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Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga

Síntese ótima de todas as correntes literárias do século XVIII. Brasileira na sua essência, encalacrada no grande mito nacional. Talvez nosso maior poema. Leitura obrigatória FUVEST 2024, 2025 e 2026.

Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga, publicado em 1792, provavelmente é o segundo livro de poesia mais lido, mais vendido, mais querido da língua portuguesa, perdendo apenas para Os Lusíadas. (Muita gente repete essa afirmação, sem referências nem provas, mas a verdade é: quem mais seria? Nenhum outro livro chega nem perto.)

Obra fundadora da literatura brasileira, primeira a ser escrita aqui, por nós, para nós, dentro do nosso sistema literário local, também foi a primeira a ser traduzida para várias línguas (o próprio Puchkin traduziu um trecho para o russo) e é a única a ter uma cidade batizada em sua homenagem: Marília, em São Paulo. Até hoje, continua lida, popular, importante: é leitura obrigatória da FUVEST para 2024, 2025 e 2026.

Na aula em vídeo acima, de três horas de duração, eu apresento:

1. o contexto cultural do poema, ou seja, a crise européia do século XVIII, onde movimentos como Iluminismo, Arcadismo, Rococó e Neoclassicismo fazem frente ao Barroco e acabam abrindo caminho ao Romantismo;

2. a importância de Marília de Dirceu como obra fundadora da literatura brasileira;

3. uma leitura do poema, enfatizando as múltiplas identidades do autor/narrador Gonzaga/Dirceu.

Todo mês, na segunda quarta-feira, dou uma aula de literatura ou de História para as pessoas mecenas do meu Apoia-se. Essa foi a aula de janeiro de 2023. As aulas são exclusivas para apoiadoras mas, como serviço de utilidade pública às estudantes tentando passar no Vestibular, está publicada de forma aberta e gratuita. Se você gostou, se foi útil, por favor, considere fazer uma contribuição em dinheiro: é disso que eu vivo e você estará me ajudando a dar outras aulas para outras pessoas.

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No texto abaixo, a apresentação resumida de alguns dos temas desenvolvidos na aula.

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O século XVIII: Luzes e crises, Razão e Revolução

Na Europa do século XVI, o Renascimento recupera os cânones da Antiguidade, revaloriza a natureza, ensaia uma idéia de progresso. No século seguinte, o XVII, afundada em guerras religiosas e desiludida em suas maiores esperanças, a Europa mergulha no Barroco, a ressaca moral da Renascença.

Já o século XVIII pode ser considerado uma reação ao pessimismo barroco e uma tentativa de recuperar e consolidar os valores renascentistas da Natureza e da Razão. É o grande século francês: o século das luzes, do Iluminismo, da Enciclopédia, de Rousseau e de Voltaire, da Revolução Francesa. É o século onde a burguesia finalmente triunfa sobre a Nobreza e o Clero, e impõe seus valores de progresso, trabalho, disciplina, razão, moderação. É o século onde a arte se torna tão racional e tão didática ao ponto de quase se tornar uma antiarte.

Finalmente, a vitória burguesa é tão completa que, no século seguinte, o XIX, o século burguês por excelência, a grande Arte criada em reação a ela será o romantismo antiburguês, que defende tudo que a burguesia mais detesta: o exagero, a intensidade, o horror.

O século XVIII portanto é uma grande encruzilhada de estilos, escolas, idéias. O velho Barroco, reação ao Renascimento, ainda existe, grandioso e grotesco, mas combalido. Os valores do Renascimento, em uma breve sobrevida, animam novos movimentos que buscam varrer o Barroco do mapa e enfatizam disciplina e graça, beleza e verossimilhança: o Iluminismo, o Arcadismo e o Neoclassicismo. Finalmente, sentimentos pré-românticos já borbulham discretamente, mas raivosamente, perto da superfície, quase fervendo, quase transbordando.

O século XVIII é uma verdadeira autocanibalização do Renascimento: quando o Barroco (a reação ao Renascimento) e o Iluminismo (o último sopro do Renascimento) afundam juntos, um apertando o pescoço do outro, e as Revoluções Norte-Americana, Francesa e Industrial varrem do mapa as velhas formas políticas, sociais e econômicas da Europa, o século XIX já nasce pronto para ser verdadeiramente novo, ao mesmo tempo burguês e antiburguês (ou seja, Romântico), dando origem a um mundo que já é nosso contemporâneo, que já é o nosso mundo.

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A poesia chata de um século razoável

Um século que tanto enfatizou a razão e o intelecto, a justa medida e a ordem lógica, a simplicidade e a clareza, não poderia mesmo produzir grande arte. Em larga medida, a arte setecentista tende ao didatismo e à precisão, a um utilitarismo didático que é a própria anti-arte. Por isso, produziu poesias tão enfadonhas.

Na poesia renascentista do século XVI, para citar somente quatro de meus poetas preferidos, temos Camões e Ariosto, Garcilaso e Spenser, em pleno gozo do Novo, saboreando a redescoberta do Antigo, exultando na criação das línguas literárias que estavam se formando e se consolidando. No Barroco de Góngora e de Milton, no século XVII, temos o gozo da palavra pela palavra, da exaltação da língua escrita e da expressão verbal, do total descolamento da literatura de qualquer realidade representacional. A poesia romântica do XIX, com Byron e Shelley, Gonçalves Dias e Castro Alves, explode num glorioso individualismo autocentrado, exulta no horror gótico, e os autores se transformam em artistas em busca de originalidade e de autoexpressão.

Emparedados entre as exuberâncias barroca e romântica, presos numa camisa-de-força estética de um renascimento tardio, celebrando uma razão lógica que era antitética à própria noção de arte, os pobres poetas do século XVIII de fato nunca tiveram muita chance.

Eu, pessoalmente, conseguiria contar nos dedos de uma mão as obras que realmente gosto. A tradução do inglês Alexander Pope para a Ilíada (na verdade, uma recriação) é belíssima e brilhante, por aplicar esse estilo anglófono setecentista a um grande poema da humanidade, mas o resto da obra original de Pope empalidece na comparação. Um livro que está firme no meu top 3 de favoritos da vida há 30 anos é do século XVIII, mas é justamente uma obra de não-ficção, também escrita por um inglês olhando para o mundo antigo, e exibindo tudo que o racionalismo irônico, empiricista e cético, do século tem de melhor: Declínio e queda do Império Romano, de Gibbon. Tirando isso, o que sobra? As ligações perigosas é um bom romance, mas não é uma grande obra. Os melhores poetas espanhóis, como José Cadalso, são os que fazem quase tão bem quanto Gonzaga o que ele faz melhor em Marília de Dirceu.

Não é à toa que alguns dos autores mais memoráveis desse século foram os enlouquecidos e alucinados que quebraram totalmente essas expectativas racionais e comedidas: Sade, na França, que não considero um grande artista, mas sim um grande sintoma, e Blake, que de fato é um dos maiores poetas da língua inglesa, mas que é parte integrante e inseparável do romantismo britânico do XIX.

Aliás, um aparte: por ter nascido antes da metade do século, os manuais de literatura muitas vezes colocam Blake (1747—1827) no século XVIII, mas ele me parece muito mais à vontade no XIX com Byron (1788-1824) e Shelley (1792-1822), ambos aos quais sobreviveu, do que com Pope e Johnson no XVIII: ele é muito mais gótico e romântico do que neoclássico e rococó. Escrevi “Blake” e “Rococó” na mesma frase e, na mesma hora, soltei uma risada.

(Já falei de boa parte desses autores em minhas aulas: Camões foi tema da aula Navegações da Introdução à Grande Conversa e da aula Português da Grande Conversa Fundadora; Garcilaso foi tema da aula Renascimento da Grande Conversa Espanhola; Góngora será tema da aula Barroco da Grande Conversa Espanhola, que acontece no dia 1º de março; Milton foi tema da aula Reforma da Introdução à Grande Conversa; a poesia romântica de Gonçalves Dias e Castro Alves foi tema das aulas Indianistas & Inconfidentes e Escravistas & Escravizados da Grande Conversa Brasileira; Gibbon foi tema da aula Romanos da Introdução à Grande Conversa. Por fim, um artigo acadêmico meu sobre Sade enquanto sintoma da falência do Iluminismo.)

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Uma obra setecentista por excelência

Dentre a poesia setecentista, em minha humilde opinião, só Marília de Dirceu se salva, obra que exemplifica o melhor e o pior da arte desse século de transição. É o ponto ótimo de equilíbrio, único e inédito, nunca mais atingido, de convergência das correntes setecentistas e de antecipação das oitocentistas.

As obras mais puramente neoclássicas se perdem na esterilidade de mil e uma referências antigas sobrepostas — algo que é revolucionário em Garcilaso e Camões, no XVI, fica cansativo com Góngora no XVII e já está absolutamente estéril no XVIII. Marília de Dirceu é neoclássico, mas com parcimônia e, por isso, ainda é agradavelmente legível para nós.

Igualmente, as obras mais puramente rococós se perdem em jogos verbais tão estilizados e superficiais que, mesmo sendo divertidos, nos perguntamos: existem pessoas reais, sentimentos reais, por debaixo desses jogos de salão? Se a primeira parte de Marília de Dirceu nos mostra o melhor que a poesia rococó pode ser, a segunda e a terceira partes nos mostram esse mundo rococó violentamente colidindo com o mundo real, de conspirações e de cárceres, de suicídios e de degredos. (Não por acaso, no mesmo ano em que Gonzaga é preso, 1789, o mundo cortesão que gerou a literatura rococó também é ferido de morte, em sua própria casa, pela Queda da Bastilha.)

Já no século XIX, o romantismo que se antevê, discreto mas pungente, em Marília de Dirceu será a estética dominante. Quando um certo grotesco e vaidoso autocentramento já é o próprio projeto artístico, fica difícil de destacar os exageros, pois eles são a norma. Para conferir a poesia romântica no seu pior, basta pegar qualquer obra completa de nossos melhores poetas oitocentistas, Gonçalves Dias ou Castro Alves, Álvares de Azevedo ou Fagundes Varela, e ler os poemas que normalmente não são selecionados para as seletas literárias.

Ao mesmo tempo em que respeitava todas as convenções do estilo setecentista (senão, nem teria sido celebrada), Marília de Dirceu consegue vencer a dureza dessas formas com uma individualidade tranqüila, mas sempre marcada, e com uma linguagem precisa mas coloquial, simples mas expressiva, que se comunica facilmente conosco até hoje.

É fácil de entender porque os românticos do XIX celebraram e canonizaram Marília de Dirceu: ao mesmo tempo em que exemplifica o ápice e a perfeição do estilo setecentista, ela também traz em si, latentes e profetizadas, o individualismo passional e a introspecção autocentrada que foram as grandes contribuições desses românticos à História literária. Ou seja, era ao mesmo tempo antiga e clássica, contemporânea e presciente.

Além disso, escrita e ambientada nas Américas por um autor condenado por participar da conspiração que é o nosso primeiro grande mito nacional, Marília de Dirceu também pressente e anuncia o próprio Brasil enquanto entidade política.

Marília de Dirceu é tão leve e tão simples, tão belo e tão singelo, que Tomás Antonio Gonzaga faz parecer fácil ter sido o único poeta que conseguiu fugir de todos esses exageros e singrar um belíssimo caminho do meio.

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Uma obra brasileira por excelência

Na literatura, os valores iluministas se refletem no estilo ou escola do Arcadismo, que começa como uma reação italiana ao que se percebia como os excessos do Barroco, é rapidamente adotado pelos portugueses em um momento de rejeição a tudo que fosse espanhol (o Barroco era fortemente associado à Espanha) e daí passa ao Brasil, onde é retrabalhado no estilo conhecido como Arcadismo mineiro e do qual Marília de Dirceu é o ponto alto.

Na Europa, o Arcadismo é marcado por um movimento de volta ao campo e revalorização da natureza. Mas essa oposição bucólica campo versus cidade, acadêmica e artificiosa na Europa, ganha nova relevância e realidade concreta na vida e obra de colonos mestiços tentando aplicar códigos literários europeus em um continente definitivamente não europeu.

A situação colonial de nossos autores será responsável pelas grandes diferenças entre o Arcadismo português e o brasileiro, dando origem ao primeiro momento de diferenciação da literatura portuguesa produzida da Europa e nas Américas.

O arcadismo brasileiro enfatiza uma relação melancólica e confrontacional com uma natureza agreste e agressiva as duras pedras da poesia do árcade brasileiro Claudio Manuel da Costa não têm paralelo na poesia árcade portuguesa, onde a natureza é bucólica, amena ou, no pior dos casos, indiferente.Também pela angústia de tentar criar uma nova literatura em uma região que julgavam selvagem e antiliterária, os poetas árcades brasileiros deixam escapar, por entre as frestas do estilo engessado, um individualismo e uma introspecção que os coloca mais perto do romantismo oitocentista que seus colegas peninsulares.

Além disso, a situação colonial, tão diferente da européia, também explica um certo realismo prosaico na nossa poesia, uma observação mais descritiva da natureza local, uma maior simplicidade na escolha vocabular que permite mais acessibilidade oral aos poemas. (A simplicidade da linguagem das liras de Marília de Dirceu, tantas vezes musicadas, das modinhas de Domingos Caldas Barbosa e até mesmo de O Uraguai — nunca um poema épico foi tão acessível — permitiram que a obra dos árcades brasileiros se tornasse muito mais popular com um público pouco culto e pouco letrado do que a dos árcades portugueses.)

Pela primeira vez, um grupo de artistas criava poesia no Brasil, em comunicação entre si e conscientes de seu oficio. A poesia portuguesa recebia seu primeiro ímpeto de renovação vindo do Brasil. Estava começando a transição da fase puramente portuguesa para uma fase, digamos, lusobrasileira da literatura portuguesa. Como diz Antonio Cândido, se uma história da literatura brasileira é uma historia dos brasileiros em seu desejo de ter uma literatura, ela bem pode começar aqui no Arcadismo mineiro.

Mais ainda, será a revalorização da natureza celebrada pelo Arcadismo que levará, na literatura portuguesa produzida nas Américas, à primeira valorização dos povos originários. Não é à toa que o Indianismo, oficializado como poesia de Estado pelos românticos no pós-Independência, na verdade surge nessa época, no contexto do Arcadismo mineiro, nas mãos de poetas como Basílio da Gama, em O Uraguai, e Santa Rita Durão, em Caramuru.

Por fim, de novo, como resistir a canonizar no panteão brasileiro uma obra que, além de desenvolver com maestria as formas poéticas e as prioridades estéticas do Setecentos e antecipar as tendências canônicas do Oitocentos, também está involucrada no mito fundador dessa nova religião laica do XIX que é o patriotismo nacionalista?

(O Indianismo de Gonçalves Dias e O Uraguai, de Basílio da Gama, foram temas das aulas Indianismo & Inconfidentes e Civilizados & Bárbaros da Grande Conversa Brasileira.)

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Gonzaga, uma vida entre três continentes

Nasceu no Porto, de pai carioca, em 1744; veio para o Brasil criança, estudou na Bahia e voltou a Portugal para cursar leis em Coimbra. Teve lá seu primeiro emprego e, logo, em 1782, foi nomeado juiz em Vila Rica, atual Ouro Preto, então capital de Minas Gerais.

Em 1786, é nomeado para um cargo importante na Bahia mas vai adiando a posse, pois estava noivo de Doroteia, a moça a quem seu alterego poético, Dirceu, chama de Marília.

Finalmente, poucas semanas antes do casamento, em maio de 1789, Gonzaga é preso por envolvimento na Inconfidência Mineira e passa os próximos três anos encarcerado na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, atual sede do Primeiro Distrito Naval.

Até hoje, historiadores contemporâneos esquadrinham os volumosos autos da devassa — Gonzaga passou três anos sendo repetidas vezes interrogado — com os mesmos objetivos das autoridades portuguesas da época: determinar o grau de envolvimento do poeta na conspiração. Opiniões variam entre “nenhum envolvimento” e “escreveria as leis da futura república”, ou seja, ninguém sabe. As desculpas de Gonzaga, que não se envolveria em uma sublevação no mês do seu casamento tendo já posição certa e influente em outra província, não convenceram os juízes.

Condenado a degredo na África, é enviado para Moçambique em 1792, onde, apesar de criminoso sedicioso condenado, seu notório saber jurídico o transforma em um dos homens mais importantes e influentes da Colônia. Quando cumpre sua pena, escolhe ainda assim permanecer na ilha até a sua morte, em 1810. Deixa filhos, netos e uma esposa que não cantou em versos.

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Uma História das edições de Marília de Dirceu

Marília de Dirceu, um livro composto de várias liras cantadas pelo poeta Dirceu em homenagem à sua amada, a pastora Marília, é publicado em Lisboa em 1792.

Nesse momento, Tomás Antonio Gonzaga já levava três anos preso. Ele autorizou essa edição? Revisou? Quem levou esse material para Lisboa? Não sabemos. As liras de amor, suaves e graciosas, estilizadas e idílicas, no melhor estilo rococó, não mencionam a prisão de Gonzaga e não trazem nenhuma sugestão de problemas políticos ou reais.

Em 1799, sai uma nova edição, com novas liras — nas edições de hoje, as liras acrescentadas na segunda edição formam a segunda parte — e, agora, tudo muda: o poeta Dirceu não está mais em um ambiente idílico arcádico, mas preso na mesma sinistra Ilha das Cobras que o poeta de carne e osso Tomás Antonio Gonzaga, cantando saudades de sua Marília, defendendo sua inocência e afirmando sua fé no futuro. O que antes era um idílio estilizado se transforma de repente, aliás traumaticamente, em um poema político, um tanto quanto autoficcional, escrito por um revolucionário condenado. Por que Gonzaga escolhe fundir sua vida real a de seu poeta-narrador?

Quando sai a segunda edição, Gonzaga já estava há sete anos degredado em Moçambique. Ele teve algum envolvimento? Mais uma vez, não sabemos. Fica inclusive uma dúvida mais interessante: a produção poética de Gonzaga foi exclusivamente para cantar Marília ou será que a pessoa que coligiu suas poesias selecionou somente essas, e deixou as outras caírem no esquecimento?

Finalmente, em 1810, já depois da morte do poeta, sai uma terceira edição, com novas liras — nas nossas edições, é a terceira parte.

Alguns autores, como Antonio Cândido, consideram que essa terceira parte não teria sido escrita por Gonzaga, pois ela rompe o tom de tranqüila autoconfiança da segunda parte e mostra um poeta derrotado e alquebrado. Mas parece que Cândido não acredita na legitimidade da terceira parte apenas porque decidiu, algo arbitrariamente, algo carinhosamente, que Gonzaga/Dirceu não se deixaria derrubar. Pode bem ser que o projeto original da obra — o arco narrativo, como chamaríamos hoje — seja justamente uma jornada dos amores idílicos da primeira parte para a autoconfiança saudosa da segunda e terminando no derrotismo resignado da terceira.

O que poderia ser mais pungente e mais triste, mais patético e mais comovente? Não é à toa que Marília de Dirceu, terceira parte inclusa, foi o livro de poesia mais lido de nossos românticos do século XIX.

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Um encontro de estilos: Rococó, Arcadismo, Romantismo

Marília de Dirceu é o ponto ótimo de encontro de diversas correntes culturais de finais do século XVIII.

Do Rococó, ele traz um certo tom íntimo e leve, lúdico e prazeroso, superficial e agradável, da melhor literatura de salão, com uma certa lascívia sugerida, mas sem exageros dramáticos, evitando qualquer profundidade. (Naturalmente, estamos falando da primeira parte.)

Do Arcadismo, Marília de Dirceu traz tudo que remeta à literatura antiga grecorromana, como a reinventação e revalorização da Natureza; a ênfase na áurea mediocritas e no carpe diem, ou seja, nas virtudes do meio e de apreciar o presente; o repúdio a todo excesso verborrágico e, finalmente, as citações à mitologia clássica.

Do Romantismo que ele antecipa, o poema já exibe um certo impulso à internalização psicológica e ao desenvolvimento de um eu-lírico que transcende as limitações do estilo setecentista: enquanto Marília nunca ganha existência concreta além de mera justificativa para as liras, o narrador Dirceu é uma subjetividade complexa que se autoconstroi ficcionalmente diante de nossos olhos. O toque localista na descrição da paisagem é pré-romântico: apesar de bem longe de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, que escrevem poemas sobre temas brasileiros, Gonzaga já deixa entrever uma mina de ouro aqui, algumas pessoas escravizadas ali. O toque local não é nunca enfatizado, mas existe com clareza o suficiente para que saibamos que estamos nas Minas Gerais do século XVIII, e não em nenhum outro lugar ou época. Finalmente, o patético da terceira parte já é um mergulho de cabeça no Romantismo.

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Uma História das leituras de Marília de Dirceu

Se a leitura acontece no espaço virtual onde se juntam a mensagem sendo transferida pela obra, que nunca muda, e nossa leitura, sempre mutável e pautada por tantas percepções e antecipações, por tantos conhecimentos que autor e leitores originais não tinham, como a leitura de Marília de Dirceu não seria modificada e pautada, influenciada e determinada, por tudo que sabemos e eles, não? (“Eles”, nesse caso, pode incluir desde o poeta de carne e osso Gonzaga e sua noiva de carne e osso Doroteia, passando pelos pastores ficcionais Marília e Dirceu, e incluindo aí todas as pessoas que formavam o sistema literário da época.)

Para nós, hoje, o que dá pathos e textura ao livro é essa fratura entre o pastor idealizado e o poeta real, essa contradição entre o revolucionário se defendendo e o burguês confiando no sistema, esse abismo entre as esperanças do pastor/poeta da primeira parte e o conhecimento cruel que nós temos e ele, não: Marília e Dirceu nunca se casaram, nunca mais se viram. De verdade. Na vida real.

Ao longo do século XIX, uma nova camada é adicionada ao poema, que não poderia ser prevista por seus primeiros leitores: os poetas românticos transformam Marília e Dirceu no maior paradigma do amor infeliz e nunca consumado. Ou seja, aquele casal rococó setecentista, das poesias leves e lúdicas e bucólicas, se transforma num casal oitocentista romântico e dramático. Quem, em 1792, poderia ter previsto essa reviravolta? Gonzaga, quando escreve o livro, certamente não esperava que seu amor com Doroteia nunca fosse consumado.

No século XX, a leitura do poema recebe uma nova camada, ainda mais imprevisível aos primeiros leitores. Para nós, leitores do século XXI, a Inconfidência Mineira é de tal maneira um mito nacional que é difícil de lembrar o quão recente é essa canonização. Até a Independência em 1822, a Inconfidência Mineira era só mais uma entre tantas tentativas de sublevação coloniais, todas notas de rodapé na História. A partir da Independência, a própria popularidade de Marília de Dirceu entre os românticos é que chama atenção para essa conspiração, entre tantas outras: Castro Alves, por exemplo, escreve uma peça de teatro sobre a vida de Gonzaga. Enquanto os Pedros fossem Imperadores, porém, jamais seria oficialmente glorificada uma conspiração contra sua avó e bisavó Maria. A Proclamação da República, pelo contrário, impõe outro problema: como encontrar heróis nacionais que não fossem monarquistas e associados com a dinastia recém-derrubada? É nesse momento que a Inconfidência Mineira surge como resposta perfeita e é prontamente canonizada como mito nacional.

Ou seja, Marília de Dirceu não é mais um livro escrito por um poeta condenado por fazer parte de uma nota de rodapé da História, mas por um dos mártires da Brasilidade. Quem, em 1860, poderia ter previsto essa reviravolta? Nem Castro Alves, escrevendo uma das primeiras obras ficcionais sobre a Inconfidência, esperava que ela chegasse tão longe no imaginário nacional.

Em 2150, as pessoas brasileiras ainda estarão lendo Marília de Dirceu? Mais importante, que livro estarão lendo? Será igual ao nosso? Ou já terá se transformado?

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Gonzaga, um poeta burguês

Se o século XVIII é, na cultura ocidental, o século do triunfo da burguesia, Marília de Dirceu é a grande celebração literária desse amor burguês, doméstico e tranqüilo, sem exageros e sem arroubos.

Por detrás do artificialismo da linguagem de salão, o que vemos são duas pessoas de carne e osso, desfrutando da “sorte de um amor tranqüilo”, desejando as pequenas alegrias de uma vida doméstica e conjugal feliz. Por entre as obrigatórias, e cada vez mais infreqüentes, citações mitológicas, o poeta Dirceu critica os falsos heroísmos do passado e canta as delicias de uma vida pacífica e tranqüila. (Aliás, é o fato de nem essa pequena ambição ele conseguir realizar que torna o poema tão doloroso e o eleva acima das limitações estéticas da época.)

Como um bom burguês, o poeta/pastor Dirceu/Gonzaga preza, acima de tudo, a justa medida. Mesmo quando está preso e sem perspectivas, ele ainda assim mantém uma aura de calmo autocontrole, faz piadas e afirma sua confiança no julgamento. Até quando se gaba de suas posses e de sua inteligência — algo que, nos poetas românticos, seria uma feroz autoexaltação do artista contra um universo brutal — Gonzaga parece estar tranquilamente afirmando verdades indiscutíveis que ninguém poderia negar. Manifesta preocupações prosaicas sem a vergonha de se preocupar com pretensas futilidades: teme a velhice, os cabelos brancos e a perda dos dentes, e deseja o conforto e a tranqüilidade de uma vida doméstica com sua amada. Essa incapacidade de extremos, aliás, é o elemento mais anti-romântico de sua personalidade e de todo o poema.

Mesmo quando preso e acusado de envolvimento em uma conspiração revolucionária (algo por definição emocionante e aventureiro), o poeta nunca adota um tom grandiloqüente e exaltado e se manifesta sempre numa chave menor, mais baixa e mais tranqüila.

Como aponta Waltensir Dutra, o amor de Marília e Dirceu é idílico até mesmo enquanto está sendo atropelado pela História. A poesia de Gonzaga, ao contrário dos românticos posteriores, não emanava dos conflitos, mas da falta deles, de uma tranqüila autoconfiança em um mundo justo onde os bons seriam inocentados e os amantes teriam sua feliz vida doméstica. Quando esse mundo desaba, o poeta desaparece: viveu por quase setenta anos e foi poeta por menos de uma década.

Mas que década: em 1782, a Europa ainda era a velha e estável e aparentemente inabalável Europa do Antigo Regime e da Monarquia Absolutista; em 1792, assim como Gonzaga, o Rei da França está preso e, em janeiro, uma revolução burguesa cortaria fora sua cabeça. Esse é o explosivo contexto histórico imediato de nosso primeiro grande poema, Marília de Dirceu.

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Gonzaga, um poeta revolucionário

Quando lemos Paraíso Perdido, é fácil esquecer que o autor foi um dos revolucionários mais escandalosamente famosos de sua época. O leitor contemporâneo receberia Paraíso Perdido como nós receberíamos, digamos, um poema que Che Guevara, se não tivesse sido morto, teria escrito no cárcere boliviano. Imaginem: como ler um poema escrito por Che Guevara, sobre qualquer tema, sem lembrar o tempo todo que era um poema de Che Guevara?

(Milton foi o equivalente a um Ministro das Relações Exteriores da primeira revolução européia moderna que matou um rei absolutista. Quando a reação triunfa, a vida de Milton somente é poupada pois ele já estava velho e cego demais. Além disso, assim como De Gaulle não ousou punir Sartre por atividades francamente subversivas — “não se manda prender Voltaire”, ele disse — o filho do rei executado também não ousou executar o maior e mais famoso poeta europeu. Graças a essa sabedoria, temos Paraíso Perdido, obra de um revolucionário cego e derrotado, sem mais nada o que fazer a não ser remoer suas raivas e ressentimentos na forma de poesia. É meu livro preferido, junto com a Bíblia, a Ilíada e Declínio e Queda do Império Romano.)

Igualmente, como ler Marília de Dirceu no Brasil do século XXI sem pensar no subversivo condenado por fazer parte da Inconfidência Mineira? Como conciliar esse homem de carne e osso, preso por três anos em uma sinistra fortaleza e que escreveu essas liras provavelmente enquanto era repetidas vezes interrogado, com o estilizado pastor Dirceu, superficial e rococó, ou com o bom burguês Gonzaga, sonhando com seu casamento real com sua noiva real, com seu emprego de desembargador na Bahia e com as delícias da futura vida doméstica? Um verdadeiro revolucionário escreveria um poema tão bem comportado? Um verdadeiro burguês se envolveria em uma conspiração para derrubar o governo?

Quem era, realmente, Tomás Antonio Gonzaga?

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Gonzaga, um advogado

Tomás Antonio Gonzaga era, antes de mais nada, advogado. Marília de Dirceu é sua defesa, e o júri somos nós.

Em 1960, Helen Caldwell nos ensinou que poderíamos ler Dom Casmurro como uma peça jurídica escrita pelo advogado Bentinho para incriminar sua esposa Capitu e, assim, justificar seu abandono. E se lêssemos Marília de Dirceu como a defesa de Tomás Antonio Gonzaga para a acusação de conspirador?

Nas palavras de Carlos Felipe Moisés, Gonzaga e Dirceu talvez não sejam vozes antagônicas, mas complementares. O ideal de participação política já pode ser detectado nos suspiros endereçados à doce Marília, e o sonho burguês de domesticidade conjugal é o que sustenta os ideais políticos de liberdade, igualdade e fraternidade. Na primeira parte, Dirceu nos seduz com seu amor tão puro, tão leve, tão lúdico e, na segunda, nos recruta como seus aliados: o bom Dirceu não poderia ser um conspirador, poderia? Já de casamento marcado com Marília? Ele não arriscaria seu grande amor, arriscaria?

Qualquer leitor percebe que Marília, como personagem e como pessoa, não tem presença no poema. A leitura comum é que Marília seria a justificativa para o poeta cantar o amor e exprimir sua subjetividade. Mas talvez Marília seja algo mais importante: álibi. Dirceu fala à Marília, pois a poesia setecentista era comunicativa e precisava de um interlocutor, mas “Marília, o alvo imediato, é apenas o interlocutor retórico. Nós, seus leitores, é que somos o alvo verdadeiramente visado pela fala do poeta.”

Funcionou?

No presente imediato, talvez. Pode-se argumentar que não, pois, afinal, Gonzaga foi condenado, degredado e nunca mais viu Marília. Por outro lado, pode-se argumentar que sim, pois não foi nem executado, como Tiradentes, nem “suicidado”, como Claudio Manuel da Costa, e sua pena foi tão leve que rapidamente se transformou na figura de maior destaque da colônia para onde foi degredado.

Literariamente, com certeza. A prova somos nós, aqui, hoje, 200 anos depois, ainda hipnotizados por Marília de Dirceu.

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Marília de Dirceu, a aula

Na aula em vídeo acima, de três horas de duração, eu apresento:

1. o contexto cultural do poema, ou seja, a crise européia do século XVIII, onde movimentos como Iluminismo, Arcadismo, Rococó e Neoclassicismo fazem frente ao Barroco e acabam abrindo caminho ao Romantismo;

2. a importância de Marília de Dirceu como obra fundadora da literatura brasileira;

3. uma leitura do poema, enfatizando as múltiplas identidades do autor/narrador Gonzaga/Dirceu.

Todo mês, na segunda quarta-feira, dou uma aula de literatura ou de História para as pessoas mecenas do meu Apoia-se. Essa foi a aula de janeiro de 2023. As aulas são exclusivas para apoiadoras mas, como serviço de utilidade pública às estudantes tentando passar no Vestibular, está aqui publicada de forma aberta e gratuita. Se você gostou, se foi útil, por favor, considere fazer uma contribuição em dinheiro: é disso que eu vivo e você estará me ajudando a dar outras aulas para outras pessoas.

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Apoia-se: apoia.se/alexcastro

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Obras utilizadas

Amora, Antonio Soares, “A literatura do Setecentos” in Coutinho, Afrânio (org). A literatura no Brasil. Volume 2: Era Barroca, Era Neoclássica.

Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.

Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos, 1750-1880.

Coutinho, Afrânio, “Neoclassicismo e Arcadismo. O Rococó” in Coutinho, Afrânio (org). A literatura no Brasil. Volume 2: Era Barroca, Era Neoclássica.

Dutra, Waltensir, “O Arcadismo na poesia lírica, épica e satírica” in Coutinho, Afrânio (org). A literatura no Brasil. Volume 2: Era Barroca, Era Neoclássica.

Helena, Lúcia. “Tomás Antonio Gonzaga, um árcade entre a Lira e a Lei” in Proença Filho, Domício. A poesia dos inconfidentes.

Moisés, Carlos Felipe. “Um Olhar Estrangeiro: Dirceu E Marília Revisitados”.

Uma resposta em “Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga”

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