Enquanto policiais militares empobrecidos continuarem invadindo favelas para executar outras pessoas mais pobres ainda, o Martín Fierro continuará relevante: é o grande poema americano, o que nos canta, o que nos define, o que nos acusa.
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Martín Fierro e a Grande Conversa latino-americana
A fratura “civilização versus barbárie” está no centro do processo de formação dos estados nacionais americanos. Para a elite branca que guiava a política e escrevia a História, criar uma nação significava basicamente tirar do caminho o Outro, sejam eles pessoas de descendência africana ou originária. Uma vez morto ou destruído, afastado ou neutralizado, esse Outro então podia ser convertido em um seguro e conveniente símbolo nacional, erigido pelos brancos de cá para diferenciá-los dos brancos de lá. No Brasil, por exemplo, a “literatura indianista”, de José de Alencar e Gonçalves Dias, surge apenas quando os povos originários deixaram de ser ameaça. Na Argentina, a literatura gauchesca segue o mesmo caminho: Martín Fierro, o poema nacional por excelência, conta a história de um gaúcho — que poderia ser um vaqueiro no Brasil ou um cowboy nos Estados Unidos — somente quando eles já deixaram de ser um foco de instabilidade social nos pampas e não ameaçam mais a hegemonia de Buenos Aires.
É um poema repleto de injustiças e opressões, muitas sofridas, mas também muitas perpetradas pelo protagonista homônimo, um branco pobre à margem do Estado, desertor indesejável e briguento cuja única utilidade política é como bucha de canhão para matar pessoas negras e indígenas ainda mais indesejáveis. Testemunha ocular e incômoda da violência do “processo civilizatório”, o gaúcho Martín Fierro foi silenciado e desfigurado por sua canonização em herói literário-nacional. Mas o poema, fortíssimo e vigoroso documento, ainda pulsa e sangra, desmentindo quase que por conta própria o mito fundador argentino, aliás, o mito fundador de todos nós. Enquanto policiais militares empobrecidos continuarem invadindo favelas para executar outras pessoas mais pobres ainda, o Martín Fierro continuará relevante: é o grande poema americano, o que nos canta, o que nos define, o que nos acusa.
Jorge Luis Borges, maior escritor argentino, apesar de apaixonado pelo poema, lamentava a idealização do personagem: sem ela, diz ele, “outra teria sido nossa história, e melhor.” Também leremos dois contos onde Borges reescreve e reinterpreta o Martín Fierro e a literatura gauchesca: “O fim” em Ficções, e “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)” em O Aleph. Para quem quiser ir mais fundo, recomendo o Facundo, equivalente em prosa do Martín Fierro e que Borges desejava ter sido canonizado em seu lugar — também foi, aliás.
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Os dois Martín Fierro
José Hernandez primeiro publicou El Gaucho Martín Fierro (1872) e, sete anos depois, La Vuelta de Martín Fierro (1879). Hoje, quando falamos Martín Fierro, estamos nos referindo aos dois poemas juntos. Quando queremos nos referir só ao segundo, chamamos La Vuelta e, ao primeiro, por paralelismo, La Ida.
La ida foi publicada despretensiosamente, como um folheto barato de oitenta páginas, em 1872 — que acabou vendendo 40 mil exemplares. Sete anos depois, em 1879, quando saiu La Vuelta, já foi como a sequência de um celebrado poema já canonizado, escrito por um autor já consagrado, em edição capa dura, com todo o peso da expectativa do país inteiro. Mais interessante, assim como na segunda parte do Quixote, na segunda parte do Martín Fierro o personagem-título vive em um mundo onde existe um poema famoso… chamado Martín Fierro.
Ao lermos, é importante termos em mente que La ida e La vuelta não são duas partes de um mesmo poema, mas sim dois poemas distintos, publicados separadamente, e com tom, ideologia, objetivos bem diferentes. Por exemplo, Carlos Gamerro, em Facundo o Martín Fierro: Los libros que inventaron la Argentina, chama La vuelta de “manual de autoajuda para gaúchos civilizados”.
A melhor comparação brasileira seria entre o primeiro e o segundo Tropa de Elite: são filmes tão diferentes entre si em termos de tom, ideologia, objetivo, etc, que seria bizarro entendê-los como duas partes de um mesmo todo. Enquanto o primeiro filme, mais denso, faz um esforço (nem sempre bem-sucedido) para problematizar o Capitão Nascimento, retratando-o, entre outras coisas, como agressor da própria esposa, o segundo filme celebra Nascimento como herói desde o primeiro frame e faz uma escolha aberta pelo thriller despolitizado. São duas obras que dialogam e dependem uma da outra, mas indubitavelmente duas obras bastante diferentes.
Aliás, Tropa de Elite tem tudo a ver com o Martín Fierro. Leiam e me contem.
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Qual tradução ler
O Martín Fierro já foi traduzido para o português diversas vezes. Atualmente, existem duas excelentes traduções em catálogo no Brasil, que podem ser compradas diretamente das editoras:
A de Colmar Duarte, pela Editora Movimento, uma boa tradução, em edição crítica bilíngue e ilustrada, com notas explicativas e prefácio escrito por acadêmica renomada. (Compre por R$50.)
(Contato: editoramovimento@editoramovimento.com.br)
E a tradução de Ciro Correia França, pela Travessa dos Editores, também bilíngue, também ilustrada, sem conteúdo crítico, mas uma tradução que considero mais potente e um objeto-livro capa dura simplesmente belíssimo. (Compre por R$95)
(Caso alguém precise falar com a filha do tradutor e dona da editora, Isabela França, fale comigo e eu passo o contato.)
Ambas são muito boas, mas recomendo fortemente a segunda.
A tradução de Colmar Duarte é competente, mas ainda parece, soa como uma tradução. Eu leio a versão bilíngue, estranho uma ou outra coisa, e meu olho fica o tempo todo fugindo para o original, até que, de repente, percebo que estou lendo só o original.
A tradução de Ciro França é fortíssima, bem resolvida, bem adaptada, bem abrasileirada em cada detalhe. Vou lendo e lendo, me aprofundando e me afundando, e, quando percebo, até esqueci de olhar o original. Não achei necessário em nenhum momento. Na verdade, até esqueci que existia um original, pois ela me parece (e esse é o maior elogio que posso fazer a uma tradução, ainda mais poética) que foi originalmente escrita em português.
Compare ambas nas imagens abaixo, Ciro à esquerda, Colmar à direita:
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Em qual língua ler
Espanhol e português são línguas que tem 90% de cognancy, ou seja, onde 90% das palavras são cognatas: não são idênticas, mas tem o mesmo radical, a mesma estrutura. Poucas línguas são mais próximas. A grande diferença é na pronúncia.
Então, para falantes nativos de português, é mais recomendável tentar ler no original (é bem possível) ou em português. Não recomendo ler numa língua ainda mais distante tanto do português quanto do espanhol, o inglês. Por melhor que a pessoa fale o inglês, será uma tradução distante.
Para quem se aventurar no original, o livro é escrito no espanhol de fronteira, já misturado e influenciado por nosso português sulista, e, por isso, de certo modo, é mais fácil de ser lido por um gaúcho de Santana do Livramento do que por um espanhol de Barcelona.
Esse ebook gratuito tem fortuna crítica e glossário.
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Ouvindo Martín Fierro
O Martín Fierro é basicamente um gigantesco Faroeste Caboclo que foi canonizado como obra literária máxima da Argentina. Ou seja, é uma música. Foi feita pra ser ouvida, declamada, cantada. Ela nasce das pajadas, que são o equivalente gaucho das batalhas de repentistas.
Minha recomendação: comprem uma das versões bilingues português-espanhol e deixem para olhar a versão brasileira só em caso de dúvida. Vão lendo a versão em espanhol e acompanhado com esse áudio:
Como o Martín Fierro é eminentemente oral, existem várias versões, basta procurar no Youtube. Minha preferida é essa, completa, dos dois livros, musicada e cantada por Juan José Guiraldes e vários outros pajadores diferentes.
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Para quem quer ler mulheres
O Martín Fierro é um poema não só profundamente masculino, mas também profundamente racista, anti-negro e anti-índio, escancarando toda a outrofobia do processo de formação da Argentina e das Américas.
Para quem quiser um alívio de tanta misoginia sufocante, recomendo ler Las Aventuras de China Iron (2017), de Gabriela Cabezon Camara, é uma releitura feminina, queer e indígena do Martín Fierro.
Se o Martín Fierro é “literatura fundacional”, Las Aventuras de China Iron se gaba de ser “literatura desfundacional”, virando ao avesso as premissas do poema canônico.
A tradução para o inglês foi uma das finalistas do Booker Prize de 2020.
E, como dá pra ver pelos trechos de uma resenha, abaixo, é uma obra que também dialoga muito não só com o cânone argentino mas também com o brasileiro, e com obras que vamos ler em meu próximo curso, A Grande Conversa Brasileira:
“Las naciones latinoamericanas se construyeron a partir de historias e imaginarios culturales binarios: civilización y barbarie, mujer y hombre, criollo e indígena, letrado y no. Binarios difundidos en novelas románticas que ayudaron a consolidar los Estados nacionales. La investigadora Doris Sommer las llama ficciones fundacionales, es decir, ficciones-instrumentos para crear buenos ciudadanos bajo las leyes de un gobierno regulador. Ejemplos de estas visiones románticas son obras como …. Iracema (1810) de José de Alencar en Brasil. Pero ¿qué pasaría si estas ficciones fueran narradas por sus personajes periféricos? ¿Si Iracema, por ejemplo, contara sus aventuras en guaraní? … En Las aventuras de la China Iron (Random House, 2017), Gabriela Cabezón Cámara (Buenos Aires, 1968), aventura una respuesta: habría armonía entre este mundo de opuestos y entonces, quizá, una especie de paraíso sería posible, donde la gente pudiera disfrutar de su entorno y el trabajo solo sería el indispensable para sostener este lugar. …
Hay que reconocer que para desquebrajar o bien cuirizar el canon hay que conocerlo. Cabezón Cámara no sólo juega a desestructurar la historia cultural de Argentina, sino que hace guiños sutiles a otras ficciones, homenajes pequeños a aquellos textos que, por un momento, retaron lo establecido sin atreverse a cambiar el rumbo. La perrita Estreya es la baleia en Vidas Secas (1938) del brasileño Graciliano Ramos y la China Iron indudablemente recuerda a Diadorim, compañero de Riobaldo en Grande Sertão: Veredas (1956) de João Guimarães Rosa. Pero Cabezón Cámara se atreve y propone un nuevo camino para el imaginario cultural de la nación: una ficción des-fundacional, muy queer.”
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a nona aula, Nações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Martín Fierro: o que é, como ler é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 15 de janeiro de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/martin-fierro-o-que-e-como-ler // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato