeus andaram pelo mundo sem pátria. Naquela época, quando dois judeus se despediam um do outro, era comum dizerem: “ano que vem, em Jerusalém!” Ou seja, tomara que ano que vem recuperemos nossa pátria e, então, todos nos encontraremos lá.
Nos meses logo após o Katrina, perdi a conta de quantos “ano que vem, em Nova Orleans” eu ouvi, de gente que não conhecia essa frase dos judeus, claro. De certo modo, parece a melhor coisa a se dizer no fim da conversa.
Definitivamente, diáspora é tudo igual.
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Estar em Waterloo
Quando a gente está no meio da batalha de Waterloo, nunca se dá conta de estar no meio da batalha de Waterloo. Ficamos mais preocupados em desviar de balas, proteger as costas, atacar a cavalaria inimiga, essas coisas. Considerações geoestratégicas são colocadas em segundo plano. O soldado que parou muito tempo pra pensar “caramba, não é que estou no meio de uma das batalhas mais decisivas de todos os tempos!” levou uma espada nas costas antes de terminar o pensamento.
Durante a crise, mal tive tempo de pensar direito nesse tal Katrina. Estava preocupado com minha segurança e com a do Oliver ou se conseguiria dinheiro pra pagar as passagens, vaga pra estudar na Califórnia, transporte pro Oliver ou apartamento pra alugar e, até mesmo, simplesmente, se minha universidade continuaria me pagando.
Só quando a poeira assentou que comecei a me dar conta de que talvez tenha vivido o episódio mais fantástico da minha vida.
Quando eu e minha ex-esposa nos separamos, eu fui para Nova Orleans e ela, para o Timor Leste, como parte de uma missão da CAPES para ajudar a estabelecer o novo currículo educacional. E eu pensei:
“Puxa, lá vai ela viver fortes emoções em um país se recriando do zero, enquanto eu vou pra uma comportada metrópole ocidental viver uma comportada carreira acadêmica.”
Quem imaginaria que a viagem aventuresca seria a minha.
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Nem todos sofreram igual
Quando a Universidade de Tulane reabriu, em janeiro de 2006, a população da cidade imediatamente dobrou, entre alunos, professores, funcionários, fornecedores.
Eu tinha até pensado em continuar na Califórnia, mas meu departamento, muito prestigioso no país e vitrine da universidade, aumentou nossa bolsa em 40%, para que ninguém saísse. Enquanto isso, muitos e muitos outros departamentos foram sumariamente cortados: meu colega de casa fazia doutorado em Letras-Francês e teve que procurar outra universidade.
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Todos os habitantes de Nova Orleans sofreram o baque do Katrina mas, como sempre, os baques nunca são sentidos iguais.
Dos que decidiram não voltar, grande parte era de pessoas negras de baixa renda, garçons e faxineiros, atendentes e ajudantes, que perderam suas casas e seus empregos. Quem era caixa de supermercado em Nova Orleans, fugiu para o colchonete do primo em Cleveland, conseguiu um emprego semelhante oor lá para ir se virando e depois descobriu que não tinha mais casa… voltar pra quê?
Quem voltou foram os médicos e os engenheiros, os professores e os lojistas.
Que logo aprenderam uma importante lição.
Só para dar um exemplo: Nova Orleans é um dos principais destinos de férias e de conferências dos EUA e os bairros turísticos, que também eram os históricos, foram os menos afetados. Ainda assim, a indústria hoteleira e gastronômica enfrentou uma grave crise no pós-Katrina, por um motivo simples: falta de garçons e de camareiras, de motoristas e de cozinheiros.
A elite branca de Nova Orleans, ao mesmo tempo em que celebrava o fim de bairros negros pobres que ela considerava serem focos de feiúra e criminalidade, também percebeu como era difícil viver sua vida privilegiada sem o trabalho barato das pessoas que viviam nesses bairros.
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A lição mais importante que o Katrina me ensinou
Para um escritor e historiador como eu, a chance de viver e de testemunhar os anos imediatamente posteriores ao Katrina foi uma oportunidade única.
Em vários momentos, eu me sentia morando em Berlim 1945. Com uma diferença.
Em Berlim, diz a lenda, o carteiro ainda estava entregando cartas enquanto os russos invadiam a cidade.
Em Nova Orleans, o correio, o lixo, o bonde, tudo parou de funcionar. Muitos serviços essenciais apenas foram retomados anos depois.
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O bonde parou: até então a mais antiga linha em funcionamento contínuo do mundo, desde 1835, só voltou a passar em frente à minha casa em 2008, três anos depois do Katrina.
O correio parou: havia entrega somente de cartas pessoais, por ser consideradas um direito humano básico. Mas nada de pacotes, impressos, revistas. No pós-Katrina, as pessoas de Nova Orleans não recebiam suas compras na Amazon nem suas assinaturas da New Yorker.
O lixo parou: nossa instrução era deixarmos o lixo em frente às nossas casas e os caminhões coletores passariam quando fosse possível. Em uma cidade que já tinha ficado cinco semanas submersa em água imunda e contaminada, imaginem como esse lixo todo, exposto a céu aberto por dias e dias, não piorou a vida, não gerou mau-cheiro, não causou doenças.
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O seriado Tremé, sobre Nova Orleans, é bem fraco enquanto dramaturgia, mas excelente como crônica do pós-Katrina. Na série inteira, só uma cena me fez chorar: no último episódio, uma personagem vê o seu velho carteiro voltando a fazer entregas e o abraça efusivamente.
A cena dura um segundo, e acontece no fundo da tela, mas eu conhecia bem aquela sensação.
Quando a coleta regular de lixo foi retomada, era com alegria sincera que eu tirava o lixo nas noites de segunda e sexta, sabendo que ele seria recolhido durante a madrugada.
Talvez essa seja a principal lição que o Katrina me ensinou: como é lindo, como é emocionante, como é um privilégio…. simplesmente ter nossas cartas entregues e nosso lixo recolhido.
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A importância de um restaurante
Em meio à maior tragédia na história de uma cidade, a reabertura de um único restaurante podia ser a diferença entre a esperança e o desespero.
Alguém confirmava que o Commander’s Palace tal iria reabrir e todos celebravam: era um restaurante icônico e centenário, parte da história da cidade, indissociável de sua identidade. Sem Commander’s Palace, não havia Nova Orleans.
Por outro lado, muitos estabelecimentos preferiam não reabrir. Os donos já estavam velhos e cansados, os prejuízos tinham sido muito altos, simplesmente não valia a pena.
Então, quando alguém confirmava que o Camellia Grill não iria reabrir, era um novo processo de luto, um pouco como saber da morte de um parente querido, de um irmão que não voltaria mais da guerra.
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Sei que esses nomes não querem dizer nada para vocês, leitores, mas tentem pensar em suas próprias cidades.
Imaginem se suas cidades sofressem catástrofes que colocassem em questão sua própria viabilidade enquanto cidades. Imaginem se vocês estivessem tristes, desanimados, sem esperanças. Imaginem se todo mundo que conhecesse tivesse perdido um ente querido ou todas as suas posses materiais, ou ambos.
Pra piorar, imaginem como seria triste nunca mais poder comer o acarajé de Dinha, o filé com abacaxi do Cervantes, o lanche de pernil do Estadão, o pão de queijo do Verdemar, o lombinho com queijo da Barranco.
Pois bem. Quando o Camellia Grill, um típico diner norte-americano perto da minha casa, anunciou que não iria reabrir, os moradores não aceitaram. Começaram uma verdadeira campanha. Deixavam avisos, mensagens, fotos, post-its na fachada da lanchonete.
As fotos abaixo foram tiradas por mim, em setembro de 2006, mais de um ano depois do Katrina:
(Tem mais fotos aqui.)
Poucos dias depois de eu tirar essas fotos, os donos cederam, anunciaram que o Camellia Grill voltaria e começaram as reformas.
O restaurante finalmente reabriu em abril de 2007, depois de vinte meses fechado.
Tem até artigo acadêmico explorando o significado sociocultural da reabertura do Camellia Grill para a identidade de Nova Orleans.
E, de fato, era o melhor hamburger com milkshake da cidade.
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Geladeiras distópicas
Quando as pessoas finalmente puderam voltar à Nova Orleans, no final de um verão escaldante, a comida em suas geladeiras estava podre. A podridão era tanta que as pessoas ficavam doentes só de abrir as geladeiras.
Praticamente todas as geladeiras de Nova Orleans, menos as dos poucos gênios que tiveram a sabedoria de esvaziá-las antes do furacão, foram postas nas ruas, completamente tóxicas, para serem recolhidas pelos lixeiros.
(Em uma cidade de um milhão e meio de habitantes, façam as contas de quantas geladeiras estamos falando.)
Infelizmente, no caos pós-Katrina, como contei acima, Nova Orleans também não tinha mais serviço regular de coleta de lixo.
Pra piorar, as geladeiras eram consideradas tão tóxicas que não podia ser retiradas junto com o lixo normal.
Assim, durante muitos e muitos meses, geladeiras podres e abandonadas foram um parte integrante da paisagem distópica da Nova Orleans pós-Katrina.
No natal, mais de quatro meses depois do furacão, ainda havia geladeiras largadas pelas ruas da cidade.
Bem-humorado e pândego, o nova-orleniano típico não se deixou abater: em pouco tempo, as geladeiras estavam todas enfeitadas e grafitadas.
Nova Orleans, essa cidade sensual e sem-vergonha, se recusou a silenciar: usou a sua própria tragédia para produzir arte.
Uma arte necessariamente efêmera, forte e contingente, que sumiu em poucos meses (aliás, ainda bem), mas que deixou marcas profundas em quem estava lá e participou do processo de reconstrução de uma das cidades mais únicas do mundo.
O livro Do Not Open: The Discarded Refrigerators of Post-Katrina New Orleans reúne uma belíssima coleção de fotos dessas geladeiras. Eu recomendo.
Abaixo, alguns exemplos:
”Favor enviar a George Bush na Casa Branca. Urgente: contém perecíveis.”
”Eu amo Nova Iorque.”
”Adeus e obrigado pelos peixes!”
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Galinhas e melancias selvagens
Não haveria espaço para contar todas as histórias insólitas da Nova Orleans pós-Katrina, mas essas duas são as minhas preferidas.
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Depois do Katrina, era natural e esperado que houvesse um aumento nas populações de cães e gatos de rua.
Mas ninguém esperava que a cidade fosse tomada por bandos de galinhas selvagens (os maiores com até 35 indivíduos!) vindas dos muitos galinheiros de fundo de quintal destruídos pelo furacão.
Com os moradores reclamando das fezes, das penas, do barulho e, principalmente, dos galos cantando ao nascer do sol, as autoridades tinham que mandar às vezes dezenas de oficiais para caçar uma única galinha.
Enquanto isso, as crianças se divertiam e se ocupavam, disputando quem conseguia capturar mais.
Se galinhas domésticas já são espertas e rápidas, imaginem galinhas selvagens e que vivem nas ruas de uma cidade famosa por sua malandragem.
(Duas matérias sobre as galinhas selvagens de Nova Orleans.)
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Enquanto isso, melancias selvagens começaram a brotar em áreas que tinham ficado submersas.
Melancias são 90% água, uma água que elas sugam do solo.
Então, uma teoria possível é que o surgimento espontâneo das melancias selvagens seria uma forma do solo se livrar do excesso de água absorvido durante a inundação.
Naturalmente, o solo precisa se livrar dessa água porque ela estava contaminada de todo tipo de porcaria.
Para evitar que as melancias fossem consumidas, as autoridades tentavam recolhê-las, mas simplesmente não conseguiam dar conta e elas continuavam brotando, aqui e ali.
(Duas matérias sobre as melancias selvagens de Nova Orleans.)
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E assim, habitantes de uma verdadeira Macondo subtropical, tentávamos reconstruir nossas vidas entre melancias e galinhas selvagens.
Nova Orleans é puro realismo mágico.
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Agradecimentos de ex-refugiado
Quando o Katrina fez aniversário de dois anos, o jornal local de Nova Orleans fez uma manchete simplesmente linda:
“Thank you”.
O que importa não é a desgraça que nos aconteceu, mas as pessoas maravilhosas que nos ajudaram.
E eu também sinto que tenho que agradecer.
(Os agradecimentos foram escritos na época, então contém algumas repetições de fato que já contei acima, mas achei importante incluí-los aqui.)
Obrigado à Tulane University, que me evacuou de Nova Orleans, me arranjou abrigo na Mississipi State University em Jackson e continuou me pagando religiosamente durante toda a crise, coisas que a maioria dos empregadores da cidade não fez. Sem a evacuação, eu com certeza teria enfrentado o furacão em casa e sabe-se lá o que teria acontecido. Sem o pagamento, teria tido que voltar ao Brasil e mudae totalmente meus planos de vida.
Obrigado ao carinha do abrigo que me emprestou seu laptop pra eu checar o meu email.
Obrigado à Renata, uma das melhores amigas que um homem pode ter, que me mandou um email curto e grosso dizendo mais ou menos o seguinte: não sei onde você está nem quando vai ler isso (eu não tinha nem laptop nem celular), ou mesmo se já foi pago (ainda não), mas aqui está o número do meu cartão de crédito, compra uma passagem e vem aqui pra casa agora. Sem a Renata, não sei quanto mais tempo eu ficaria no abrigo ou o que aconteceria depois. Por causa dela, eu peguei um táxi, fui até o aeroporto de Jackson e embarquei para Nova Iorque.
Obrigado a um funcionário da Northwestern cujo nome eu não lembro. Os vôos saindo de Jackson já estavam todos lotados, a situação cada vez mais desesperadora, o Katrina se aproximando da cidade, eu e muitos outros indo de balcão em balcão perguntando se havia qualquer passagem pra qualquer lugar e rápido! Acabei somente conseguindo para a manhã do dia seguinte. Meu vôo saía às 7 e previa-se que o Katrina passaria em Jackson ao meio-dia. Ninguém sabia com certeza se o aeroporto ainda estaria aberto na hora do meu vôo. Comprei a passagem ao meio-dia de domingo e me sentei em frente ao balcão da Northwestern para esperar até às 7 da manhã de segunda. Lá pelas seis da tarde, esse funcionário veio me procurar, me disse que era quase certo do aeroporto não estar aberto para o meu vôo (de fato, fechou bem antes) e que ele tinha conseguido me enfiar num vôo pra Detroit, em uma daquelas cadeiras retráteis da tripulação. Não dava tempo pra despachar a mala, eu tinha que entrar agora, e por isso deixei com ele, como único e bobo agradecimento, o canivete suíço que me acompanhou a vida toda e que não poderia mesmo embarcar.
Obrigado à família da Renata, ao seu marido Jaime e a sua linda filha Ana. Além de pagarem minha passagem e me hospedarem, me aturaram numa fase que não deve ser sido fácil.
Obrigado à minha ex-mulher, então no Timor Leste, Diane, que teria tido todo o direito de me pagar a maior geral por ter deixado o cachorro que ela tanto ama pra trás durante a evacuação, e isso teria sido duro de ouvir, mas me deu um apoio e um suporte enorme na hora que eu mais precisei, e nunca me recriminou.
Obrigado, mais uma vez, à Renata, que falou à sua amiga Marcela da situação do Oliver, preso na minha casa, perigando de morrer de fome.
Obrigado à Marcela, também aluna de Tulane e que foi se refugiar na casa da mãe, em Washington, onde encontrou a Renata. Marcela conhecia um amigo da Universidade de Maryland que estava planejando entrar escondido em Nova Orleans para tirar fotos da catástrofe (a cidade estava fechada), contou pra ele a história do Oliver e deu meu endereço. Mais ainda, quando o amigo ligou de Nova Orleans para dizer que as ruas estavam todas inundadas e que não dava pra ele salvar o cachorro de um completo desconhecido ou os documentos que Marcela pedira para ele ir buscar em sua casa, disse: “salva o bichinho, os documentos eu arranjo depois.”
Obrigado ao Mark Gong e seu companheiro de viagem, Julian, que literalmente invadiram uma cidade fechada, inundada e destruída, enfrentaram um sem-número de dificuldades, encontraram minha casa entre ruas alagadas e casas derrubadas, arrombaram a porta, tiraram o Oliver lá de dentro em um cesto de roupa suja e dirigiram com ele de Nova Orleans até Washington.
Obrigado à leitora Jade, que foi pra Nova Orleans como voluntária e estava com meu endereço para resgatar o Oliver também, mas o Mark e o Julian chegaram primeiro.
Obrigado aos Estupiñáns, sogros da minha amiga Renata, que hospedaram, limparam e cuidaram do Oliver enquanto esteve em Washington.
Obrigado à minha irmã, que me chamou pra ir ficar com ela na Califórnia, me hospedou uma semana e fez os primeiros contatos na Universidade de Berkeley para que eu estudasse lá. Obrigado também ao seu marido, porque aturar cunhado refugiado não é fácil.
Obrigado à Continental Airlines, que enviou o Oliver de graça de Washington até São Francisco, onde eu estava, assim como fez com outros milhares de animais de estimação separados de seus donos pelo Katrina.
Obrigado à ONG MoveOn, que criou o site HurricaneHousing.org, através do qual pessoas poderiam se voluntariar para hospedar refugiados do Katrina. Somente em um raio de 50 milhas do meu CEP, haviam 9 mil voluntários, entre eles, David.
Obrigado ao David e sua família, que hospedaram a mim e ao Oliver durante cinco meses em um apartamento de 3 quartos no porão de sua casa, na melhor área de Berkeley, e não queriam me cobrar nada, mas como Tulane continuou me pagando, insisti em lhes pagar o mesmo que eu pagava por minha casa em Nova Orleans (um valor que em Berkeley não alugaria nem um armário). Eles não apenas nos hospedaram: David nos recebeu para suas ceias de Ação de Graças e Natal, nos levou pra sair, pra jantar. Em uma situação onde tantos refugiados se sentiram intrusos nas casas que os acolheram, eu me senti parte da família.
Obrigado à universidade e cidade de Berkeley, que foram de uma generosidade ímpar com os refugiados, algo que só me dei conta quando troquei histórias com refugiados de outros lugares. Além de estudar de graça em uma das melhores universidades do mundo, nos deram roupas, livros, comida, saúde, atendimento médico e legal, tudo. A equipe da própria universidade foi sensacional, e eu não poderia deixar de citar Veronica, a diretora da pós, e o José Luiz Passos, professor de Português, que me deram suporte em tudo o que precisei.
Obrigado ao Christopher Dunn, chefe do meu departamento em Tulane, que apesar de estar longe, me ajudou com inúmeros contatos por todos os lugares pelos quais passei. Graças a ele, entrei em Berkeley, consegui contato com o David-professor (abaixo) e ainda consegui a casa onde estou agora, na volta à New Orleans.
Obrigado às empresas que doaram cartões de presentes, entre elas Southwest Airlines ($300 pra voltar pra casa), Gap ($200), Levi’s ($150) e Target ($100).
Obrigado ao David, professor do meu departamento, que voltando para Nova Orleans para ver como estava sua casa, passou na minha e salvou todos os meus livros e objetos pessoais que meu roommate que saiu do inferno estava ameaçando jogar na rua. Boa parte do material ele levou até o Texas e, de lá, despachou para a California. Nunca tínhamos nos visto ou nos falado.
Obrigado à Valerie, que viu o David saindo da minha casa carregado de coisas e se ofereceu para guardar o mais pesado (as roupas e os livros) em sua casa. Na verdade, a casa nem era dela. Valerie perdeu tudo no furacão e estava refugiada na casa do filho, ao lado da minha, mas não nos conhecíamos. Durante quase quatro meses, ela ocupou meio quarto de uma casa que nem era sua com praticamente tudo o que eu tinha nessa vida. Eu, um completo estranho. (Valerie era a dona dos seis chiuauas de quem falei acima.)
Obrigado a Ana Maria, mãe do meu roommate infernal. Quando David me mandou meus documentos, vi que ele não incluíra muita coisa, inclusive um romance que estava escrevendo a mão e não tinha cópia, além do rascunho da Prisão Felicidade, também sem cópias. Ela foi até a casa do filho e conseguiu encontrar tudo o que o David não encontrara da primeira vez. Também nunca nos vimos, ou tínhamos nos falado antes do furacão.
Obrigado à Stella, amiga da Ana Maria, que foi quem me enviou pelo correio as coisas que a Ana Maria achou.
Obrigado ao meu pai e à minha mãe, que não puderam fazer muito, mas sempre estiveram comigo. Obrigado também aos inúmeros leitores dos meus textos, gente que nem me conhecia, que me ajudaram de todos os jeitos, fazendo posts, buscando contatos na TV pra resgatar o Oliver, mandando emails, muitos até me oferecendo dinheiro se eu precisasse. Vocês são todos lindos.
Obrigado ao Oliver, que foi meu companheirão por mais de uma década e quase chegou a esse aniversário.
Por fim, obrigado à Liloló, a mulher que por mais tempo me amou e que por mais tempo foi amada por mim. Quando cheguei na casa do David, sozinho, só com uma sacola e mais nada, já encontrei um pacote da Amazon com roupa de cama e banho. Meu enxoval na Califórnia. Durante toda a crise, senti sua presença sobrenaturalmente real sempre ao meu lado. Sem o Katrina, talvez não tivéssemos nos apaixonado.
Por fim, fim mesmo, obrigado, e desculpas sinceras, a quem me ajudou e eu não citei.
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O Katrina, vivo, hoje
Em Berkeley, nas aulas de Literatura que cursei enquanto minha universidade não reabria, conheci a história do poeta Juan Francisco Manzano, de Cuba, única pessoa escravizada latino-americana a escrever uma autobiografia. Em 2015, três dias depois do aniversário de dez anos do Katrina, foi o lançamento da edição brasileira da autobiografia do poeta-escravo, traduzida e anotada por mim.
Sem o Katrina, esse livro não existiria. Quando o destino joga uma pedrinha nas águas da História, nunca sabemos o quão longe as ondas concêntricas vão nos levar.
Ainda não li Ulisses.
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Trechos desse texto foram publicados no jornal Folha de São Paulo, de 28 de agosto de 2015.
4 respostas em “Katrina”
Voce sabe contar uma estória! ????????
[…] Meu depoimento sobre o furacão Katrina. […]
O seu relato é de tirar o fôlego.Me emocionei com seu carinho com o Oliver.
Emocionante relato. Estive em New Orleans em 2004 e amei tanto que chorei feito criança quando o Katrina passou.