Quando estamos remando a favor da corrente, descendo o rio, sendo tudo aquilo que a sociedade espera de nós, a viagem é tranquila e agradável, o mundo parece livre e florido, a vida não exige esforço algum.
Às vezes, algumas amigas criadoras de caso reclamam da correnteza, denunciam que o rio é caudaloso e violento, mas nós nem entendemos direito o que querem dizer:
“Gente, o rio é tão tranquilo, tão gostoso de navegar, será que não são vocês que estão vendo coisas?”
Um belo dia, entretanto, deixamos de ser uma ou mais daquelas coisas que a sociedade espera que sejamos. Pode ser um desvio pequeno ou grande, incidental ou ontológico, pode ser uma decisão de momento, pode ser revelarmos ao mundo aquilo que sempre fomos: abandonar celular ou abraçar o ateísmo, tornar-se feminista ou sair do armário. Agora, aquela mesma corrente de sempre não está mais nos levando para onde queremos ir: ela continua nos levando em direção a um emprego em tempo integral, mas queremos ser atrizes de teatro infantil. Para chegarmos ao nosso novo objetivo, para sermos quem queremos ser, teremos que remar contra a correnteza.
Nesse momento, quando enfiamos o remo na água para remar contra a corrente, é que percebemos tudo aquilo não percebíamos antes: que aquele rio que parecia tão agradável e tranquilo na verdade é forte, caudaloso, intolerante. Um rio que é tão violento quanto são violentas as margens estreitas que o limitam.
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Muitas vezes sou acusado de ficar “reafirmando” meu estilo de vida, como se estivesse me gabando, como se fosse inseguro, como se quisesse convencer as outras pessoas. Mas a correnteza é forte, inapelável, constante: ela está sempre nos levando rumo ao padrão que a sociedade exige de nós, tentando nos transformar em pais e mães de família, trabalhadoras, consumidoras, monogâmicas, heterossexuais, conservadoras, religiosas.
Ninguém é tão transgressora que não aceite grande parte dessas obrigatoriedades sociais: mesmo quando transgredimos algumas, acabamos aceitando a maioria das outras. Somos todas, em diferentes graus, transgressoras e conformistas. Mas basta querermos transgredir qualquer uma coisa e já teremos que remar contra a corrente.
Ser quem queremos ser é uma luta diária, um exercício sissifeano de remar contra a corrente durante toda nossa vida; de parar e descansar e ser arrastada para trás e então remar tudo de novo; de manter o olho cravado em nosso objetivo, seja ele qual for; de recusar todas as coações e cooptações e seduções que surgirem ao longo do trajeto; de articular sempre quem somos e quem desejamos ser; e, finalmente (e essa é a parte mais difícil), é um exercício de efetivamente sermos essa pessoa.
Quem está remando contra a corrente precisa se autoafirmar: é necessário articularmos sempre o nosso objetivo — justamente para não nos desviarmos dele.
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A metáfora de Bertolt Brecht sobre a violência do rio pode ser encontrada, com ligeira diferença, no poema “Sobre a violência” (circa 1933-38), disponível no livro Poemas 1913-1956, publicado pela Editora 34.
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Esse trechinho faz parte da Prisão Autossuficiência. Leia o texto completo.
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Quarta agora, 3 de junho de 2020, vou precisar sair para ir ao oculista e aproveitarei para passar nos Correios e enviar todos os livros que foram vendidos desde o começo da pandemia.
Quer um dos meus livros autografados? Então, compra agora que ainda dá tempo: Atenção. & A autobiografia do poeta-escravo.
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A força da correnteza é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 2 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/correnteza // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato