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Prisão Religião

Não temos escolha de enxergar o mundo a não ser pelas lentes da nossa ideologia. A Prisão Religião é para tentarmos enxergar essas lentes.

Religião é ideologia, ideologia é religião. Não é que a religião seja um tipo de ideologia. Não é que a ideologia funcione como se fosse uma religião. É que religião e ideologia são a mesma coisa: teorias abrangentes que utilizamos para fazer sentido da realidade, sejam elas o cristianismo ou o candomblé, o liberalismo ou o marxismo, o método científico ou a psicanálise freudiana.

Todas as pessoas, inclusive eu e você, enxergamos o mundo através de uma ou mais ideologias, e não há nada de errado nisso. (Pelo contrário, é impossível ser a-ideológico.) É só quando não conseguimos enxergar além das barras de nossa ideologia que ela pode se tornar uma prisão. Infelizmente, quase ninguém consegue: a gente não acredita no que quer, mas no que pode.

Um telescópio pode ser usado para enxergar galáxias a milhares de anos-luz de distância, mas nunca poderá ser usado para enxergar a si mesmo. Toda ideologia/religião dá conta de explicar o universo, mas não dá conta de explicar a si mesma. Toda ideologia/religião pode questionar ou interpelar tudo, menos suas próprias certezas fundantes.

(Essa é a versão final completa da Prisão Religião. Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Religião é a segunda, depois da Prisão VerdadeAs inscrições para o curso estão abertas.)

O que está em jogo é a nossa vida.

* * *

Nossas ideologias pessoais

Todas temos ideologia. Não seria possível não termos: elas são as lentes pelas quais enxergamos o mundo, apreendemos a verdade, decidimos nosso caminho. Dependendo das lentes, entretanto, podemos não estar enxergando todos os caminhos possíveis. Não temos escolha de enxergar o mundo a não ser por essas lentes, talvez não tenhamos nem como trocar de lentes, mas podemos pelo menos tentar enxergar nossas lentes. A Prisão Religião, continuação necessária da Prisão Verdade, é uma tentativa de enxergamos as lentes através das quais enxergamos nossas verdades.

Quem está presa na Prisão Religião não são as pessoas que têm ideologias diferentes ou opostas às nossas, mas sim as pessoas que não enxergam suas próprias ideologias; as que juram que não têm ideologia; as que se dizem apenas dotadas de “bom-senso”, “lógica”, “racionalidade”; as que não reconhecem o salto de fé que existe na base de seu próprio pensamento, de suas próprias certezas, de suas próprias verdades.

Na Prisão Verdade, demos os primeiros passos no trajeto intelectual das Prisões: primeiro, nos negamos a aceitar as verdades impostas; depois, empreendemos trocar essas verdades recebidas por nossas próprias certezas autoconstruídas; em um terceiro momento, nos demos conta das limitações da nossa inteligência, do nosso pensamento, da nossa cognição; por fim, como única salvaguarda possível, estabelecemos que toda certeza sempre será, até segunda ordem, uma hipótese.

Mas hipóteses, por definição, são instrumentos de trabalho que podemos escolher e des-escolher, utilizar ou descartar. Existem algumas certezas, porém, que não são hipóteses, pois não foram conscientemente escolhidas e não podem ser justificadas, não têm como ser explicadas e provavelmente não conseguiríamos substituir: são nossas crenças fundantes.

E, assim como toda certeza na prática é uma sensação, toda crença fundante é fundamentalmente um afeto.

Digamos que eu seja uma pessoa pautada pela racionalidade. Mesmo que defenda todas as minhas posições racionalmente, a partir da racionalidade como valor fundamental, ainda assim eu não teria como defender racionalmente a base dessa escolha. Pois basear minhas certezas na racionalidade não foi, nem poderia ter sido, uma escolha racional. Aliás, não foi nem mesmo uma escolha, pois eu provavelmente não conseguiria decidir des-escolhê-la em um ato de vontade: ela é um afeto. Por debaixo de todas as minhas decisões tão efetivamente racionais, tão realmente racionais, existe o salto de fé primordial de confiar na racionalidade como crença fundante das minhas certezas. Esse afeto originário pela racionalidade − tão racional e tão inexplicável, tão científico e tão imponderável, quanto o Big Bang no começo do universo − não foi uma escolha, provavelmente não pode ser des-escolhido, mas posso ao menos reconhecer que é a base do meu pensamento.

Uma definição possível de ideologia seria um coletivo de pessoas que têm as mesmas crenças fundantes. O que é o liberalismo ou o libertarianismo (grosso modo, por favor!) se não um grupo de pessoas que, em maior ou menor grau, mais ou menos hipocritamente, colocam a “liberdade individual” como valor fundamental? Não seria a esquerda um coletivo de pessoas cuja crença fundante é a igualdade? Se uma pessoa liberal ou libertária é aquela que mede suas certezas pela régua da liberdade, então, a partir desse valor primordial ela pode até questionar tudo (“essa decisão levará a mais ou menos liberdade?”, “restringirá ou não a liberdade de alguém?” etc), menos seu próprio afeto pela liberdade como valor fundante. Se lhe perguntarem: “Por que mais ou maior liberdade seria um bem tão importante ou tão autoevidente a ponto de medir tudo por essa régua?” ou, então, “Se tudo o que você faz é em prol de mais liberdade, por que quer tanto ser livre?”, o que essa pessoa responderia?

Quando a única resposta possível é “porque sim”, que ser mais livre é bom por si só, então sabemos que esbarramos numa crença fundante, num afeto inexplicável, num salto de fé indivisível. Se houver outra explicação além dessa, então ela é a crença fundante: se quero ser livre para assim atingir maior felicidade, então, a felicidade é minha crença fundante.*

É impossível viver, pensar, entender o mundo sem ser a partir de nossas crenças fundantes. O que estou propondo na Prisão Religião é simplesmente tentarmos enxergá-las. Pois a natureza odeia um vácuo. Se não estivermos conscientes de quais são nossas crenças fundantes, então provavelmente estaremos seguindo inconscientemente as crenças fundantes default, ou seja, as ideologias hegemônicas, da nossa família, do nosso grupo, da nossa sociedade. Se seguíssemos o conselho dos manuais de autoajuda e fizéssemos a tal “viagem de autodescobrimento para dentro de nós mesmas em busca de nossas verdades essenciais”, o que descobriríamos seria apenas o racismo e o sexismo, a monogamia e o consumismo.

Se não pelo menos reconhecermos nossas crenças fundantes, não teremos como entendê-las, questioná-las, interpelá-las, desafiá-las, substituí-las. Talvez, mesmo assim, seja impossível. Mas, se nem mesmo as enxergarmos, certamente será.

Então, estaremos condenadas a ser apenas hospedeiras e vetores das ideologias hegemônicas: elas falarão por nossa boca, se perpetuarão por nosso corpo, se reproduzirão por nossos atos. É isso que queremos? Ser massa de manobra do senso comum?

[*Nas Prisões Liberdade e Felicidade, vou falar especificamente desses afetos tão, mas tão importantes que podem facilmente se tornar prisões.]

* * *

As ideologias hegemônicas da sociedade

Todo mês, no Curso das Prisões, fazemos uma conversa livre sobre uma prisão. No encontro sobre a Prisão Religião, conversando sobre ideologias, uma aluna perguntou:

“Como compartilhar o mesmo país com pessoas de ideologias tão diferentes?”

Mas será que são mesmo tão diferentes assim? Uruguaios, argentinos e chilenos são de fato bastante diferentes entre si, em termos de História, temperamento, sotaque, quase tudo: do ponto de vista de um chinês, entretanto, são quase indistinguíveis. Se houver vida fora da Terra, provavelmente serão eles a não conseguir distinguir argentinos de chineses.

Algumas pessoas acham que não existe mais ideologia hegemônica porque vivemos numa época muito polarizada: cada grupo tem sua ideologia, elas são extremadas e antagônicas, não existe meio-termo possível, não existe um campo em comum para dialogar. Mas é o contrário: o fato de vivermos em uma época tão polarizada torna ainda mais fácil identificar a ideologia dominante.

Hoje, em 2023, bolsonaristas querem Lula preso e lulistas querem Bolsonaro preso. Não estou entrando no mérito de quem está certo ou quem está errado, ou de qual desses grupos tem a melhor ou a pior ideologia. Também não estou sugerindo que são equivalentes, um tão ruim ou tão bom quanto o outro. Sei qual é o meu lado e, provavelmente, a maioria das pessoas lendo esse livro também. Não estamos aqui para apontar o dedo para adversários políticos – há tantos espaços melhores pra isso – mas para enxergar o que antes não enxergávamos.

Então, estou dizendo o seguinte. No dia a dia da sociedade, na nossa interação com as outras pessoas, o que aflora e o que nos irrita, aquilo que nos é mais visível e que sentimos na pele, são as diferenças, as discordâncias, os pontos de atrito. Qualquer pessoa de qualquer grupo político sempre terá na ponta da língua tudo que acha errado, irritante, intolerável na ideologia do grupo oposto.

Mas a verdadeira ideologia dominante da sociedade, a que está acima dessas disputas ideológicas internas, é por definição invisível – justamente por não ser vista como ideologia: ela é vista como “o jeito que as coisas são”.

No exemplo acima, ambos os grupos têm uma discordância pontual sobre quem deve ser preso, mas concordam acriticamente que julgar, punir, encarcerar pessoas é algo razoável, legal, justificado de se fazer em uma sociedade democrática: não questionam nem que o Estado tem direito de privar cidadãos de sua liberdade, nem que isso é útil e desejável como política pública. O nome dessa ideologia é punitivismo.

Quem é de esquerda sabe que é possível ser de direita, quem é direita sabe que é possível ser de esquerda. Podem até odiar ou desprezar as pessoas da ideologia oposta, mas sabem que existem.

Mas a maioria esmagadora das pessoas é punitivista sem nunca ao menos ter ouvido essa palavra, sem nem se dar conta que ela existe: defendem prender essa ou aquela pessoa, debatem criminalizar essa ou aquela prática, militam para aumentar ou diminuir a punição para certos crimes, mas nunca passa por suas cabeças que talvez prender pessoas não seja uma solução adequada para resolver o problema do crime, que talvez prender pessoas não seja nem mesmo direito do Estado. As pessoas são punitivistas por default, porque nunca lhes ocorreu a possibilidade que poderiam não ser, porque nunca se deram conta que havia outras maneiras de organizar a sociedade. O punitivismo, por definição, é uma Prisão. (Se esse livro fosse infinito, o punitivismo certamente teria um capítulo só para ele. Mas, infelizmente, escolhas tiveram que ser feitas.)

Portanto, para saber quais são as ideologias hegemônicas da sociedade, é só interpelar os grupos mais antagônicos e tentar determinar: no que até eles concordam? Em quais assuntos nem mesmo eles pensaram discordar? Bolsonaristas e lulistas, por exemplo, concordam que o ideal para o Brasil é que o desemprego caia, que o consumo aumente, que a economia cresça.

Ao longo de todo o percurso nas Prisões, estaremos sempre interpelando nossas ideologias hegemônicas, em especial o consumismo-crescimentismo capitalista.* Hoje, na prática, essa é a religião dominante da sociedade, mais praticada e reverenciada do que qualquer outra. Ofereceremos um sacrifício ao Deus-Mercado na conclusão da Prisão Religião.

[*Nas Prisões Trabalho e Autossuficiência, exploraremos esses temas mais a fundo. Afinal, é sustentável uma ideologia de crescimento infinito em um planeta finito?]

* * *

A experiência da água fervida

Há muitos e muitos anos, quando eu era um menino rico crescendo na praia da Barra da Tijuca, a cozinheira quis tomar uma xícara de chá. Enquanto ela pegava o bule no armário, sugeri:

− Por que não ferve a água no micro-ondas?

Ela resmungou que micro-ondas era mais lento ou algo assim, mas a verdade é que ela, senhora mais idosa vinda do interior da Bahia, não tinha era confiança naquelas engenhocas tecnológicas. Puro preconceito, pensei. (Naquela época, eu ainda não tinha percebido que, independente de idade, classe social ou naturalidade, só as pessoas mais tecnófilas realmente confiam e adotam tecnologias inventadas depois de seus trinta anos.)

Respondi que apostava com ela que no micro-ondas era mais rápido. Ela aceitou a aposta. A xícara d’água, no fogão, ferveu em pouco menos de três minutos. No micro-ondas, demorou três minutos e uns quebrados. Quebrada, também, ficou a minha cara.

* * *

Nossa cozinheira, mulher inteligentíssima, apesar de sua pouca escolaridade, ao menos conhecia seus próprios preconceitos: sabia que não gostava dessas rebimbocas modernosas, que esse negócio de homem com homem era coisa do diabo e, tem mais, lugar de mulher era em casa, criando os filhos. Não mentia para si mesma. Não se autoenganava. Já eu, menino culto e viajado, cosmopolita e sem preconceitos, estava totalmente cego pelos meus.

Assim como a cozinheira não tinha motivo concreto algum para preferir ferver água no fogo, a não ser seu preconceito contra tecnologia, eu também não tinha motivo concreto algum para preferir ferver água no micro-ondas, a não ser minha tecnofilia jovem-urbana-elitizada-consumista.

Assim como ela estava presa à sua criação, que enfatizava desconfiança à tecnologia, eu estava preso à minha, que enfatizava um abraçar acrítico e entusiasmado de novas tecnologias. Afinal, pensava eu, se usar o micro-ondas não fosse comprovadamente melhor do que usar o fogão… por que teriam inventado o micro-ondas, né?

Não há nada pior do que os preconceitos de quem acha que não tem preconceitos.

* * *

A ideologia do patrão

Muitos e muitos anos depois, eu morava em Nova Orleans, dividindo uma casa com diversas pessoas, entre elas Nate, um chef de cozinha que tinha vindo lá do Missouri para trabalhar no melhor restaurante da cidade. Um dia, foi demitido.

O chef não gostou da minha salada de melancia…− choramingou ele.

Apesar do prestígio de fazer parte de um restaurante famoso em todo o mundo, as condições de trabalho eram péssimas. Não tinha carteira assinada, plano de saúde, férias. Precisava trazer seus próprios apetrechos: todo dia, ele caminhava quarenta minutos até o restaurante com uma malinha de caríssimas facas e panelas. (Não havia transporte público e ele não tinha dinheiro para a gasolina.) O pior mesmo era ganhar por hora trabalhada e não ter horas fixas. Quando o movimento estava fraco, lhe mandavam de volta pra casa, às vezes por uma tarde, às vezes por vários dias, sempre sem receber. Quando o movimento estava bom, lhe faziam ficar até o último cliente. Resultado: nunca sabia se ganharia o suficiente para pagar o aluguel, mas não podia se arriscar a pegar um segundo emprego em suas horas livres.

Eu, meio chocado com essas condições de emprego, que para um restaurante nos Estados Unidos eram até normais, lhe contei como funcionavam as leis trabalhistas no Brasil. E ele, ali na varanda de nossa casa, fumando e bebendo compulsivamente, em um momento de absoluto desespero, rejeitado pelo emprego dos seus sonhos, sem saber para onde iria ou como pagaria o próximo aluguel, zerado de economias e cheio de dívidas estudantis, esse homem, nesse momento da sua vida, ouviu sobre o FGTS e automaticamente, instintivamente, sua primeira reação foi:

− Mas não fica muito caro contratar e demitir pessoas?

Ideologia é isso.

* * *

O que é ideologia

A questão não é se meu colega de casa está certo ou errado, se FGTS é bom ou ruim, se as leis trabalhistas engessam ou não a economia. A questão é a ideologia que fundamenta e embasa nossa interpretação da realidade.

Esse menino do Missouri, nascido e criado no coração dos Estados Unidos, mesmo quando demitido de um emprego onde não tinha nenhum direito trabalhista, ainda assim vê, pensa, percebe, reflete, entende o mundo… do ponto de vista das classes empregadoras. Sua primeira reação, que teria sido humana e compreensível até mesmo num anarcocapitalista, não foi se colocar em seu próprio lugar (“poxa, se eu morasse num país como o Brasil, pelo menos ganharia um dinheirinho agora…”) mas no lugar do chefe que tinha acabado de despedi-lo.

Passo boa parte do meu tempo tentando fazer pessoas privilegiadas (homens, pessoas brancas, hétero, classe alta, etc) se identificarem com as desprivilegiadas (mulheres, negras, gays, etc). É uma tarefa muito, muito difícil.

Uma ideologia como a norte-americana, que consegue quebrar nossa tendência natural de puxar a sardinha para o nosso lado, só podia mesmo ser uma das mais bem-sucedidas do mundo.

Pena que, em vez de fazer as pessoas ricas se identificarem com as pobres, faz as pobres se identificarem com as ricas.

* * *

Nesse ponto, algumas pessoas leitoras, admiradoras da ideologia norte-americana, talvez estejam reclamando da ideologia esquerdista do meu texto.

Mas é impossível um texto não ter ideologia ou não estar totalmente imerso na ideologia da pessoa que o escreveu e da sociedade que a produziu. Quando você tem a ilusão de ler um texto que não é ideológico, isso simplesmente quer dizer que o texto tem a mesma ideologia que você: logo, que a ideologia do texto lhe é invisível.

A pessoa que reclama de não aguentar mais “tanta ideologia” não é uma livre-pensadora, descompromissada e apolítica tentando formar suas próprias opiniões, mas sim uma pessoa mentalmente preguiçosa e de cabeça fechada, que só gosta de se expor às opiniões com as quais já concorda e que se sente extremamente incomodada quando exposta à opiniões diferentes.

Existem muitas ideologias. A ideologia desse meu texto, de achar que ideologia está em todo lugar, é uma delas.

A ideologia de se achar sem ideologia, por outro lado, é uma das ideologias mais disseminadas em nossa sociedade, especialmente entre as pessoas bem-nascidas de inclinação conservadora, que fazem desabafos como:

“Sou apenas um indivíduo livre, não tenho raça, não sou afiliado a partido, não tenho ideologia, não me meto em política! Quero só ficar aqui quietinho no meu canto, trabalhando duro, cuidando da minha família, viajando, curtindo meus livros, sendo feliz!”*

Certo ou errado, o problema de quem fala essas coisas é não perceber a sua própria ideologia. Ideologia é como espinafre no dente: a gente só vê o dos outros.

* * *

Ideologia é o conjunto de ideias, saberes, preconceitos, etc, que permite que as pessoas se relacionem com e façam sentido da realidade: são as lentes através das quais percebemos o mundo. Por isso, ideologia não é algo necessariamente ruim, e muito menos algo oposto à “verdade”. Não existe essa tal “verdade a-ideológica”: qualquer verdade será sempre apreendida através da ideologia de quem a vê.

Uma das definições mais famosas de ideologia é do filósofo francês Louis Althusser, escrevendo em 1970: a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência, gerando assim uma representação distorcida da realidade.**

A definição de Althusser, porém, dá a entender que a “representação distorcida da realidade” seria resultado de vermos o mundo através de uma ideologia falsa ou falha: se apenas tivéssemos escolhido a ideologia correta (como, por exemplo, o marxismo que Althusser defendia), então perceberíamos a realidade de forma não-distorcida.

Mas, considerando que nossos sentidos e nossa cognição são inerentemente falhos e limitados, todas as representações da realidade apreendidas através deles serão sempre, por definição, distorcidas. Não temos a capacidade de perceber a realidade de forma não-distorcida. (Pensem em quão ególatra seria alguém capaz de bater no próprio peito e se auto-afirmar ser “a pessoa que vê o mundo como ele realmente é”, “a pessoa que enxerga todas as coisas como elas verdadeiramente são.”)

Uma definição de ideologia mais neutra, que não presume que ideologia seja algo negativo ou falso, é a da historiadora norte-americana Barbara Fields, em 2012:

“A ideologia é melhor compreendida como um vocabulário descrito da vida cotidiana, necessário para que as pessoas possam conferir um sentido básico à realidade social, vivida e criada por elas a cada dia. É a linguagem da consciência que possibilita a relação específica entre pessoas. É a interpretação em pensamento das relações sociais através da qual elas constantemente produzem e reproduzem o seu ser coletivo em todas as suas mais diversas formas: família, clã, tribo, nação, classe, partido, empreendimento, igreja, exército, associação, etc. Deste modo, as ideologias não são ilusões, mas sim reais, tão reais quanto as relações sociais pelas quais elas se mantém.”***

* * *

Nate não passou nem duas semanas ocioso e logo foi contratado por outro restaurante, também um dos melhores da cidade e com as mesmas e sofríveis condições de trabalho.

Segundo a ideologia dele, tudo aconteceu tão rápido porque, em uma economia de mercado sem tantas regulamentações trabalhistas, é muito mais fácil e descomplicado contratar. Segundo a minha ideologia, foi uma combinação de sorte e talento. ****

A gente não enxerga o que quer, enxerga o que pode. Inclusive eu. Inclusive você.

[*Quando comecei a escrever O Livro das Prisões, em 2002, ainda na presidência Fernando Henrique Cardoso, eu era a pessoa que fazia esse desabafo. Acho importante enfatizar esse ponto, que poderia repetir a cada página com novos exemplos, só para vocês conceberem quantas vezes esse livro já foi reescrito de cabo e rabo nesses 21 anos.]

[**A definição de ideologia de Althusser está em seu ensaio Aparelhos Ideológicos de Estado, de 1970.]

[***“Ideology is best understood as the descriptive vocabulary of day-to-day existence through which people make rough sense of the social reality that they live and create from day to day. It is the language of consciousness that suits the particular way in which people deal with their fellows. It is the interpretation in thought of the social relations through which they constantly create and recreate their collective being, in all the varied forms their collective being may assume: family, clan, tribe, nation, class, party, business enterprise, church, army, club, and so on. As such, ideologies are not delusions but real, as real as the social relations for which they stand.” Em Racecraft: The Soul of Inequality in American Life, p.134, publicado em 2012.]

[****Hoje, vinte anos depois, Nate é chef executivo de um restaurante de comida cajun e creole, ou seja, as culinárias de Nova Orleans, em St Thomas, nas Ilhas Virgens. Também falei dele na 19ª prática, “Escolher agir com cuidado”, do meu livro Atenção. É um querido.]

* * *

O que é religião

O argumento desse meu texto é que ideologia e religião são a mesma coisa. Já vimos o que é ideologia. Vejamos agora o que é religião.

Para muitas pessoas, a resposta é simples: “crença em deuses”.

Mas e o budismo? O budismo não tem Deus. Será que o budismo não é religião? Talvez não seja mesmo. O budismo já foi definido como “sistema moral sem Deus”, “uma fé sem Deus”, “religião não-teísta”, “teoria da existência”, etc. O termo “budismo”, aliás, é uma invenção ocidental relativamente recente, menos de duzentos anos, elaborada especificamente para criar uma equivalência entre “aquilo” que se praticava na Ásia e outros “ismos” ocidentais, como judaísmo, cristianismo e islamismo. Por isso, evito usar esse termo.

Uma definição de “religião” um pouco mais aberta talvez cubra o budismo: segundo o antropólogo britânico E. B. Taylor, em 1871, religião seria a crença em “seres espirituais”, sejam eles budas ou bodisatvas, orixás ou fadas, Javé ou Afrodite.

Por outro lado, o que define uma religião talvez seja não uma crença em seres espirituais ou sobre-humanos, mas sim (de acordo com o sociólogo francês Émile Durkheim, em 1912) uma comunidade organizada em torno de um certo “sentido do sagrado”: um sentido de pertencimento a algo maior que seus membros individuais, algo que lhes sustenta, algo com que se identificam, algo que sanciona sua conduta.

Uma definição mais interessante, do historiador britânico Trevor Ling, em 1973, seria que religiões são “resíduos de civilização”:

Uma religião seria uma grande civilização que, em algum momento da Antiguidade, possuía uma teoria completa do ser humano, legislando o que deveria comer e o que deveria vestir, como casar e como enterrar os mortos, de onde viemos e para onde vamos, e, ao longo dos anos e dos séculos e dos milênios, teria gradualmente perdido suas dimensões políticas e econômicas, estéticas e nutricionais, etc e etc, transformadas em instâncias independentes, até que restariam apenas os aspectos teológicos e existenciais, éticos e sociais. Ou seja, o que hoje redutivamente chamamos de religião: um sistema institucionalizado e apolítico de conforto e salvação pessoais.

Finalmente, em 1997, escrevendo sobre o budismo como uma prática agnóstica, o escocês Stephen Batchelor fecha o círculo: concordando parcialmente com Ling, em 1973, que definia o budismo como “resíduo de civilização” e recuperando a definição de cultura de Taylor em 1871 (“o todo complexo que inclui conhecimento, fé, arte, moralidade, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”), Batchelor define o budismo como uma cultura, “uma cultura da iluminação”.

Então, recapitulando, religião pode ser (a) crença em seres superiores, espirituais ou sobrenaturais; (b) uma comunidade do sagrado; (c) o resíduo de uma civilização; (d) uma cultura.

A minha definição dá só um passinho mais além.*

[*As definições de religião vieram de E. B. Taylor, em Cultura primitiva (1871); Emile Durkheim, em Formas elementares de vida religiosa (1912); Trevor Ling, The Buddha. Buddhist civilization in India and Ceylon (1973); Stephen Batchelor, Budismo sem crenças (1997).]

* * *

Religião é ideologia

A religião é uma ideologia. A religião é a ideologia. Religião é ideologia, ideologia é religião.

A palavra “religião” tem em si o conceito de “re-ligar”, ou seja, de reestabelecer uma conexão: teoricamente com um Deus ou deuses, mas não só.

Se a religião é a narrativa ou o método que inventamos para suprir o nosso anseio de nos reconectarmos ao sagrado, à natureza, ao universo, à realidade, então essa definição, com poucos ajustes, também poderia se aplicar à ciência.

Em Cosmos, quando Carl Sagan diz que somos feitos de matéria estelar ou que, para fazermos uma torta de maçã, é necessário primeiro criar o universo, um calafrio se espalha por meu corpo, meus olhos se enchem de lágrimas e, sim, eu sinto profundamente conectado ao sagrado, à natureza, à realidade.

Nossa religião/ideologia, portanto, é o conjunto de ideias, saberes, preconceitos, etc, que nos permite interagir com as outras pessoas e fazer sentido da realidade: são as lentes através das quais percebemos o mundo.

Tanto a tecnofilia-urbana dos meus quinze anos quanto o esquerdismo-budista dos meus quarenta, tanto o arcaísmo-rural da minha empregada quanto o liberalismo-libertário do meu colega de casa, são religiões no altar das quais rezamos; são ideologias que geram representações distorcidas (e como não seriam?) da realidade; são conjuntos de ideias e saberes que conferem sentido à nossa realidade social e que formam a linguagem da consciência do nosso cotidiano.

* * *

Todas as pessoas, incluindo eu e você, apreendem o universo através das lentes de suas ideologias, gerando assim uma imagem distorcida da realidade. Essa imagem é distorcida não porque essas ideologias são falhas ou defeituosas (embora com certeza sejam, pois todas são), mas porque nossos sentidos e nossa cognição são inerentemente falhos e limitados.

Nada disso quer dizer que todas as ideologias sejam iguais, ou que, digamos, viver sua vida de acordo com o criacionismo “está no mesmo nível” que viver sua vida de acordo com o método científico, mas sim que, como estamos todas imersas em nossas próprias ideologias, não temos como avaliá-las ou compará-las criticamente.

Quem enxerga a realidade através de uma ideologia criacionista sempre vai considerar, por definição, que essa ideologia é melhor do que enxergar a realidade através da ideologia do método científico. E o oposto, naturalmente, também é verdadeiro.

O método científico, enquanto conjunto de saberes e técnicas para compreensão da realidade (aliás, extremamente bem-sucedido), pode ser usado para provar e desprovar qualquer teoria científica, mas não poderá jamais ser usado para provar ou desprovar a si mesmo, ou as próprias premissas que lhe fundamentam.*

Portanto, não existe, nem seria possível existir, essa tal pessoa a-ideológica que não apreende a realidade através de nenhuma ideologia. Quem se diz acima de ideologias está mentindo: ou para as outras pessoas, ou para si mesma, ou ambos.

[*Para quem não gostou de ver “método científico” incluído na lista de ideologias/religiões, recomendo ler o clássico A estrutura das revoluções científicas, escrito em 1962 por Thomas Kuhn, que ilustra bem essa paradoxal ideologia do progresso científico.]

* * *

A aposta de Pascal e o deus polinésio

Um dos mais famosos argumentos em prol da existência do Deus cristão é a “aposta de Pascal”, elaborada no século XVII e debatida por matemáticos e teólogos, filósofos e estatísticos até hoje.*

Segundo o pensador francês Blaise Pascal, mesmo quem não tem fé deveria fazer a “aposta” de presumir que o Deus cristão existe e, consequentemente, de viver como se existisse. Assim, se você morrer e ele não existir, você não perdeu nada. (Não tem como ser um herege contra o universo aleatório!) Mas, se existir, você ganhou a salvação eterna e não o inferno.

Paradoxalmente, Pascal, que era físico e matemático, desenvolve esse argumento especificamente para pessoas como ele, lógicas e racionais, que tinham dificuldade em se deixar levar pela fé. Então, a aposta de Pascal, para seu autor, é um argumento lógico e racional para trazer à fé pessoas que teriam tendência à descrença.

Existem vários argumentos contrários à aposta de Pascal.

Em primeiro lugar, ele não considera que “viver como se Deus existisse” tem um custo enorme: coisas que não posso comer, pessoas com quem não posso transar, dias nos quais não posso trabalhar, etc.

E, em segundo lugar, que a decisão não é entre acreditar ou não acreditar no Deus cristão mas sim acreditar ou não… em qual Deus?

Afinal, talvez eu aposte no Deus cristão e viva toda a minha vida seguindo suas regras… só para descobrir, após a morte, que a aposta correta teria sido no deus de alguma pequena comunidade polinésia. E, pior, que o deus polinésio ainda deixava transar fora do casamento e comer carne de porco à vontade!**

* * *

O escritor Luis Fernando Veríssimo, ateu convicto, disse uma vez invejar as pessoas religiosas, pois viveriam em um universo muito mais interessante e colorido.

Em uma de suas crônicas, ele narra sua própria chegada à Banca Examinadora da Vida Eterna, onde será decidido se vai para o céu ou para o inferno. O presidente da banca começa a analisar seus papéis e comenta, com ar de reprovação:

− A sua ficha é péssima, Sr Veríssimo. No dia 22 de agosto de 1940, enquanto sua mãe chamava para o almoço, você estava tirando meleca atrás da porta.

A plateia faz um “oh” de espanto e indignação.

− No dia 17 de março de 1945, você ligou o chuveiro com toda a força para pensarem que estava no banho, mas ficou sentado na privada lendo gibi. E foi para a mesa com as unhas sujas.

Ouvem-se gritos de “escândalo!” e “ignomínia!”

− 21 de outubro, 1950. Não escovou os dentes!

Na platéia, há desmaios e corre-corres. Veríssimo tenta se defender e diz que nunca cometeu os grandes pecados, apenas esses banais, no que o Presidente grita, indignado:

− Banais?!

Diante de tanto absurdo, os anjos já não conseguem mais conter a multidão exaltada e Veríssimo é cercado por almas esbravejantes. Entre eles, reconhece Adolf Hitler, de camisolão branco:

− E este aqui? Ele matou milhões, é o responsável pela morte de milhões de velhos e crianças!

− E quem foi que disse que é pecado matar velho e criança? Olhe as unhas dele. São impecáveis!***

* * *

Pascal estava certo em uma coisa: para algumas pessoas é de fato muito difícil acreditar em Deus. Tão difícil como seria para outras não acreditar em Deus.

A gente não acredita no que desejaria acreditar. A gente não acredita no que é logicamente dedutível. A gente não acredita nas evidências dos nossos sentidos.

A gente acredita no que pode, do jeito que dá, segundo as limitações da nossa biografia, da nossa educação, do nosso temperamento.

* * *

Enquanto isso, a crônica ensina outra lição importante: afinal, será que realmente sabemos quais são os critérios de Deus, ou, indo mais longe, quais são as regras do sagrado, quais são as leis que regem o universo?

A única maneira de transcender o controle que nossa própria ideologia exerce sobre nós é cultivando sempre uma postura de não-conhecimento.

[*A “aposta de Pascal” está na seção 233 do seu livro póstumo Pensamentos, de 1669.]

[**Tantos e tantos séculos de debate lógico e teológico e é forçoso admitir que a melhor e mais demolidora resposta à aposta de Pascal está no vídeo “Deus”, lançado pelo Porta dos Fundos em 21 de março de 2013.]

[***O título dessa crônica é “Pesadelo” e foi publicada no Jornal do Brasil em 27 de junho de 1976. Como eu certamente não lia o Jornal do Brasil em junho de 1976, imagino que deva ter sido reproduzida em algum de seus livros, mas tenho todos os livros do Veríssimo aqui em casa e não está em nenhum. Teria o Veríssimo republicado essa crônica seja no Jornal do Brasil ou na Veja na década de 1980? Teria sido incluída em alguma das primeiras edições e, depois, retirada? Quem souber, avise. Fiquei décadas citando essa crônica de memória até meu amigo Jaime Estupiñan conseguir encontrá-la no arquivo da Biblioteca Nacional. Muito obrigado, Jaime.]

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A admirável fé no absurdo

Em comparação às pessoas descrentes, a maioria das pessoas religiosas têm uma grande sabedoria: elas admitem que precisam acreditar em Deus. Que não conseguem imaginar um universo sem um Deus zelando por suas almas. Que viver seria insuportável sem esse conforto. Que não conseguem acreditar que nossa existência seja só isso, algo tão carnal, tão bestial. Que tem que haver algo mais. (Em outras palavras, que não acreditam que alguém tão incrível e complexa quanto elas, com tantos pensamentos únicos e emoções incríveis, esteja destinado à mesma morte e ao mesmo esquecimento que os peixes, as mariposas e os dodôs.)

Alguns kardecistas usam até um adesivo de para-choque bastante popular: “Reencarnação: Uma Questão de Justiça”. Em um universo aleatório e entrópico, onde as pessoas más rotineiramente alcançam sucesso e riquezas, e as boas continuam chafurdando na miséria, essas pessoas ainda assim têm uma fé inabalável, contra toda a evidência disponível em qualquer primeira página de jornal, que, sim!, conforme elas tanto desejam, o universo é justo! Praticamente a definição de wishful thinking.

A crença fundante dos kardecistas é a justiça. Para eles, é uma necessidade tão fundamental viver em um universo justo que estão dispostos a abrir mão da liberdade – “o acaso não existe: leia Kardec” – e, por óbvio, da racionalidade, em troca da certeza em uma meritocracia cósmica na qual tanto as pessoas pobres e deficientes, quanto as belas e milionárias estão vivendo as vidas que justamente mereceram, por mérito próprio – obtido se não nessa vida, pelo menos nas anteriores.

Nada mais humano do que ter fé que o universo seja como queremos. Nada mais humano do que ter fé de que esse universo, que manda tsunamis que matam cem mil pessoas de uma só vez, será carinhoso conosco e com as pessoas que amamos. Admiro a capacidade das pessoas religiosas de abraçarem essa contradição. Pois, como disse Kierkegaard, qualquer coisa que seja provável é algo que podemos quase saber, mas no qual é impossível acreditar. Só se pode realmente crer no Absurdo.*

[*A frase do dinamarquês Soren Kierkegaard sobre a fé no absurdo está em Pós-escrito final não-científico às migalhas filosóficas (1846). Tão sincrético que quase parece brasileiro, Kierkegaard conseguiu a façanha de ser não apenas cristão mas também o primeiro existencialista. É um dos pensadores mais ensandecidamente originais da história humana.]

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A falsa lógica da descrença

Enquanto isso, por outro lado, muitas pessoas descrentes gostam de se imaginar lógicas e racionais, pessoas que consideram as evidências empíricas disponíveis e tomam as únicas decisões cientificamente possíveis, sem estarem presas à fé emocional e ilógica das pessoas religiosas.

Para muitas delas, sua descrença é uma questão puramente científica, lógica, racional, empírica, objetiva. Não há provas diretas e observáveis da existência de Deus, logo não podemos afirmar que Deus exista. Simples assim. Lógico. Racional. (E ainda fica implícito: “Olha como somos o máximo!”)

Teoricamente, para essas pessoas descrentes, o modo como desejariam que fosse o universo não entra na equação da sua descrença. Elas responderiam:

− Não estamos falando do que desejamos ou não. Não estamos sendo prescritivas mas descritivas. Simplesmente não há provas da existência de Deus. Ponto.

Mas o episódio da água fervendo me fez questionar mais a fundo minha própria ideologia. A não-existência de Deus não é uma conclusão lógica e científica a que cheguei com base nas evidências empíricas disponíveis. Pra mim, ser uma pessoa descrente e não-teísta é uma necessidade existencial tão básica e profunda como a crença em reencarnação para as pessoas kardecistas.

Hoje em dia, a pergunta que faço às pessoas descrentes é:

− Ok, você não acredita que Deus exista, mas preferiria que existisse? Se pudesse escolher, preferiria viver em um universo regido pelo acaso e pela entropia, ou em um universo criado e mantido por um Deus consciente?

Faço essa pergunta há vinte anos. Quase todas as pessoas descrentes com quem já levantei a questão, depois de olhar profundamente dentro de si mesmas, depois de considerar suas próprias ideologias, acabam admitindo que, de fato, assim como eu, prefeririam que não existisse nenhum Deus

Ou seja, a ideologia através da qual apreendem o universo está baseada no mesmo wishful thinking da pessoa religiosa que diz que a reencarnação é questão de justiça: vivem no universo que consideram o mais desejável. Ocasionalmente, uma ou outra pessoa descrente confessa:

− Eu até gostaria de viver em um universo regido por um bom Deus, mas não consigo, simplesmente não consigo acreditar nisso!

Ou seja, como já se falou aqui, não acreditam no que querem e sim no que podem.

De um modo ou de outro, pessoas crentes e descrentes, estamos todas sempre presas às nossas próprias ideologias.

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Sou ateu porque preciso

Confesso: acredito viver no melhor universo possível.

Não suportaria existir em um universo regido por uma força divina misteriosa e caprichosa. Não suportaria saber que minha alma viverá eternamente, em eterno prazer ou eterno sofrimento, baseado no que fiz ou deixei de fazer nesses poucos anos terrenos, de acordo critérios inescrutáveis definidos por um ser para o qual sou menos que uma ameba.

Se existe Deus, então todos os esforços da humanidade para se entender e se auto-gerir, toda a ciência e toda a filosofia, de nada valem. Se existe Deus, então não existe ética ou moralidade: somente adequação ou não às regras impostas por essa divindade. Se existe Deus e temos o livre-arbítrio, então o arbítrio de livre não tem nada, é uma dádiva da qual só desfrutamos porque nos foi concedida e pode ser tirada tão facilmente quanto. Pior, é uma armadilha.

Se existe Deus, então a vida não tem nenhum sentido. Quem tem sentido é Deus e o nosso sentido provém dele. Não somos mais do que suas cobaias, manipuladas daqui pra lá, correndo como hamsters em rodinhas, ignorantes de seus verdadeiros propósitos. Ao seu bel-prazer, somos mortas, escravizadas, santificadas, até mesmo afogadas em massa, quando falha o experimento.

Se Deus não existe e o universo é aleatório e sem sentido, a humanidade está livre para criar, através de suas ações e de seus pensamentos, de suas obras e de suas vontades, dia a dia, século a século, o seu próprio sentido. Por outro lado, se Deus existe, o universo já tem sentido, um único sentido, o sentido que vem de Deus, o sentido que está dado, e só cabe a nós descobrir esse sentido e viver de acordo com ele. Se Deus existe, não há criação de sentido possível. Não temos como ressignificar o mundo, a humanidade, o cosmos. Não temos como dar sentido nem a um botão de rosa.

Para mim, esse sim é um universo no qual não valeria a pena nem sair da cama.

Talvez Deus realmente exista. Talvez sejamos todas somente marionetes em seu projeto cósmico. Mas, ainda assim, prefiro inverter a aposta de Pascal. Se não tenho a liberdade de dar sentido à minha vida, melhor então a ilusão da liberdade do que nada.

Sou ateu não por ter concluído, após cuidadosa análise das evidências empíricas, que não existe base factual para sustentar a existência de Deus. Sou ateu porque eu só poderia existir e funcionar como ser humano em um universo sem Deus. Sou ateu porque preciso.

O objetivo dessa subseção não é fazer uma defesa do ateísmo, mas exatamente o contrário, utilizar o meu ateísmo como exemplo do argumento central desse texto: A gente não acredita no que quer, a gente acredita no que pode. Não faz sentido nos sentirmos superiores a ninguém por conta da nossa ideologia.

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Existe contradição entre ser ateu e religioso?

Apesar de ateu, também me considero uma pessoa profundamente religiosa. O que pode parecer um paradoxo ou um contrassenso na verdade é um exemplo interessante do que é religião (um conceito muito mais amplo do que o cristianismo que nos é tão familiar) e, mais importante, de como não dá pra separar religião de política – porque a prática religiosa é necessariamente política.

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Meu caminho religioso

O zen-budismo mudou tudo na minha vida. O Livro das Prisões é zen-budista da primeira à última linha, mas não teria sido possível se a minha prática zen não fosse necessariamente engajada e politizada. Na verdade, este livro é resultado da síntese entre minha prática religiosa e meu engajamento político.

Em um primeiro momento, muitos anos atrás, foram essas questões de religião e de política que representaram meus dois maiores obstáculos mentais ao zen: meu agnosticismo e minha militância. *

O Budismo Secular, ao articular a possibilidade de um zen agnóstico e não-dogmático, removeu o primeiro obstáculo mental que me impedia de começar a prática. No Ocidente, graças à influência das religiões teístas, associamos a religião ao teísmo, ou seja, à crença em seres sobrenaturais, mas a verdade é que existem muitas religiões não-teístas. Hoje, tão agnóstico quanto sempre fui, pratico zen-budismo justamente porque essa prática não me pede para acreditar em nada, não me exige fé em nenhum dogma e é totalmente coerente com uma postura agnóstica perante a existência.

O Budismo Engajado, ao articular a possibilidade de um budismo politicamente atuante, removeu o segundo obstáculo mental que me impedia de começar a prática. Em todo lugar onde se instalou, o budismo se adaptou ao contexto local. No contexto de um ocidente greco-romano que inventou a declaração dos direitos do homem, surgiu o “budismo engajado”, um movimento que busca aliar a prática budista ao engajamento político no mundo.

Uma vez vencidas essas barreiras, pude mergulhar na prática religiosa zen-budista. Comecei a praticar em 2010 com o mestre Robert Livingston, do New Orleans Zen Temple; em 2016, fiz o Retiro de Testemunho em Auschwitz da Ordem dos Pacificadores Zen, com mestre Bernie Glassman; e fui ordenado em 2017, pelo monge Alcio Braz Eido Soho, responsável por Eininji — Templo do Cuidado Amoroso Eterno, em Copacabana. Ironicamente, poucos lugares são menos associados a práticas religiosas e contemplativas do que Nova Orleans (o templo ficava a um quarteirão do French Quarter) e Copacabana, mas, enfim, foi esse meu caminho: o zen no caos.

[*Se alguém pergunta se Deus existe, a pessoa atéia responde afirmando que “não” e a pessoa agnóstica ou diz que não sabe, ou que não se interessa, ou que a resposta é irrelevante. Eu, rebelde e do contra, sou temperamentalmente ateu, por óbvio, mas reconheço que afirmar a não-existência de Deus é uma posição filosoficamente insustentável. A verdade é que, dado que já decidi que vou viver minha vida como se Deus não existisse mesmo que me provassem sua existência, então, a resposta é que essa questão não importa, logo, sou agnóstico.]

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Religião: o que é, para que serve

Toda religião tem sua origem em uma grande civilização que, em algum momento da antiguidade, possuía uma teoria completa do ser humano, legislando o que deveria comer e o que deveria vestir, como casar e como enterrar os mortos, de onde viemos e para onde vamos. Então, ao longo dos anos e dos séculos e dos milênios, ela vai perdendo suas dimensões políticas e econômicas, estéticas e nutricionais, gradualmente transformadas em instâncias independentes, até que restam apenas os aspectos teológicos e existenciais, éticos e sociais. E chegamos assim àquilo que redutivamente chamamos de religião: um sistema institucionalizado e apolítico de conforto e salvação pessoais. Hoje, as ditas “religiões” ocupam um espaço cada vez menor em nossas vidas: são templos que visitamos uma vez por semana e onde juramos obedecer regras que esquecemos antes mesmo de chegar em casa.

Em pesquisas realizadas entre pessoas cristãs norte-americanas, “Deus ajuda quem ajuda a si mesmo” é frequentemente eleito “versículo favorito da Bíblia”: uma gigantesca maioria (lá pelos 80%, 90%) concorda com essa frase, acha que está na Bíblia e, mais ainda, que resume o espírito do livro sagrado. Naturalmente, além de não estar na Bíblia, esse talvez seja o conceito mais anticristão de todos os tempos.

Por outro lado, quando padres latino-americanos criaram a Teologia da Libertação, em uma tentativa de praticar valores mais próximos aos de fato ensinados por Jesus e de usar o cristianismo para combater a opressão, foram violentamente censurados e silenciados pelos papas João Paulo II e Bento XVI. (A Teologia da Libertação, diga-se de passagem, é uma das grandes ideias religiosas do século e uma poderosa contribuição original da América Latina ao pensamento cristão.)

Não estou criticando especialmente nem o cristianismo, nem as pessoas cristãs: usei esse exemplo apenas por ser mais próximo a nós. Sempre que uma religião é institucionalizada em uma área, grande parte das pessoas que a professam agem apenas por osmose, por comodismo, por inércia: devem haver tantos budistas de fim-de-semana na Tailândia quanto cristãs de fim-de-semana na Itália.

Mas qual é o sentido de uma religião que não informa, que não contextualiza, que não influencia nosso modo de pensar, de viver, de agir? Conheço pessoas que se dizem cristãs, mas ando com elas para cima e para baixo, por anos a fio, e nunca vejo cristianismo em nada do que fazem, nem na sua fala nem em suas atitudes, nem em sua moral nem em sua maneira de enxergar o mundo. E me pergunto: essas pessoas são cristãs como? Em que sentido? Onde guardam seu cristianismo?

Uma religião é uma visão de mundo e uma cosmogonia: minha religião influencia como me alimento e como me visto, como escrevo textos e como ouço pessoas. A religião, se for um chapéu que escolhemos usar ou não usar, dependendo do nosso estado de espírito, dependendo do clima lá fora, não é religião. Se a religião não arregaça a nossa vida pelo avesso, se não influencia quem somos e como agimos de uma maneira profunda e fundamental, então não é religião: é um hobby.

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Misturando religião e política

Assim como não tem como uma pessoa ser cristã só no domingo à noite e laica no resto da semana, também não tem como uma pessoa religiosa, cuja religião informa e influencia seu modo de agir e de pensar, ser eleita para cargo público e deixar sua religião lá fora, como se deixa um sobretudo na antessala.

A religião é um fenômeno social eminentemente político: seria tão inconcebível uma religião digna desse nome que não fosse também política que não acho nem possível nem desejável tirar a política da religião ou a religião da política. A questão é como gerenciar essa união. Quando se fala em Estado Laico, não se está falando em um Estado sem religiões, ou onde as pessoas agem como se não tivessem religiões, mas em um Estado que não tenha, ele mesmo, uma religião oficial que exerça hegemonia sobre as outras, um Estado que garanta que todas as religiões tenham voz, tenham espaço, tenham lugar.

Nesse sentido, o Templo Satânico, nos Estados Unidos, está realizando um dos mais importantes trabalhos em prol do Estado Laico: sempre que ele encontra uma instância do cristianismo ocupando um espaço público, ele exige que o espaço também seja ocupado pelo satanismo. Aí, das duas, uma: ou o Estado decide que nenhuma religião pode ocupar aquele espaço, por ser público, ou mais religiões passam a poder ocupá-lo, não apenas a cristã.

No Brasil, o problema não é existir uma bancada evangélica. O problema não é nem mesmo não existirem bancadas budistas e umbandistas — pois seriam sempre minoritárias. O problema são pessoas legisladoras tentarem impor os valores e as regras de suas religiões a todas as pessoas brasileiras de todas as diferentes religiões. (Um problema que não é nem um pouco limitado às pessoas que se elegem com bandeiras religiosas, aliás.)

Vale a pena lembrar que, em uma democracia constitucional, a maioria da população não pode impor seus valores e suas crenças sobre o resto das cidadãs. Se sou um senador budista e não como carne, não posso propor uma lei, que vai valer para todas as pessoas brasileiras, budistas ou não, impedindo-as todas de comer carne e usando como justificativa o fato de que Buda sugeriu que não comêssemos carne.

O desafio do Estado Laico é: dado que não é possível descalçarmos nossas religiões como quem descalça um chinelo, como agir politicamente enquanto pessoas religiosas sem impor nossa religião às outras cidadãs?

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O amor é político

Durante uma década, enquanto cursava mestrado e doutorado em literatura, todas as pessoas a minha volta eram muito inteligentes e politizadas, liam Foucault e Derrida, organizavam protestos e ansiavam por mudança. Esse era o meu mundo.

Mais tarde, abandonei o doutorado, voltei ao Brasil, comecei a praticar Zen.

A palavra religião vem do latim religare: pouco a pouco, a rotina do templo foi me reconectando à vida religiosa, a um linguajar religioso, a um modo religioso de pensar a vida, a sociedade, a política. Atualmente, as pessoas autoras que moldam meu pensamento são mais religiosas do que laicas, como Simone Weil e Agostinho de Hipona, Abraham Heschel e Franz Hinkelammert, David R. Loy e James R. Martin, Inácio de Loiola e Shantideva.

Para as pessoas de meu velho mundo acadêmico, o amor não era um tema válido, uma preocupação séria, uma prioridade política: pelo contrário, falar de amor era uma besteira, um capricho, uma bobagem. O amor, quando mencionado, era sempre amor romântico, amor alienado, amor cooptado:

“Crianças, crianças! Aqui, estamos falando de coisa séria, de mais-valia e de semiótica, de rizoma e de apropriação. Vão falar de amor lá fora, vão.”

Hoje, por outro lado, pratico e trabalho em um templo zen de Copacabana chamado Templo do Cuidado Amoroso Eterno, afiliado à Ordem dos Pacificadores Zen, ambas instituições atuantes no movimento do Budismo Engajado.

No templo ou na ordem, entre monges e ordenados, quando sentamos para resolver problemas e decidir questões, nossa preocupação é cuidar amorosamente umas das outras e de nossa comunidade.

Quanto mais leio e quanto mais reflito, quanto mais luto e quanto mais envelheço, mais percebo que falar de luta política e de mudança social sem falar de amor e de cuidado é inócuo, é vazio, é inconsequente. Da mesma maneira, falar de amor e de cuidado sem falar de luta política e de mudança social é pior que inócuo: é reacionário, é conservador, é conformista.

Por isso, depois de muito refletir, não me filiei a nenhum partido político e sim me ordenei Irmão em uma ordem zen. Depois de muitas andanças, escolhi transitar entre pessoas, inteligentes e politizadas, para quem o amor é uma prioridade política, um gesto transformador, uma atitude revolucionária. Esse hoje é o meu mundo.

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O absurdo da religião

Por mais que as pessoas pareçam iguais a nós, por mais que nós todas superficialmente sejamos parecidas umas com as outras, somos muito, muito diferentes, às vezes de maneiras insólitas, às vezes de maneiras incoerentes, o que não impede essas outras pessoas de serem incríveis e brilhantes, o que não nos impede de admirá-las e de aprender com elas.

Apesar de ateu, a religião é uma parte importante da minha vida. Vou ao meu templo todos os dias, onde inclusive me ordenei, sou voluntário em uma série de tarefas e doo parte da minha renda. A Bíblia é meu livro preferido, lido e relido. Hoje, considero que as melhores críticas ao capitalismo e à globalização são feitas por pensadoras religiosas, tanto a partir do budismo como do cristianismo. Ocasionalmente, vou à missa na igreja do meu bairro. Ainda assim, sempre fui, sou e continuo sendo ateu/agnóstico. A religião é fascinante, como fenômeno sociopolítico e literário, mas eu jamais conseguiria, nem quero, acreditar em um “grande amigo imaginário no céu”. A religião que pratico é não-teísta.

Dito isso, acontece comigo de vez em quando uma coisa engraçada. Estou lá, lendo algum livro de uma pensadora cristã, uma análise literária brilhante sobre a Bíblia, uma denúncia fortíssima da injustiça inerente ao capitalismo, pessoas brilhantes desenvolvendo argumentos contundentes e impecáveis, e eu tendo orgasminhos intelectuais… até que… Aparece uma referência a Satanás como se ele tivesse existência concreta, alguém cita exorcismo como método válido para resolver problemas, a homossexualidade e o aborto são considerados pecados autoevidentes, e eu tomo aquele súbito choque de realidade:

“Ah é, tinha esquecido. Para essa pessoa Sauron existe!”

Digo isso sem medo de parecer politicamente incorreto ou soar ofensivo. Em grande parte dos livros cristãos que leio, em especial os místicos, que são os meus preferidos, essa quebra fundamental, esse mistério divino, esse salto de fé, é um dado. Para Kierkegaard, o cristianismo só faz sentido se for um absurdo salto de fé. Para São João da Cruz, Deus nos isola em uma noite escura para, entre outras coisas, dar curto circuito em nossos processos mentais racionais e abrir caminho para o amor a Ele, etc.* O próprio padre Geovane, da igreja aqui do Largo do Machado, carioca nascido e criado na Favela da Maré, autor de sermões realmente muito bonitos e interessantes, sobre sermos menos egoístas, menos consumistas, menos acumuladores, etc, também é o único exorcista oficialmente em atividade no estado do Rio de Janeiro.

Enfim, falei muito para comunicar uma sensação bastante simples: por mais que as pessoas pareçam iguais a nós, por mais que nós todas superficialmente sejamos parecidas umas com as outras, somos muito, muito diferentes, às vezes de maneiras insólitas, às vezes de maneiras incoerentes, o que não impede essas outras pessoas de serem incríveis e brilhantes, o que não nos impede de admirá-las e de aprender com elas.

Perguntaram ao padre John Main porque ele tinha decidido se tornar monge e se internar em um mosteiro. A resposta: “Porque eu queria ser o mais livre possível.” Talvez eu também tenha sido infectado pela loucura, mas faz total sentido para mim.**

Quanto mais e mais conheço pessoas que dedicam suas vidas a idolatrar o deus-consumo, mais e mais respeito as pessoas que dedicam suas vidas a idolatrar os deuses de antigamente. Minhas amigas meio-intelectuais meio-de-esquerda gostam de fazer pouco de padres, esses adultos que fizeram voto de castidade e dedicam suas vidas a cumprir as pretensas vontades de seu amigo imaginário no céu. Mas, hoje em dia, me parece muito pior, muito mais infantil, muito mais indefensável, dedicarmos nossas vidas a fazer outras pessoas consumirem mais e mais produtos, em troca de salários com os quais compraremos mais e mais desses mesmos produtos.

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O meu tema principal é desconstruir o senso-comum. Muitas pessoas leitoras gostam muito de mim quando estou desconstruindo o senso comum das outras pessoas, das pessoas que elas não gostam, das pessoas de quem discordam. Um belo dia, porém, desconstruo alguma coisa do senso-comum delas e elas reclamam, me chama de radical, param de ler.

Mas se raramente aprendemos com as pessoas de quem discordamos de tudo — pois já lemos na defensiva, contra-argumentando, refutando — também raramente aprendemos com as pessoas com quem concordamos em tudo — porque é uma leitura confortável, que só confirma nossos próprios preconceitos.

As maiores oportunidades de aprendizado são quando, subitamente, discordamos de alguém de quem sempre tínhamos concordado. Pois essa é a hora da pane. Como pode essa pessoa que eu respeito tanto (afinal, ela concorda comigo em tudo!) falar um absurdo desses? Por um lado, talvez essa pessoa não mereça tanto respeito assim. Por outro lado, talvez esse absurdo não seja tão absurdo assim. Talvez ambos! De qualquer modo, seja qual for a conclusão, será sempre um importante momento de aprendizado, um momento de questionar certezas e de questionar gurus. Não desperdicem esses momentos.

[*Noite escura, de João da Cruz, sobre os percalços do caminho religioso, foi um dos livros mais importantes da minha vida, que me arregaçou do avesso.]

[**A citação está no livro Meditação cristã, publicado pela Paulus em 2016.]

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A religião é importante, mesmo para pessoas ateias

O ensaio “A Free Man’s Worship”, de Bertrand Russell, é um dos textos mais lindos e mais emocionantes que já li na vida. Esse ensaio explicou, para mim mesmo, porque tenho me dedicado tanto a temas religiosos e, por isso, sou imensamente grato:

“Que o homem é o produto de causas sem nenhum objetivo definido; que sua origem, seu crescimento, suas esperanças e medos, seus amores e suas crenças, são apenas o resultado da disposição acidental de átomos; que nenhum fogo, nenhum heroísmo, nenhuma intensidade de pensamento e sentimento, podem preservar a vida individual após a morte; que todos os trabalhos de eras, toda a devoção, toda a inspiração, todo o brilho do gênio humano, estão destinados à extinção na vasta morte do sistema solar, e que todo o templo das realizações do homem deve inevitavelmente ser enterrado debaixo dos escombros de um universo em ruínas — todas estas coisas, se não completamente fora de questão, são praticamente tão certas que nenhuma filosofia que as rejeite tem chance de prosperar. Apenas apoiada nestas verdades, sobre a base firme de um desespero irredutível, poderá a morada da alma ser construída de forma segura. Como, em um mundo tão estranho e desumano, pode uma criatura tão impotente quanto o homem manter íntegras suas aspirações? É um estranho mistério que a Natureza, onipotente, mas cega, nas revoluções de sua pressa secular através dos abismos do espaço, tenha acabado trazendo à luz uma criança, sujeita ainda ao seu poder, mas dotada de visão, do conhecimento do bem e do mal e de capacidade para julgar todas as obras de sua mãe irracional. Apesar da morte, a marca e o selo do controle parental, o homem é ainda livre, durante seus breves anos, para examinar, criticar, conhecer, e, em imaginação, criar. Apenas a ele, no mundo com o qual está familiarizado, essa liberdade pertence; e nisso reside sua superioridade às forças irresistíveis que controlam sua vida exterior. … Mas o mundo dos fatos, afinal, não é bom; e, na submissão do nosso julgamento a ele, há um elemento de servilismo de que nossos pensamentos devem ser purgados. Pois em todas as coisas é bom exaltar a dignidade do homem, liberando-o tanto quanto possível da tirania das forças não-humanas. Quando percebermos que o poder é em grande parte malévolo, que o homem, com o seu conhecimento do bem e do mal, é apenas um átomo impotente em um mundo que não tem tal conhecimento, a escolha é novamente apresentada a nós: adoraremos a força, ou a bondade? Nosso Deus existe e é mau, ou devemos reconhecê-lo como criação de nossa própria consciência? … Abandonar a luta pela felicidade individual, expulsar toda a ânsia por satisfazer desejos efêmeros, arder de paixão somente pelo eterno — isso é emancipação, e essa é a prática religiosa do homem livre. … A única coisa que pode derrotar o Destino em seu próprio jogo é uma mente humana concentrada apenas naquilo que não pode ser purgado pelo fogo purificador do Tempo.”*

[*“That Man is the product of causes which had no prevision of the end they were achieving; that his origin, his growth, his hopes and fears, his loves and his beliefs, are but the outcome of accidental collocations of atoms; that no fire, no heroism, no intensity of thought and feeling, can preserve an individual life beyond the grave; that all the labours of the ages, all the devotion, all the inspiration, all the noonday brightness of human genius, are destined to extinction in the vast death of the solar system, and that the whole temple of Man’s achievement must inevitably be buried beneath the debris of a universe in ruins—all these things, if not quite beyond dispute, are yet so nearly certain, that no philosophy which rejects them can hope to stand. Only within the scaffolding of these truths, only on the firm foundation of unyielding despair, can the soul’s habitation henceforth be safely built. How, in such an alien and inhuman world, can so powerless a creature as Man preserve his aspirations untarnished? A strange mystery it is that Nature, omnipotent but blind, in the revolutions of her secular hurryings through the abysses of space, has brought forth at last a child, subject still to her power, but gifted with sight, with knowledge of good and evil, with the capacity of judging all the works of his unthinking Mother. In spite of Death, the mark and seal of the parental control, Man is yet free, during his brief years, to examine, to criticise, to know, and in imagination to create. To him alone, in the world with which he is acquainted, this freedom belongs; and in this lies his superiority to the resistless forces that control his outward life. … But the world of fact, after all, is not good; and, in submitting our judgment to it, there is an element of slavishness from which our thoughts must be purged. For in all things it is well to exalt the dignity of Man, by freeing him as far as possible from the tyranny of non-human Power. When we have realised that Power is largely bad, that man, with his knowledge of good and evil, is but a helpless atom in a world which has no such knowledge, the choice is again presented to us: Shall we worship Force, or shall we worship Goodness? Shall our God exist and be evil, or shall he be recognised as the creation of our own conscience? … To abandon the struggle for private happiness, to expel all eagerness of temporary desire, to burn with passion for eternal things—this is emancipation, and this is the free man’s worship. And this liberation is effected by a contemplation of Fate; for Fate itself is subdued by the mind which leaves nothing to be purged by the purifying fire of Time.”]

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A religião do consumo*

Já vimos como as grandes civilizações do passado, com sua pretensão de organizar toda a experiência humana, acabaram se tornando uma sombra do que já foram.

Hoje, as ditas “religiões” ocupam um espaço cada vez menor em nossas vidas: são templos que visitamos uma vez por semana e onde juramos obedecer regras que esquecemos antes mesmo de chegar em casa. (Qual é a pessoa religiosa hoje que, de fato, vive sua vida, em todos os momentos, de acordo com as regras da sua religião?)

Temos novas religiões, porém, que também tentam explicar, organizar, prescrever toda a atividade humana: marxismo, , método científico, biologia evolutiva, para citar as que me despertam mais simpatia.

Reiterando: nesse texto, as palavras “ideologia” e “religião”, além de serem usadas como sinônimos, não têm uma conotação negativa. Ou seja, chamar o método científico de ideologia não é, de modo algum, uma crítica.

Entretanto, se ideologia não é algo negativo por definição, isso não quer dizer que não existam ideologias nocivas.

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A sociedade humana é um projeto de imortalidade coletiva, escreveu o antropólogo norte-americano Ernest Becker, em 1975**. Criamos comunidades, produzimos arte, fundamos instituições, oramos a Deus, porque temos um irreprimível e incontrolável medo de nossa própria morte.***

A partir do fim da Idade Média, o pensamento racional iluminista conseguiu minar nossa confiança nas velhas narrativas sobrenaturais que nos sustentavam, mas sem conseguir produzir nenhuma outra teoria igualmente abrangente ou satisfatória. Ficamos com um vazio dentro de nós.

A História da Humanidade nos últimos séculos é a narrativa de uma busca progressivamente mais desesperada para preencher esse vazio com qualquer ideologia que nos forneça algum alívio, do fascismo ao anarquismo, da psicanálise à tecnofilia, do hedonismo à militância política, do marxismo ao liberalismo, do nudismo ao escotismo. Por enquanto, a religião vitoriosa, de lavada, está sendo o consumismo.

A força cooptadora do deus-consumo é impressionante. Ele conseguiu nos convencer, entre outras coisas, que podemos salvar o mundo pelo consumo consciente.

Então, continuamos hiperconsumindo loucamente, mas agora são bananas orgânicas fair-trade e ovos free-range, atum dolphin-free e palmito de reflorestagem, cada produto sempre com uma longa e inspiradora história na embalagem, sobre a família que planta aquele café na encosta da mesma montanha há três gerações, blá blá blá, e, pior, pagamos preços obscenamente inflacionados e ainda ficamos felizes e plenas, satisfeitas de estar contribuindo para salvar o mundo! Ou seja, como brincou o filósofo esloveno Slavoj Zizek, em 2009, temos o prazer de comprar o produto e ainda compramos junto a redenção de nossa culpa consumista.****

No Brasil de 2015, um governo de esquerda prega o desenvolvimentismo econômico; promove o Bolsa-Família no mérito de gerar mais consumo; abaixa os impostos para aumentar a produção industrial, especialmente de automóveis; desaloja comunidades indígenas para fornecer mais energia para essa tal indústria que vai crescer em função do maior consumo, gerando assim um ciclo interminável de mais consumo e mais crescimento gerando ainda mais consumo e ainda mais crescimento.

Será essa a única saída? Será que a única maneira de ajudar nossas pessoas cidadãs em situação mais economicamente vulnerável é trazendo-as ao mesmo circo de consumo que já está destruindo o planeta?

A pobreza nunca será eliminada gerando mais e mais desejos para serem satisfeitos pelo consumo de mais e mais bens e serviços. Mesmo se o consumismo conseguir eliminar a pobreza material, ele terá apenas criado uma pobreza existencial grave, profunda, aguda.

Quando nos definimos e somos definidas como “consumidoras” estamos nos colocando em uma situação insustentável, porque o consumo nunca preencherá a necessidade que ele mesmo cria: o produto que fatalmente nos fará felizes é sempre o próximo que ainda não compramos.

Ninguém questiona a necessidade de trazer condições de vida dignas a todas as pessoas. Mas qual é o limite entre, de um lado, urbanização, saneamento básico, cultura, saúde e educação… e, do outro lado, ter acesso ao novo iTralha e a cem serviços de streaming?

Seria obsceno uma pessoa privilegiada como eu pontificar a pessoas recém-saídas da pobreza sobre o que devem ou não consumir. Mas eu interpelo sim, em primeiro lugar, o governo, que está conscientemente implementando políticas públicas para promover um consumo desenfreado (por que estimular a produção de automóveis, e não de bicicletas, por exemplo?), e, interpelo também, outras pessoas privilegiadas como eu, que dão o tom do consumismo desenfreado da nossa sociedade.

Em minha vida, adotei a simplicidade voluntária. Não porque acho que assim vou salvar o mundo, mas simplesmente porque isso simplifica a minha vida e, assim, libera meu tempo e minha energia para melhor lutar por outras mudanças sociais. Além disso, uma postura de simplicidade voluntária também dá o exemplo para outras pessoas privilegiadas: sim, é possível viver sem carro, sem celular, sem internet em casa, sem comprar roupa, sem comer fora.

Conseguir tudo o que desejamos (um novo carro, um novo iPorra, um novo marido, etc) gera apenas mais e mais novos desejos infinitos. Buscar pela melhor maneira de preencher nosso vazio (com mais consumo, mais ego, mais sucesso, mais ascetismo, mais religião, mais sexo, mais livros publicados, mais curtidas nos meus stories, etc) apenas faz com que pulemos de alternativa em alternativa, em uma infinita insatisfação. Se o buraco não tem fundo, tentar preenchê-lo não resolve. Talvez a solução seja simplesmente aprendermos a conviver em paz com esse vazio que define a condição humana.*****

[*Essa subseção deve muito, e parafraseia bastante, o livro The great awakening (2003), de David R. Loy, em especial os capítulos I e II, “Buddhist social theory?” e “Buddhism and poverty”. Loy é daquelas pessoas com quem concordo com cada palavra. Também recomendo ler A Buddhist history of the West: studies in lack (2002), Money, sex, war, karma: notes for a Buddhist revolution (2008) e A new Buddhist path: enlightenment, evolution, and ethics in the modern world (2015).]

[**Ernst Becker diz que a sociedade é um projeto de imortalidade coletiva em seu genial Escape from evil, de 1975. Becker revisou esse livro em seu leito de morte, já estava morto quando foi publicado e ainda está aqui, conversando conosco, mais vivo do que nunca.]

[***Em meu livro Atenção., temos uma prática voltada unicamente para a morte, a 16ª, “Reconhecer a morte”.]

[****A tirada de Zizek está em Primeiro como tragédia, depois como farsa (2009).]

[*****Vamos explorar mais esses temas nas Prisões Autossuficiência e Liberdade.]

* * *

O meu problema com coaches

Vivemos em um mundo cada vez mais secularizado, onde os velhos deuses de antigamente não tem mais poder.

A psicologia, sob muitos aspectos, só poderia realmente surgir nesse mundo: os seus problemas e o seu campo de atuação eram os da antiga teologia e ela só pode surgir quando a teologia perde sua autoridade. Não é à toa que todo o vocabulário e atuação da psicologia é tão próximo ao da teologia: o “complexo de Édipo” nada mais é do que o conceito do “pecado original” remasterizado para uma plateia secular.* Portanto, em um mundo onde já existia esse instável mix <teologia+ciência/medicina=psicologia> era quase inevitável que surgisse o <teologia+marketing=coaching>.

Não questiono a sinceridade de muitas coaches. Algumas das pessoas que mais amo e admiro na vida, como a Paula Abreu, são coaches, e eu sei, por conhecê-las bem e por conviver com elas, que têm uma verdadeira paixão por esse simples “ajudar as outras pessoas”.** O problema é que é muito difícil ajudar de forma ética as outras pessoas nesse mundo secularizado, onde todas precisamos pagar nossas contas.

Sempre existiram coaches, mas, antigamente, as pessoas que sentiam essa paixão por ajudar entravam para a religião mais próxima, tornavam-se sacerdotes e, dessa maneira, davam apoio e acolhimento às suas comunidades, que, em troca, as sustentavam através de doações voluntárias. (Ou seja, seu sustento estava garantido.) Hoje, as pessoas com essa paixão por “ajudar” não se sentem mais atraídas pela religião e, da mesma maneira, as pessoas buscando ajuda também não procuram tanto a religião. Então, o que fazer? Como ajudar e, ao mesmo tempo, pagar as contas? (Naturalmente, estou falando, a grosso modo, da bolha à qual pertencemos eu e a maioria das minhas pessoas leitoras, que eu chamo carinhosamente de “burguesas-odara do eixo Morumbi-Leblon”: no enorme mundo lá fora, a religião só faz crescer.)

Uma opção, naturalmente, ainda é tornar-se sacerdote: padre, pastor, lama, babalorixá, roshi, rabino, etc. Mas essa opção, além de impalatável para nossos pudores seculares, ainda dá muito trabalho. (Sabe quanto tempo demora para se tornar qualquer uma dessas coisas?) Outra opção é entrar em algumas carreiras específicas como Serviço Social, ou entrar em qualquer carreira, como Direito, Medicina, Enfermagem e Administração, e fazer a opção pelo serviço social. (Existem médicas que, por ideologia, se recusam a trabalhar para a Medicina Privada, etc.) A mais recente opção é tornar-se coach.

Mais uma vez, tenho toda a simpatia do mundo pelas pessoas que escolhem essa opção: até palavra em contrário, presumo a boa-fé de todas. O problema é prático. A única maneira de uma pessoa efetivamente ajudar as pessoas e, ao mesmo tempo, se sustentar sendo coach é fazendo um marketing violento. E marketing, basicamente, é um conjunto de técnicas codificadas de manipulação mental, de lavagem cerebral desavergonhada para convencer pessoas da existência de um vazio que será preenchido com o seu produto ou serviço. E eu não sei o quão ético é usar essas técnicas – mesmo que seja sinceramente com o objetivo de atrair mais pessoas para serem ajudadas (o que quer que ajudadas queira dizer).

Eu mesmo uso algumas. Em meus encontros, aceito pagamentos de qualquer valor, inclusive nada, e nunca recusei ninguém, mas, ao invés de não falar nada e deixar o pagamento a cargo de cada pessoa, sempre menciono um preço sugerido, porque o fenômeno mental da ancoragem diz que, uma vez dito um número, a maioria das pessoas vai se fixar nele. (E também, claro, porque me parece um valor justo para o serviço oferecido.) Da mesma maneira, usando o gatilho mental da escassez, eu sempre enfatizo quando as vagas de um encontro estão acabando e quando não vão haver outros encontros por muitos meses. (Naturalmente, é tudo verdade, especialmente o fato de estar sempre pensando e considerando acabar com os encontros, justamente porque essas técnicas me enojam um pouquinho. Se olharem as datas dos meus encontros, as vezes existem hiatos de até um ano. Escrevo em 2023 e meu último encontro presencial foi no primeiro semestre de 2019.) Naturalmente, se entrarem em qualquer página de qualquer coach, essas duas técnicas quase-inocentes serão o mínimo atirado em uma saraivada contra vocês.

Esse é o meu problema: mesmo presumindo somente boas intenções por parte das coaches, o comercialismo crasso me repele. Por isso, em meus encontros, gratuidades são sempre bem-vindas e cada pessoa paga somente o que desejar – sem isso, não faria sentido. Por isso, evito fazer propaganda agressiva. Por isso, me ordenei Irmão em um templo zen. Porque, cada vez mais, apesar de continuar tão ateu como sempre, acho que tem algumas coisas que a religião talvez faça melhor do que métodos seculares. Se uma pessoa estiver entre entregar as rédeas da sua vida a um coach ou a um sacerdote, e perguntar minha opinião, eu hoje recomendaria o sacerdote. Ou melhor, talvez uma terceira opção:

  • 1. Separe o dinheiro que você daria a uma coach.
  • 2. Dê esse dinheiro para algum projeto social que beneficie pessoas realmente necessitadas.
  • 3. Se envolva ativamente no projeto e conheça as pessoas cujas vidas estão sendo transformadas pelo seu dinheiro.
  • 4. Permita que a transformação da vida dessas pessoas também transforme sua vida.
  • 5. Saia do processo uma pessoa mais aberta, mais generosa, mais confiante.
  • 6. Repita.

[*Existem dezenas de estudos sobre a ligação teologia-psicologia. O meu preferido é Por que Freud errou: pecado, ciência e psicanálise, de Richard Webster, publicado no Brasil em 1995.]

[**Da Paula Abreu, recomendo todos os livros, em especial Escolha sua vida, de 2013. Há pouco tempo, ela literalmente descobriu Jesus e se jogou em uma aventura religiosa com a mesma intensidade e sinceridade com a qual ela faz tudo. Não é necessário acreditar em Deus ou em Jesus – eu não acredito – para admirar o modo como uma pessoa como a Paula vive a própria vida e constrói seu próprio caminho.]

* * *

Transcendendo nossa ideologia*

O grau de controle de nossa ideologia sobre nós é diretamente proporcional ao nosso narcisismo e autocentramento.

Por definição, é impossível não enxergarmos o mundo através de nossa ideologia. Estamos todas funcionando dentro de nossas pequenas prisões mentais, quase incapazes de enxergar por fora das grades.

Entretanto, quanto mais egocêntricas e autocentradas, mais aferradas estaremos à nossa própria ideologia e mais difícil será enxergarmos o mundo através e além das barras da nossa prisão. Mais difícil será até mesmo apreendermos a existência de qualquer fato, evento, pessoa, ideia que coloque em risco, questione, critique, interpele nossa religião.

A única maneira de lutar contra isso é ativamente cultivando uma postura de não-conhecimento. No momento em que nos colocamos na posição de pessoas-que-sabem, estamos em um beco sem saída. Protegidas no castelo do nosso conhecimento, atrás das muralhas da nossa sabedoria, paramos de ouvir, paramos de enxergar.

Quanto mais sabemos, menos empáticos e flexíveis seremos.

Quem sabe não ouve, nem enxerga: quem sabe ensina e aconselha.

Então, uma solução possível e imperfeita para conseguirmos enxergar além das barras da prisão da nossa ideologia é desapegarmos do nosso conhecimento. Não jogar fora tudo aquilo que sabemos, mas jogar fora nosso apego por tudo aquilo que sabemos.

[*Essa subseção deve muito ao mestre zen Bernie Glassman e ao seu trabalho de vida, em especial o livro Bearing Witness: A Zen Master’s Lessons in Making Peace (1997). Um dos votos de sua ordem, dos pacificadores zen, é exercer o não-conhecimento.]

* * *

Conclusão

Ao interpelar nosso conhecimento, verdades desagradáveis podem surgir. Afinal, de onde veio nosso conhecimento? A quem ele realmente pertence? Como sabemos o que sabemos? Será que realmente sabemos o que sabemos?

Esse, naturalmente, é o tema da Prisão Verdade. Ambas, Prisão Verdade e Prisão Religião, além de serem o começo incontornável do nosso percurso pelas Prisões, também formam um círculo perfeito em si mesmas, apontando uma para a outra.

Agora, vamos sair desse círculo e falar de classe e privilégio, capital cultural e preconceito lingüístico.

Pois nossas verdades, certezas e ideologias são largamente pautadas por nossa classe social: ela determina nossa visão de mundo, normaliza nossos privilégios e nos impede de enxergar tudo o que vem das classes que consideramos inferiores. O que estamos deixando de enxergarmos por estarmos limitadas pela Prisão Classe?

* * *

Fim da Prisão Religião.

Próxima Prisão: Prisão Classe.

* * *

O Curso das Prisões

Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.

Curso em resumo

Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. De 29 de janeiro a 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursosCompre agora.

O que são As Prisões

As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.

O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.

Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.

Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

Funcionamento

Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.

Cada mês será dedicado a uma Prisão.

No 1º domingo do mês, às 17h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.

Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.

Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.

Aulas gravadas indefinidamente

A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.

Sem leituras

O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.

Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.

Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.

Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões

Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.

Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São Paulo.

Meus votos zen-budistas

Pratico zen budismo há mais de dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.

Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.

Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.

Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.

Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

Compre

O Curso das Prisões é exclusivo para as mecenas dos planos CURSOS ou MIDAS do meu Apoia-se.

Para fazer o curso completo (11 aulas expositivas + 11 encontros livres + grupo no Facebook + grupo de Whatsapp):

  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).

Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br

Dúvidas

Somente por email: eu@alexcastro.com.br

Aulas em resumo

Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.

  1. Verdade (fevereiro)
  2. Religião (março)
  3. Classe (abril)
  4. Patriotismo (maio)
  5. Respeito (junho)
  6. Trabalho (julho)
  7. Autossuficiência (agosto)
  8. Monogamia (setembro)
  9. Liberdade (outubro)
  10. Felicidade (novembro)
  11. Empatia (dezembro)

As inscrições para o Curso das Prisões estão abertas: é só fazer o plano CURSOS no meu Apoia-se.

4 respostas em “Prisão Religião”

É possível viver sem crer em algum Deus? Se os deuses cristãos e de outras civilizações já não são mais cultuados pela parcela culta e educada da sociedade, não estarão essas pessoas cultuando outros deuses?
Esse parágrafo seu me chamou atenção: “Quanto mais e mais conheço pessoas que dedicam suas vidas a idolatrar o deus-consumo, mais e mais respeito as pessoas que dedicam suas vidas a idolatrar os deuses de antigamente. Minhas amigas meio-intelectuais meio-de-esquerda gostam de fazer pouco de padres, esses adultos que fizeram voto de castidade e dedicam suas vidas a cumprir as pretensas vontades de seu amigo imaginário no céu. Mas, hoje em dia, me parece muito pior, muito mais infantil, muito mais indefensável, dedicarmos nossas vidas a fazer outras pessoas consumirem mais e mais produtos, em troca de salários com os quais compraremos mais e mais desses mesmos produtos.”
Tem o Deus-consumo, o Deus-identidade, o Deus-ciência, tem vários Deuses contemporâneos que sinto que substituiram em parte os Deuses antigos. As pessoas arrumam outros aspectos (agora humanos ou criados diretamente pelos homens) para cultuar. Essas coisas se tornam inquestionáveis.

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