O misticismo é uma comunhão direta com a totalidade da vida, um acesso direto à transcendência cósmica sem a mediação de textos, palavras, ensinamentos. Por isso, justamente por não depender da mediação de palavras, a experiência mística não é transmissível por palavras: ela só pode ser vivenciada, nunca explicada.
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Em nosso curso Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do ocidente através da literatura, estamos lendo As confissões de Agostinho de Hipona. Uma questão interessante sobre o livro: Agostinho é um místico ou não?
Mas, para respondermos essa pergunta, precisamos antes entender o que é misticismo. Nas palavras de um estranho sem nenhuma credibilidade:
“Misticismo … é o contato com uma divindade, verdade espiritual ou Deus através da experiência direta ou intuitiva. … [U]m tipo de religião que enfatiza a atenção imediata da relação direta e íntima com Deus, ou com a espiritualidade, com a consciência da Divina Presença. É a religião em seu mais apurado e intenso estágio de vida. O iniciado que alcançou o “segredo” é chamado um “místico”. Os antigos cristãos empregavam a palavra “contemplação” para designar a experiência mística.”
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Literatura mística
Um texto místico, quase uma contradição em termos, é sempre uma tentativa de explicar algo que, por definição, não pode ser explicado.
Em literatura, aquelas pessoas autoras que parecem estar sempre no limite das palavras, tentando dizer algo que não pode concebivelmente ser dito, são místicas por definição: poucos romances podem ser mais místicos do que Água viva e A paixão segundo G.H., talvez dois dos melhores textos que jamais foram escritos em português.
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Misticismo religioso e natural
O misticismo não é necessariamente religioso ou teísta: um místico cristão ou judeu (cabalista) ou muçulmano (sufista) reza e medita para alcançar seu Deus, mas um budista, ou qualquer pessoa atéia ou agnóstica, pode meditar ou contemplar simplesmente para obter uma experiência pessoal com a totalidade do cosmos ou da natureza. Ou seja, não precisa haver uma consciência sobrenatural do outro lado da linha.
Alguns estudiosos dividem o misticismo nessas duas vertentes: o religioso e o natural. Quase sempre, porém, os místicos de ambas essas vertentes negam o misticismo do outro.
O místico religioso considera que o natural simplesmente se isolou do mundo, mas que não teve uma verdadeira experiência mística pois faltou justamente alcançar aquele que ele considera o objetivo de toda experiência mística: Deus.
Já o místico natural considera que o religioso simplesmente se conectou com sua divindade particular de devoção, uma experiência por definição menor do que o contato com a totalidade do universo em si.
(A distinção é de Robert Charles Zaehner, em Mysticism Sacred and Profane: An Inquiry into Some Varieties of Praeternatural Experience, de 1957, excelentemente resenhado aqui.)
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Misticismo zen-budista
Eu pratico zen-budismo há dez anos e, em 2017, me ordenei formalmente em uma ordem soto zen — uma das linhagens do zen-budismo.
Dentro do budismo, o zen é considerado o braço mais místico, pois ele é o budismo despido de quase todos os rituais e escrituras, e voltado quase que exclusivamente à prática da contemplação mística, ou seja, à meditação.
Dentro do zen, o soto zen, a linhagem a qual pertenço, é considerada a mais mística, no sentido em que damos a menor ênfase possível à leitura e recitação das escrituras, e até mesmo o uso de koans, e tentamos focalizar ao máximo a nossa prática na meditação, meditação, meditação — que é, basicamente, essa prática diária de conseguir uma experiência direta e intuitiva com a totalidade da existência.
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Duas práticas místicas: a meditação e a oração
O que seria a prática mística para um cristão? De modo geral, isolar-se e orar de forma intensiva e concentrada. Ou seja, de certa maneira, meditar.
Em meu curso de formação para entrar na ordem zen-budista, lemos e estudamos muitos textos místicos cristãos. Justamente porque, se apenas trocássemos “Deus” por “natureza” ou “totalidade do cosmos”, quase tudo se aplicava de igual maneira à nossa prática de meditação zen.
O trecho abaixo, de Mística: descobrir o espaço interior (Vozes, 2012), do monge beneditino Anselm Grün, descreve perfeitamente os pontos de contato entre prece e meditação:
“Cada um realiza sua própria experiência com a prece. Às vezes oramos e estamos totalmente fora das palavras. Às vezes deixamos de lado as palavras e simplesmente nos colocamos em silêncio diante de Deus. …[P]ode acontecer que eu me coloque diante de Deus por duas horas e só sinta minha própria agitação interna, ou sofra sentindo a distância de Deus. Não existe nenhum “truque” para vivenciar Deus na prece; só posso esperar, até que Ele venha.” (Cap.6)
Quando o Abade Bernardo de Claraval, no século XI, escreve as linhas abaixo, ele não sabe, mas também está descrevendo o desapego zen-budista:
“Porque perder-te, de certo modo, como se não existisses, sem perceberes completamente ti mesmo, esvaziando-te de ti e quase anular-te, faz parte de um estado de vida celestial, não de uma condição humana.” (“De Diligendo Deo”, ou “Deus há de ser amado”, cap. X)
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A experiência mística já é sua própria recompensa
No tratado Da Oração, de João Cassiano (colação 9, cap.31), Antão do Deserto é citado dizendo:
“Não é perfeita a oração na qual se tem consciência de si ou daquilo que pede.”
Na minha vida de ordenado zen-budista, quando me perguntam:
— Por que você medita?
Respondo:
— Porque sim.
Porque, se meditamos para alcançar qualquer outro objetivo concreto – seja nos tornar algo que queremos ser no futuro (mais calmas, mais sábias etc.), ou deixar de ser algo que não queremos mais ser no passado (estressadas, irascíveis etc.) –, então não é mais possível estarmos plenamente no instante presente: uma parte de nós estará necessariamente habitando ou esse passado a ser corrigido ou esse futuro a ser criado.
O único motivo não autossabotador para querermos estar plenamente presentes é simplesmente querermos estar plenamente presentes: queremos estar presentes porque a realidade só existe no presente e porque não queremos mais viver presas em nossas próprias ilusões sobre o passado e sobre o futuro.
Aquietar o corpo, estar presente, habitar o momento é simplesmente estar onde já estamos, onde sempre estivemos. Não é um objetivo que possa ser atingido ou conquistado. Estar presente, realmente presente, já é a sua própria recompensa: só pode se perguntar qual é o objetivo disso quem nunca experimentou.
Não existem fins porque não existem meios. Os meios já são os fins.
(Esse é um trechinho da 17ª prática de atenção do meu livro Atenção., Estar presente, que é basicamente um guia de meditação.)
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Nada temos a perder a não ser nossas limitações
O trecho abaixo, retirado de Meditação cristã, de John Main, é um dos que melhor descreve o caráter ecumênico da experiência mística. Apesar de estar falando como um Prior Beneditino católico, tudo se aplica à minha prática zen atéia, e imagino que também à grande parte das experiências místicas:
“Existe um verdadeiro perigo para o homem religioso – e na verdade para todos os homens – de viver nossa vida voltados para proposições em lugar de aprofundar nossa atenção, de estarmos despertos para apreender e nos comprometermos com a verdade viva que nos torna autênticos … de nos tornarmos facilmente presunçosos e satisfeitos com nós mesmos, autocomplacentes ao repetirmos nossas fórmulas e credos. …
A verdadeira pobreza que havemos de praticar é um empobrecimento do egoísmo que isola. … Quando vivemos como irmãos e nos sentimos respeitados e amados, vamos adquirindo a confiança necessária para penetrar no caminho … no qual praticamos essa pobreza total e essa total renúncia. … Não se trata de fuga, nem de desprezo de nós mesmos, nem ódio contra nós mesmos. Pelo contrário, estamos a procura de nós mesmos e da experiência de nossa capacidade pessoal e infinita de sermos amados. …
Renunciamos essencialmente à irrealidade. A dor dessa renúncia será proporcional à extensão do nosso comprometimento com a irrealidade, à extensão com que aceitamos nossas ilusões como se fossem realidade. Na meditação, despimo-nos da ilusão do ego que nos isola. … ‘Quem quiser encontrar a sua vida deve primeiro perdê-la.’ … Renunciamos ao pensamento, à imaginação e até mesmo à autoconsciência que é a matriz da linguagem e da reflexão. … É o meio, na meditação, de perder nossa vida a fim de podermos encontrá-la. É o meio de nos tornarmos nada para nos tornarmos o Tudo. … Somente quando pomos em prática essa total renúncia, que João da Cruz denomina de ‘aniquilamento”, é somente então que nossa identidade plena, nossa realidade total aparece. …
O verdadeiramente simples raramente é fácil. … O problema máximo que nós ocidentais enfrentamos em relação à meditação [é] apenas crer na sua essencial simplicidade. … Tudo que há a fazer é apenas repetir o mantra com total simplicidade e total fidelidade. Sem nada esperar nem antecipar. … Nada temos a perder a não ser nossas limitações.”
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Tornar-se um com o sopro que te atravessa
Jean-Yves Leloup é um padre ortodoxo treinado em budismo tibetano. Em A montanha no oceano: meditação e compaixão no budismo e no cristianismo (Vozes, 2002), ele compara o hesicasmo, uma prática meditativa do Cristianismo Ortodoxo, com a meditação budista.
Esse livrinho, muito acessível, foi um dos mais transformadores da minha vida: ao me mostrar a ligação entre o misticismo zen-budista que eu praticava e o cristianismo do qual eu vinha fugindo a vida inteira, ele me permitiu fazer as pazes com essa parte importante da minha herança cultural e, agora, ler os textos cristãos não mais me deixando dominar por eles, mas extraindo deles o que fosse útil e valioso para o caminho religioso que eu decidira trilhar.
Abaixo, alguns trechos sobre os princípios do hesicasmo, como ensinado a Leloup pelo padre Serafim:
Nós rezamos para não esquecer “o que é”, “Aquele que é”. Não inventamos nada, não buscamos os estados psíquicos extraordinários. “O que é”, aí está nossa felicidade, agradável ou dolorosa, pouco importa. Em Deus, não há mais “isso me agrada” ou “isso não me agrada”; “é isso” e é tudo. Se o todo te interessa, tudo já está aí, por que procurá-lo? Há porventura um só lugar onde a realidade não está? …
Rezar não é pensar em Deus; quando estás com alguém, não pensas nele, mas tu respiras com ele. Rezar é respirar consciente e profundamente, não é ter pensamentos sublimes sobre Deus, não é outra coisa que tornar-se um com o sopro que te atravessa.”
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O místico é a busca pelo real
Ao conversar sobre misticismo, tenho a impressão que muitas pessoas consideram a jornada mística como uma fuga do real, uma tentativa de sair do real e alcançar um plano além do real, algo assim.
Mas lendo os grandes místicos, como João da Cruz e João Cassiano, ou os excelentes explicadores contemporâneos, como John Main e Jean-Yves Leloup; e principalmente, na prática mística, seja cristã ou zen-budista ou, imagino, em qualquer outra, a ênfase é sempre, justamente, na busca pelo real.
O zen-budismo, por exemplo, considera que vivemos presos em uma ilusão e nossa prática tem como objetivo nos libertarmos dessas ilusões e termos acesso à realidade das coisas.
Todo dia, eu faço os Quatro Votos do Bodisatva, pedra angular da minha vida e de tudo que eu faço, e presentes na epígrafe do meu livro Atenção. O segundo voto é transformar as ilusões e o terceiro, perceber a realidade.
As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las.
As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las.
A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la.
O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.
O que pode ser mais sagrado, e mais importante, e mais árduo, e mais impossível, do que simplesmente… perceber a realidade?
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O misticismo de Agostinho de Hipona
Para Anselm Grün, em Mística: descobrir o espaço interior, Agostinho seria um místico por excelência, ao buscar, mais do que tudo, tornar-se um consigo mesmo através de uma busca por Deus dentro de si e, dessa maneira, atingir a transcendência. Especificamente sobre As Confissões, Grün escreve:
“Quando fala de seu amor por Deus, Agostinho se estende ao anseio pelo amor humano. … O homem é retalhado por dentro e anseia por tornar-se UM consigo mesmo … não pode superar por si mesmo seu retalhamento interno, mas precisa da graça de Deus. … Agostinho aconselhava repetidamente a penetrarmos em nosso interior e lá descobrirmos Deus. … [A] visão da luz interior nunca é algo simplesmente intelectual, mas, na verdade, sempre conjugada ao amor. A mística, para ele, não consiste apenas num retorno ao interior do ser, e sim numa incursão definitiva no êxtase, no qual o homem se supera em Deus. … [P]enetrar no ser interno significa erguer-se acima de si: a ‘incursão ao fundo da alma leva à descoberta do Deus interior, que é infinitamente maior que a alma, levando-nos, portanto, a um êxtase no qual transcendemos a nós mesmos’.” (Cap.4)
O monge Grün é um estudioso do misticismo e eu não sou literalmente ninguém. Em minha opinião, pessoal e leiga, Agostinho sempre me pareceu palavroso e intelectual demais, muito dependente da mediação da palavra para se autoanalisar e autoafirmar, para ser verdadeiramente místico.
Entretanto, sem conhecimento nem gabarito para contraargumentar Grün, ofereço abaixo algumas notas de leitura sobre um outro autor cristão que definitivamente considero um dos maiores místicos de todos os tempos, e meu mestre no caminho, o espanhol João da Cruz.
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Noite escura, de João da Cruz
Meditamos não para fugir da realidade ou para nos isolar do mundo, mas por perceber que a vida não-contemplativa, a vida do ego, a vida do consumo, a vida do apego, é fundamentalmente irreal. Meditar é a nossa maneira de mergulharmos plenamente na realidade ilimitada.
Mas nem sempre a espiritualidade, a contemplação, a meditação trazem a paz: essa não-paz é o que João da Cruz chama de “noite escura”.
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“Noite escura”, o poema
“A noite escura da alma” é um poema do frade carmelita João da Cruz, um dos maiores poetas quinhentistas espanhois. Depois, para explicar o poema, de apenas oito estrofes, o autor escreveu todo um livro, que, na verdade, só vai até a segunda estrofe e foi deixado inconcluso.
Abaixo, o poema completo, em tradução para o português:
Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa, Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.
Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.
Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
Em meu peito florido
Que, inteiro, para Ele só guardava
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, O regalava,
E dos cedros o leque O refrescava.
Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
O poema, lindamente musicado pela cantora Loreena McKennitt e reminiscente do Cântico dos Cânticos (sobre o qual falo mais aqui), não é tão simples quanto parece, ou não precisaria de um livro para explicar somente as duas primeiras estrofes.
De acordo com o autor, o poema é narrado pela alma, que, em plena noite escura, sai de casa (desapega de seus valores mundanos?) e vai ao encontro de seu amado (Deus).
Apesar de ostensivamente sobre uma jornada cristã, o poema pode se aplicar a todo e qualquer caminho espiritual.
Pois a “noite escura” do título simboliza, entre muitas outras coisas, as primeiras dificuldades que são experimentadas por todas as pessoas que começam a se dedicam com afinco e seriedade à práticas religiosas e contemplativas, místicas e espirituais – sejam elas cristãs ou budistas.
Inclusive meditação.
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O que é a “noite escura”?
A beleza da metáfora da “noite escura” é justamente a impossibilidade de uma tradução simplista: ela é, ao mesmo tempo, o deserto árido que atormenta as pessoas que trilham caminhos espirituais, mas, também, a atmosfera generosa e frutífera que possibilita todo e qualquer crescimento espiritual.
Ou, como disse Ben Sirach, autor do Eclesiástico, repetidas vezes citado por João da Cruz: “Quem não é tentado, o que sabe? Quem não é provado, que coisas conhece?” (Ecl 34, 9-10, um texto meu sobre o Eclesiástico).
Citando Faustino Teixeira, na introdução da minha edição da Noite Escura (Vozes, 2016):
“A simbologia da noite … trata-se de uma das criações mais originais e rigorosas de seu pensamento místico, de uma complexidade singular. O que caracteriza o símbolo é a impossibilidade de sua tradução. … [O] símbolo ‘quase nunca se realiza em sua essência’. Ele guarda uma relação intransponível com uma experiência e vem acompanhado de um complexo de sentimentos que suscitam imagens sempre novas e constrastantes. Não há como capturar radicalmente seu significado, ele sempre escapa.
A essência metafísica do autêntico simbolismo místico envolve a quebra ou expulsão de imagens com imagens. O símbolo nunca figura uma experiência, como ocorre com um signo ordinário, embora sempre esteja vinculado a ela, suscitando sentimentos que busquem expressá-la. … [O] símbolo da noite traduz uma ‘profundidade estelar’, e expressa um ‘estado de ânimo’ muito particular, que indica as ‘obscuras’ e misteriosas vias que encaminham a amada para a doce e serena união divina. A noite torna-se … ‘um símbolo intraduzível, capaz de gerar novas situações e emoções que se captam paulatinamente: de início, apenas o ambiente em que a alma solitária começa sua jornada arriscada; agora, o guia e (além de toda tradução) a mediadora entre amante e amado’. …
‘[D]esnaturalização da linguagem’ … [:] deixa de reproduzir ou imitar coisas e passa a ser modelada pela paixão de quem vive uma experiência inefável. … É uma linguagem que se insinua, que busca ‘mostrar’ algo que deve permanecer escondido e resguardado … que sugere um mistério, que aponta para um ‘no sé qué’, que transmite ilimitadamente as alegorias ordinárias da experiência. Daí a dialética da noite escura que é também ditosa, dos vivos contrastes entre a obscuridade da noite com a luz das chamas que ardem no coração.”
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As dificuldades do caminho
Os primeiros capítulos de Noite Escura apresentam os principais problemas enfrentados nas trajetórias religiosas, místicas e espirituais. Abaixo, alguns trechos. Matreiramente, adaptei as citações para torná-las menos cristãs e mais ecumênicas.
A soberba:
“[U]ma certa vontade algo vã, e às vezes muito vã, de falar sobre assuntos espirituais diante das outras pessoas, e ainda, às vezes, de ensiná-los mais do que aprendê-los. … [Os principiantes soberbos] desejosos de ver suas coisas estimadas e louvadas, julgam não ser compreendidos, ou que os mestres não são espirituais, porque não aprovam ou condescendem com o que eles querem. … [D]esejam tratar de seu espírito com quem imaginam há de louvá-los e estimá-los. Fogem como da morte àqueles que os desfazem a fim de os pôr em caminho seguro. … Com grande presunção, costumam propor muito, e fazer pouco. Têm, por vezes, muita vontade de serem notados pelos outros … [S]e entristecem em demasia quando veem suas quedas, pensando que já haviam de ser santos; e, assim, aborrecem-se contra si mesmos, com impaciência, o que é outra imperfeição. … São inimigos de louvar os outros, e muito amigos de que os outros os louvem.” (parte I, capítulo 2)
No comentário do padre carmelita belga Wilfried Stinissen, em A noite escura segundo São João da Cruz:
“Você descobre que tudo o que fez na vida, até mesmo o bem, o amor que demonstrou ao próximo, tudo estava contaminado pelo amor-próprio. Descobre que manipulou as pessoas em lugar de servi-las. … Começa a entender que toda a sua vida, com todo o bem que você realizou e pelo qual você recebeu reconhecimento e louvores, você muito sutilmente viveu-o para você mesmo, considerando-se o centro do mundo, desesperadoramente preso no seu egocentrismo.” (17)
A avareza:
“[Q]uerem ter sempre grande cópia de livros sobre esse assunto. Vai-se-lhes o tempo na leitura, mais que em se exercitarem.” (I, 3)
A ira:
“[V]endo-se imperfeitos, zangam-se consigo mesmos, com impaciência pouco humilde; e chega a ser tão grande essa impaciência contra suas imperfeições que quereriam ser santos num só dia. … Não têm paciência para esperar.” (I, 5)
A preguiça:
“Como estão presos ao gosto sensível no exercícios espirituais, em lhes faltando esse gosto, tudo lhes causa fastio. Quando alguma vez não encontram no caminho espiritual aquele sabor que o seu apetite desejava – porque, enfim, convém que sejam privados de tais consolações … – não querem mais voltar a ele; chegam mesmo a abandonar o caminho, ou a trilhá-lo de má vontade. Esse preguiça leva os principiantes a deixarem atrás o caminho … para buscarem o gosto e o sabor do que lhes agrada. … Como andam sempre guiadas pelo sabor e regalo nas coisas espirituais, são muito remissas para a fortaleza e o trabalho da perfeição. Semelhantes aos que são criados no meio dos prazeres, fogem com desgosto de tudo quanto é áspero, e se ofendem com o caminho no qual se acham os deleites do espírito. Nas coisas espirituais sentem maior fastio; como procuram nelas suas liberdades e a satisfação de suas vontades, causa-lhes grande desgosto e repugnância entrar no caminho estreito que … conduz à vida. … Na noite escura, serão desmamados de todos os sabores e gostos, por meio de fortes securas e trevas interiores, perdendo todas essas impertinências e ninharias, ao mesmo tempo, ganhando virtudes por meios muito diferentes.” (I, 7)
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Um conhecimento indizível, além do sentido, além das palavras
Um dos sinais de que a pessoa se encontra na noite escura é que já não consegue mais discorrer sobre assuntos espirituais com o mesmo vocabulário, com a mesma racionalidade de antes.
A comunicação se quebra, cai-se no indizível: ela não consegue mais comunicar-se por meio do sentido, pelo trabalho do raciocínio, como o fazia até então, ligando ou dividindo os conhecimentos, mas agora o faz puramente na consciência, onde não é mais possível haver discursos sucessivos:
“A comunicação é feita com um ato de simples contemplação, a que não chegam o sentidos interiores e exteriores da parte inferior.” (I, 9)
A pessoa percebe “como são baixos, limitados e, de certo modo, impróprios, todos os termos e vocábulos usados nessa vida para exprimir as coisas espirituais e contemplativas.” (II, 17)
(Um dos objetivos da prática zen, seja através de meditação ou de koans, é implodir nossa mente lógica e articulada e permitir acesso a um conhecimento que não pode ser comunicado.)
No comentário de Stinissen:
“[Nessa] crise decisiva de crescimento … a inteligência tem que desistir de qualquer apelo à compreensão. … Antes suas faculdades [mentais, racionais] eram tentáculos para agarrar, mas agora são antenas. Não são mais prepotentes, não manipulam, não ferem. Testemunham agora respeito incondicional e amor pela realidade.” (22, 86)
Abrir mão de nossa racionalidade pode finalmente nos fazer prestar mais atenção às pessoas à nossa volta, ver mais, ouvir mais:
“Pode-se ouvir o outro, escutando sua própria voz, para satisfazer sua própria curiosidade, ou escutá-lo com respeito, numa escuta que sabe aceitar tanto o silêncio como a fala do outro. Tal escuta não é para aprender, e sim para doar-se.” (86)
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Conhecer o Eu, abandonar o Eu
Entre os benefícios trazidos pela noite escura para a pessoa praticante, está o “conhecimento de si mesma e de sua miséria”, “sua própria baixeza que, no tempo da prosperidade, não chegava a ver”:
“Vendo-se agora tão árida, nem mesmo por primeiro movimento lhe ocorre a ideia … de estar mais adiantada do que os outros. … Daqui nasce o amor ao próximo, pois a todos estima, e não os julga como antes, quando se achava com muito fervor e não via os outros assim.” (I, 12)
(Talvez o primeiro benefício concreto da meditação seja mostrar à praticante, em primeira mão, por experiência própria, o quão enlouquecida, acelerada, apegada é a sua mente.)
A consciência da pessoa praticante, purificada e aniquilada pela noite escura de todas suas afeições e inteligências, “não gozando nem entendendo coisa alguma”, “permanecendo em seu vazio, em obscuridade e trevas”, torna-se enfim muito disposta a “abraçar tudo”. (II, 8) Ou, nas palavras de Stinissen, “heroísmo é aceitar a própria pequenez” (56).
Mas, para abraçar o todo, é preciso abandonar o Eu:
“Os elementos da natureza, para que se combinem em todos os seus compostos, e os seres naturais, devem estar livres de qualquer particularidade de cor, cheiro, ou sabor, a fim de poderem adaptar-se a todos os sabores, cheiros, cores. … Basta um só apego ou particularidade a que a consciência esteja presa, seja por hábito ou por ato, para não sentir nem gozar dessa delicadeza e íntimo sabor do espírito do amor, que contém em si eminentemente todos os sabores.” (II, 9)
Tudo o que nos faz sofrer vem de nós mesmas, de nosso Eu, de nossos apegos, ou seja, a única segurança está em um desapego radical:
“A consciência nunca erra senão por seus apetites, ou seus gostos, seus raciocínios, seus conhecimentos, ou suas afeições; é nisso que ela costuma faltar, ou exceder-se, por buscar variações, ou cair em desatinos, inclinando-se, consequentemente, ao que não convém. Uma vez impedidas todas essas operações e movimentos, claro está que a consciência se encontra segura, para neles não errar. E não somente se livra de si mesma, mas também dos outros inimigos, como o apego e a compulsão, os quais, encontrando adormecidas as afeições e atividades do Eu, não lhe podem fazer guerra por outro meio nem por outra parte. … Quanto mais a consciência vai às escuras e privada de suas operações naturais, tanto mais segura vai.” (II, 16)
Como escreveu Mestre Dogen, fundador do Soto Zen, a linhagem que pratico:
“Praticar o caminho é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer de si mesmo. Esquecer de si mesmo é se abrir para a totalidade dos fenômenos.” (Shoboguenzo, outono de 1233)
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“Você acredita ser esse espelho!”
Escrevendo sobre Noite Escura, Stinissen enfatiza a importância de desapegar de um falso Eu que, na verdade, nunca nem existiu:
“Cada um de nós vive numa cidade forte. … Propriamente o que é que estamos defendendo, por que defendemos e contra quem estamos defendendo? … Certamente algo que é frágil, algo que constantemente precisa ser protegido, para que ninguém lhe cause dano. O que você defende é o seu falso Eu, é a mentira, é um fantasma. … Você não perde nada ao perder uma ilusão. … Contra quem ou que coisa está você se defendendo? … Nossa defesa é contra a realidade, a liberdade e a paz. … Por que essa crise é tão pesada? Por que é tão difícil desistir da autodefesa? …
Quanto mais estamos presos a ilusão, tanto mais difícil é desistir dela. O processo de libertação, a passagem da ilusão para a realidade, é a noite escura. Experimentar essa noite é como uma luta mortal: o que sempre considerei como o meu Eu agora morreu. Mas o que morre aqui é um fantasma e um fantasma não pode passar por uma morte real, visto que nunca viveu. … O que você está defendendo é um reflexo de espelho do que as outras pessoas, que não merecem confiança, pensam sobre você. E você acredita ser esse espelho.” (38-42, 63-64, 80)
O objetivo de qualquer caminho espiritual é desprivatizar a nós mesmas e nos abrir para as outras pessoas, para a totalidade dos seres, para o universo, diz Stinissen:
“A noite escura … faz tudo o que é possível para que você renuncie à própria imagem, pois sabe que você não é capaz de fazer outra coisa senão afogar-se, quando apaixonadamente se curva sobre o espelho das águas, em êxtase diante de si mesmo. Você está tão acostumado a essa vida que é incapaz de imaginar outra. Sem a sua autoglorificação a sua existência parece perder o sentido. … O ego, o egocentrismo, o homem trancado dentro de si mesmo não quer morrer. O ego construiu a própria existência sobre a ilusão. … Que restaria de nós se nosso ego de repente desaparecesse? … A noite visa justamente libertar você dos seus limites egocêntricos e abri-lo para o universo … desprivatizá-lo e salvar a dimensão universal da sua vida.” (38-42, 63-64, 80)
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“A realidade é ilimitada, faço voto de percebê-la”
Por fim, aquilo que mais nos atormenta não é real, mas fruto de nossos apetites, de nossos apegos, do nosso Eu. Abandonar esses apegos não é fugir da realidade, e sim enxergá-la, às vezes pela primeira vez. Conclui Stinissen:
“Nosso desejo … é uma fuga da realidade. Pensamos que o que procuramos esteja sempre em outro lugar. E, na realidade, está aqui e agora. … A vida de união é extraordinariamente simples, Poderia ser diferente? Nessa vida nova, você finalmente é aquilo que você é. Não há mais nenhum abismo entre a vida em profundidade e a vida consciente. … [Você] aprende a escutar a realidade, em vez de forçá-la a ser diferente. Tenta esvaziar a sua consciência e esquecer-se de tudo o que aprendeu no decorrer dos anos. Sem preconceitos, sem expectativas falsas, vai ao encontro da realidade. … Distanciando-se das suas estreitezas mentais, antigas e enferrujadas, você está renunciando ao seu Ego.” (92-93, 104, 113)
Encerramos assim com a reiterada importância de simplesmente perceber a realidade.
Meditamos (ou empreendemos qualquer caminho místico) não para fugir da realidade ou para nos isolar do mundo, mas por perceber que a vida não-contemplativa, a vida do ego, a vida do consumo, a vida do apego, é fundamentalmente irreal. Meditar é a nossa maneira de mergulharmos plenamente na realidade ilimitada.
Todas as práticas espirituais, religiosas, místicas, contemplativas, espirituais compartilham desse mesmo objetivo.
Em meu livro Atenção., lançado em 2019, desenvolvo mais essas questões. Os quatro votos do Bodisatva são sua epígrafe. Relembrando o terceiro:
“A realidade é ilimitada, faço voto de percebê-la”.
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Bibliografia básica de misticismo
Minhas duas principais recomendações são A montanha no oceano: meditação e compaixão no budismo e no cristianismo, de Jean-Yves Leloup (Vozes, 2002) e Meditação cristã, de John Main (Paulus, 2016).
Quem quiser um conteúdo um pouco mais desafiante pode tentar ir direto a um dos mestres místicos de todos os tempos, João da Cruz, em sua Noite Escura (Vozes, 2014).
Para quem não sabe nada e quer uma ideia geral, o melhor livro atualmente em catálogo no Brasil é Mística: descobrir o espaço interior, de Anselm Grun (Vozes, 2010). Sobre misticismo budista e cristão, recomendo o excelente Místicos e mestres zen, do também sempre excelente monge trapista Thomas Merton (Martins Fontes, 2006).
Esses cinco livros são minhas principais recomendações, todos em catálogo no Brasil.
O livro Mística: Cristã e Budista, de D. T. Suzuki (Itatiaia, 1976), que era amigo e interlocutor de Merton, faz a mesma comparação, mas vista a partir de uma perspectiva zen. Esse livro é um pouco mais difícil de ler para novatos e não está mais em catálogo faz tempo. Devo muito a D.T. Suzuki: sem a sua Introdução ao Zen (Mantra, 2019), eu não teria nunca trilhado esse caminho.
Também gosto de Da Oração, de João Cassiano (Vozes, 2008) e De Diligendo Deo, ou “Deus há de ser amado”, de Bernardo de Claraval (Vozes, 2010).
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quarta aula, Cristãos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Misticismo: o que é, como praticar é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 1º de setembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/misticismo // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
6 respostas em “Misticismo: o que é, como praticar”
[…] [*Noite escura, de João da Cruz, e As confissões, de Agostinho foram diretamente responsáveis pelo caminho religioso que estou trilhando até hoje, e do qual esse livro que você está lendo faz parte. Agostinho, pra mim, é como se fosse um irmão mais velho: autoritário e brilhante, carola e compassivo, moralista e articulado, turrão e companheiro.] […]
[…] espiritual interna e subjetiva, muitas vezes buscada através de práticas contemplativas, meditativas e devoção pessoal. O misticismo pode ser encontrado em muitas tradições religiosas e espirituais, como o sufismo na […]
O desapego ao Ego, materialismo intelectual imposto no dia dia, a sensação de necessidade do bem e do ter. Esse que devemos aprender a desapegar. Essa leitura nos arremete a investir para uma vida real. Textos maravilhosos. Obrigado por compartilhar e contribuir com ensinamentos ímpar.
GOSTARIA DE ESTUDAR COM PROFUNDEZA AS VERDADES SOBRE O UNIVERSO, NOSSO DEUS. AMÉM…
Adorei
Nossa foi um choque de realidade esses textos, sinceramente não sei bem como fui parar nessa parte do site mas está sendo muito útil nesse meu processo de desconstrução que estou vivendo. Estou tentando me desapegar de certos pensamentos que ficam martelando na minha cabeça e que me impossibilitam de viver minha vida de forma plena.
Não vou conseguir transmitir tudo que estou pensando e vivendo mas só queria dizer que achei muito interessante tudo aqui. Obrigada!